Uma boleia de 20 anos pelo Porto d’Os Azeitonas

O trio portuense que lançou sucessos como “Anda comigo ver os aviões” ou “Quem és tu miúda” está à beira dos 20 anos de carreira, cheio de projetos e com concerto marcado para dia 29 na cidade que o viu nascer. A viagem pelo passado, presente e futuro de Marlon, Salsa e Nena leva-nos aos primeiros acordes d’Os Azeitonas, mas não se desvia do momento atual da Cultura e revela uma surpresa para o futuro próximo.

Passaram quase 20 anos desde a primeira vez que Marlon, Salsa e Nena entraram no 399 da Rua da Alegria. Foi nas traseiras daquele prédio velho, na casa de um amigo, que esta troika pop portuense teve o primeiro estúdio a sério. O primeiro a brincar foi aquele na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), a cem metros dali, que lhes viria a mudar a vida. “Quando gravávamos as vozes, ouviam-se as pegadas dos gatos e as gaivotas no telhado”, recorda Nena. “Algumas dessas gravações acabaram no disco”, interrompe Salsa.

O disco é “Rádio Alegria” e foi o segundo da banda, mas catapultou o nome d’Os Azeitonas através de sucessos como “Quem és tu miúda” ou “Mulheres nuas”. Antes, tinham gravado a maquete de “Um tanto ou quanto atarantado”, no estúdio da ESMAE, onde Salsa estudava. Essa primeira gravação mudaria tudo. “A ideia era gravarmos para mostrar aos amigos e ficarmos com um registo, mas chegou às mãos do Rui Veloso sem sabermos muito bem porquê”, conta Marlon.

Mário Folhadela Cunha Brandão, “Marlon”, 44 anos, vocalista, tríceps tatuados, bigode exótico e meias de gelados às cores. Descontraído, porém, ponderado. É talvez o português que mais tocou em bandas com nomes estranhos. Yellow-Jello-Caramelo, Load Aspas Aspas e Pequenos Homens Verdes são só alguns exemplos. Hoje, Marlon já já não tem cópias da maquete que viria a mudar a vida dos quatro Azeitonas (Miguel Araújo ainda fazia parte). Um dos exemplares chegou até Rui Veloso e o cantor de “Chico Fininho” (que já regressa a esta história) achou piada ao som do quarteto com nome de fruto. Gravou-lhes os dois primeiros álbuns com a editora Maria Records.

Nessa altura, primeira década do milénio, Os Azeitonas juntavam-se no café Corsário, da Rua da Alegria, primeiro ponto de encontro desta boleia. “É tudo malta boa”, assegura o dono do café, admitindo que já não os via “há uns dez anos”. Marlon lembra que despediram o primeiro baterista lá dentro, nas mesas: “Esse dia foi estranho. Tipo, ninguém sabia o que dizer e teve que ser o Salsa”. “Era meu amigo”, salienta Salsa.

João Bustorff Salcedo, “Salsa”, 41 anos, teclista e vocalista. Ganhou brancas com a pandemia, mas mantém aquele espírito animado que lembra o amigo de infância que punha a sala de aula a rir. Não esconde um lado geek que ajuda a disfarçar o génio. É um músico, compositor e criador de mão cheia.

Ali, nas mesas do Corsário, Salsa terminou o arranjo de “Balada de um banco de jardim” (“Rádio Alegria”, 2007): “Quantos destinos se cruzam assim/Quantos romances se acendem assim/Ao cair da tarde num banco de jardim”. Muitas letras – não chegamos a saber se esta também – são sobre a vida d’ Os Azeitonas e sobre o que os rodeia. “Eu diria que o Porto é uma aldeia e uma cidade ao mesmo tempo”, constata Salsa. A teoria dos seis graus de separação de Stanley Milgram “são para aí dois” no Porto, enfatiza o teclista.

Fora do Corsário, dedicaram àquela artéria portuense a “Marcha da Rua da Alegria” (álbum “Salão América”, 2011): “Subo e desço/A Rua da Alegria/Subo e desço sozinho/Sei que vou em boa companhia/Rua da Alegria”. “Temos uma série de músicas que fazem referências a pontos que nos são próximos”, clarifica Nena, exemplificando com o aeroporto Francisco Sá Carneiro e o porto de Leixões, na letra de “Anda comigo ver os aviões”, uma espécie de música clímax d’Os Azeitonas, do mesmo álbum.

Luísa Mesquita Barbosa, “Nena”, mais nova que os outros dois, de aspeto tranquilo com calça de ganga preta e camisola larga Fred Perry, é a mais assertiva nas palavras. Quando ela fala, eles calam-se logo. Divide a banda com a profissão de veterinária que resultou de um curso tirado entre concertos, livros e muitas diretas para exames após ensaios e espetáculos.

Saída de Miguel Araújo, mudança de editora

Desde o despedimento no Corsário não dispensaram mais nenhum músico. A saída mais mediática foi a de Miguel Araújo, que deixou o grupo no final de 2016 para se dedicar à carreira a solo, mas continua a ser convidado para os concertos e discos. No álbum “Banda Sonora” (2018), o quinto da banda e o primeiro sem Miguel Araújo na composição, voltaram a convidá-lo para participar. Desde então, mudaram de editora e o Mundo, ou pelo menos parte dele, tenta sobreviver a uma pandemia.

Da editora pouco há a dizer, foi uma decisão consensual. “Não era uma mais-valia, nem para eles nem para nós. Agora temos mais liberdade em termos de formatos, na distribuição e comercialização. Vendemos nós diretamente ao consumidor e temos margens mais simpáticas”, justifica Marlon. Do ponto de vista criativo “não muda nada”, ressalva Nena.

Eles continuam os mesmos Azeitonas, mas num mercado musical transformado pela falta de oportunidades e ávido de som ao vivo. Em termos de concertos, o último ano “foi completamente seca”, atira Salsa. “Sentimos muita falta mesmo. A gente não tinha noção, às vezes, até se queixava da estrada e sabíamos lá nós o que nos ia acontecer”, acrescenta Marlon.

O fim do longo deserto de espetáculos já tem data data marcada. É no Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota (Porto), no próximo dia 29, para o Santa Casa Portugal ao Vivo. Vão ter como convidados os Best Youth, agora vizinhos de ensaios nos Estúdios Rangel, da Rua de Santos Pousada. Também vai lá estar o vencedor do concurso da música “Guitarrista do liceu”, o single lançado este ano que deu o mote a um desafio em que os fãs tinham de criar a pista sonora da guitarra e enviá-la para a banda. Responderam 70 sujeitos que nunca se saberá se são fãs ou só foram aliciados pela Duo Sonic da Fender que o vencedor levava para casa. Seja como for, a música é boa. “Se a música é boa/Quase nunca dá para o torto”, diz a letra, que fala da história de amor entre a Rosa de Lisboa e o Chico Fininho do Porto. É do Pedro da Silva Martins, dos Deolinda, que compõe para Mariza, Ana Moura e António Zambujo, entre outros.

Se “Guitarrista do liceu” é a primeira de um futuro álbum de originais, impõe-se a pergunta da praxe. Para quando um novo álbum? Nena responde logo: “Há uma componente que é importante sublinhar que é o que muitas vezes trava o artista. Queiramos ou não, por muita facilidade que haja para criar música, não temos os milhões da América”.

Pandemia, apoios para “comer pão”

Hoje, um álbum implica gravar num estúdio, pagar o técnico, o produtor, a masterização, o videoclipe, a produção e mais uma lista de despesas que não param de enumerar. “É sempre um investimento por parte do artista e das bandas. Muitas vezes, as pessoas não se lembram”, continua Nena. A vocalista explica que a pandemia lhes trouxe limitações, que gostavam de ter os tradicionais 11 músicos em palco mas só andam quatro, e que vão gravar dentro de poucos dias mas sem compromissos. E apoios? “Houve apoios, mas sinceramente foi para comer pão”, riposta.

Há um silêncio. Ouve-se a corrente ribeirinha e sente-se o cheiro do Douro abraçado ao Atlântico. Nena passou a infância no minigolfe do Passeio Alegre e avisa para ter “cuidado com os cocós” quando chegamos ao jardim junto ao chafariz. O local está ligado de forma familiar, artística e íntima aos Azeitonas. São todos de perto. Até deram ali perto o primeiro concerto, na Dona Urraca.

Em 20 anos de carreira, cinco álbuns e milhares de quilómetros na estrada, ainda se lembram do concerto mais estranho. Foi num pavilhão tipo discoteca às dez e meia da noite na Figueira da Foz. Vazio, portanto, esclarece Marlon. “Aquilo parecia lavagem de dinheiro, sei lá. Ao lado estava uma pista, com um DJ, tudo vazio e ele a bombar ‘pum, tchi, pum, tchi, pum’.” Os outros riem-se.

Marlon também fez a primária perto do Passeio Alegre e quando cresceu não foi para longe. Parava no Bar Amarelo, a meio quilómetro do famoso jardim, “a jogar setas e matrecos”, aos 16 anos. Os Azeitonas gravaram naquele bar o tema “Café Hollywood”, outro grande êxito do álbum “Salão América”, que satiriza o estabelecimento português que tem nome estrangeiro para ser chique.

A boleia levou-nos lá. É um edifício solitário na marginal com um espaço interior pequeno e catita mais umas esplanadas no cimento. À chegada, Salsa e Marlon pedem finos e tremoços. Lembram logo que já deram concertos naquele areal da Praia do Homem do Leme. Um foi com os Trabalhadores do Comércio e o outro teve como DJ o Diogo Quintela, do Gato Fedorento. “Vinte anos depois estamos aqui”, medita Marlon, enquanto o olhar se perde no horizonte.

Finos com tremoços, o álbum de acústicos e o futuro

O futuro do trio é feito sem grandes planos. Nena realça que vão trabalhar “enquanto for divertido”. A brincadeira que se tornou séria, afinal, continua a ser uma brincadeira. Imprimem uma descontração incomum à conversa quando falam do futuro. Marlon diz que é preciso tempo livre para criar e que beber copos à terça à tarde no café nem sempre é procrastinar: “É quando saem as ideias. Conheces outros músicos, tens outras influências”.

Salsa vinca que próximo passo já está decidido. Além de continuarem a gravar, pois têm 12 músicas prontas, vão lançar um álbum no próximo mês. Surpresa! Revelam pela primeira vez que vai ser acústico, ao vivo, do emblemático concerto de novembro de 2017 na Casa da Música. Fomos rever e teve como convidados Luísa Sobral ou Tatanka (The Black Mamba). E Miguel Araújo, claro, que está sempre.

Foi ele o elo de ligação entre Os Azeitonas pois apresentou os membros do grupo que continua a pintar os palcos nacionais com uma pop que representa uma maneira de ser e de estar. O segredo da sobrevivência? “As pessoas darem-se bem. Sempre fomos pessoas pouco conflituosas, temos interesses comuns, crescemos todos mais ou menos no mesmo meio e isso facilita bastante”, define Marlon. “Como também vivemos mais ou menos dentro do mesmo bairro, também partilhamos os mesmos gostos musicais, somos amigos”, completa Nena. Esse bairro é o Porto, mas é um Porto mais restrito. É um Porto criativo onde as músicas surgem nas conversas da terça à tarde. Onde as ideias rebeldes resultam em grandes feitos. O coração de uma capital da cultura que sobreviveu à ressaca do ano de festa. Um bairro que nesse ano de ressaca fez de uma brincadeira de amigos um dos mais belos conjuntos de música portuguesa.

Mas é também o Porto do cocó no jardim, do café Corsário, dos gatos no telhado, das gaivotas, dos passeios à beira-mar, do minigolfe, dos finos com tremoços, do Chico Fininho, dos amigos, dos copos com amigos, dos concertos na praia, das baladas, do amor, do Douro e do Atlântico, dos aviões e dos navios. Esse Porto, que também é de abrigo, é o Porto d’Os Azeitonas.

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