Rui Cardoso Martins

Um frigorífico novo (pago pelos velhos)

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

– Pagando já 50 euros, interrompeu a advogada de acusação, representante dos reformados.

Só que a advogada de defesa do professor era contra este primeiro pagamento. A advogada de acusação enervou-se:

– Não há acordo! Esta conversa já tem anos! Não vale a pena!

Sendo assim, também a defesa estava contra.

– Mas o arguido já disse que sim!, suspirou a juíza. A sotora aceita o acordo ou não?

– Não.

– Temos o arguido a dizer que sim e a sotora volta para trás?!

– Ó sotora, não prejudique o meu cliente por minha causa, por favor! Não me faça isso. É que eu tenho atravessado aqui este tempo todo a tentar um acordo!

– Sotora, os portugueses têm por prática chegar a acordo apenas no dia do julgamento. Há uma percentagem ínfima que consegue chegar a acordo antes.

Os portugueses atrasam e são susceptíveis. A juíza continuou:

– O senhor arguido pagava hoje 50 euros, não era?

– Sim, rosnou o professor.

– Paga hoje 50 euros, compromete-se a pagar 10 250 euros todos os meses e…

– Quanto?!…, guinchou o professor.

– O total é que é 10 250!, corrigiu a advogada do professor.

– Eu, se calhar é que me portei mal, admitiu a juíza.

– Que susto!

Risadas em todas as máscaras. Todas não, uma resistia ainda e sempre à invasão do riso.

– Eh, eh… pelo menos ria-se lá um bocadinho, porque senão…

– Não posso, sotora.

– Não pode rir? Por causa da máscara?

– Não posso, não posso…!

A voz do burlão arrastava dez mil toneladas de arrependimento, mais 259 quilos de peste social. A juíza:

– Não há muito a fazer. Não se pode voltar atrás no tempo.

Ó tempo, dá-lhe tudo o que ele perdeu.

– Voltava a praticar estes actos?

– Não voltava, sotora, não faz parte da minha pessoa fazer mal a alguém.

– Mas repetia o que fez?

– Não me vejo assim. Foi num momento mau da minha vida. Um processo de divórcio. Fiquei sem mobília nenhuma. A minha ex-mulher levou o frigorífico, a cama, os móveis.

Comprou um frigorífico novo. A cama. Os móveis. Um pulôver laranja, etc..

– Tenho de me adaptar à situação, não é? Mas não sou o único que vive com dificuldades neste país.

– Mas se todos fizessem o que o senhor fez, estávamos mal.

– Com certeza, disse o professor.

E não estamos?

* ver crónica de 7 de março

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)