Um rapaz sem memória
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
O rapaz telefonou antes, vinha no comboio da Covilhã e disse que podiam esperar por ele em Lisboa, que ia aparecer. O tribunal esperou.
O magro Alexandre: vestido de negro justíssimo, como um pau de alcaçuz doce tentando reencontrar-se no mundo amargo. Tem estas horas perdidas: uma manhã de Agosto de 2015 evaporada do seu cérebro. Um dos polícias que o prendeu pensa que o rapaz tinha saído de um bar nocturno para o Sol, sem dormir. Passaram muitos anos, não ajuda a memória. A juíza leu-lhe o auto: depois de um acidente com dois carros, um polícia, aproximou-se e ouviu:
– Tu comigo não tinhas hipóteses, em dois segundos metia-te numa maca, cabrão!
Empurrões, murros, cabeçadas, só não lhe tirou a pistola porque o estojo tinha segurança. O guarda sofreu traumatismos no tórax e no nariz. Já estava quase na reforma, e na altura foram oito dias para se curar. Alexandre é magro mas forte: monta estruturas metálicas em obras de betão, já agora a profissão chama-se cofrador.
Crimes de ofensa à integridade física qualificada, resistência e coacção sobre funcionário, injúria agravada. A juíza disse-lhe que falar e admitir a culpa, “como diz a publicidade, tem vantagens.”
– Posso falar, disse o rapaz.
– Nesse caso, é melhor dizer quero do que posso.
– Quero. Foi para isso que vim. Sei que tive uma confusão com as autoridades, mas do que foi não me recordo.
– Porque é que não se recorda? Porque estava embriagado?
– Exactamente.
– E de tal modo embriagado que não se recorda?
– De tal modo eu estava que não me recordo do que possa ter feito ou não ter feito.
– Mas o senhor arguido admite que tenha feito isto, ou não?
– Admito. Se está aí escrito, posso admitir que tenha feito isto.
– O senhor arguido não conhece os senhores agentes?
– Não.
– Não coloca a questão de eles terem inventado isto tudo contra si?
– Da maneira que eu estava, nem me recordo da cara dos agentes nem de como me meti em tal briga.
Uma estranha mistura: um arguido admitir como certa uma coisa de que não se recorda a ponta de um chavelho. Mas ele vinha confessar, sempre a sorrir. A advogada de Alexandre:
– Se hoje pudesse pedir desculpa ao agente, fazia-o?
– Sim.
Um dos polícias está a tirar curso de chefe, em Torres Novas.
– Eu estava de patrulha no carro-patrulha, junto com o meu colega Mendonça, quando recebemos uma chamada de que havia um colega em apuros. Quando há uma situação desse tipo, é chamada prioritária e todos os que se encontram mais próximos deslocam-se ao local. Quando chegámos vimos um indivíduo já no chão algemado, porque outros colegas tinham chegado antes e a nossa função foi fazer o transporte do indivíduo até à esquadra.
– E na esquadra como é que se portou?
– Bom, no transporte ia bastante agressivo, muito exaltado, a chamar nomes. Na esquadra, manteve sempre essa atitude, sempre agressivo, chamava nomes a todas as pessoas que por ali passavam, mandava cabeçadas na parede, murros na parede… Enquanto o meu colega lavrava o auto de detenção, o indivíduo mandou uma cabeçada com alguma violência na parede e tivemos de chamar uma ambulância para o assistir.
E o jovem Alexandre ouvia aquilo como se lhe contassem uma boa história de outra pessoa. Um indício de que um clássico da discussão sobre violência policial às vezes acontece de verdade: foi o preso que se magoou de propósito e se escavacou na esquadra… O guarda agredido naquela manhã na rua reformou-se e será chamado mais tarde. A juíza disse que também o rapaz teria de regressar da Covilhã para nova sessão. A data: 15 de Setembro às 13.40 horas, já depois das férias judiciais.
– Já não vai receber nada, nem telefonema, nem convocatória… Não quer escrever a data e a hora num papel?
– Não preciso.
– Confia na sua memória?!
– Confio, confio!
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)