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Um fenómeno chamado Doce

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Há 40 anos, quatro jovens mulheres inquietaram um país cinzento, austero, convalescente. Com um visual arrojado, coreografias sensuais e uma atitude espantosamente ousada para a época, as Doce foram tanto um fenómeno de popularidade como um alvo do preconceito. A história está agora contada num filme que é também um convite à reflexão sobre a emancipação da mulher portuguesa.

A parcos metros do palco, quatro mulheres vistosas, pujantes, de indumentária arrojada ( à luz do Portugal dos anos 1980, então, nem se fala), debatem-se para avançar. A distância é mínima, mas a euforia vai-lhes retardando a entrada no palanque. Em êxtase, a multidão acotovela-se para lhes chegar. Querem vê-las de perto, falar-lhes, tocar-lhes. Mandar piropos de mau gosto também. “Ó doce, comia-te à colher”, atira um, enquanto agarra uma delas. “Não tens colher que chegue, pá!” A cena está retratada no filme “Bem Bom”, película biográfica das Doce, mas, garante quem a viveu na primeira pessoa, é mais do que mero produto ficcional. “Era comum. Tínhamos pessoas que nos tratavam como se fôssemos umas deusas. E depois tínhamos as bestas”, resume Lena (Helena Coelho), um dos quatro elementos do grupo – hoje, como então, sem papas na língua.

A cena serve também de retrato ao sucesso dicotómico e perverso da primeira girl band portuguesa. Por um lado, o êxito de rompante, as multidões à espera em cada concerto, a euforia que sacudiu um país ainda a recuperar do cinzentismo de décadas de ditadura. “Quando nos aproximávamos dos locais onde íamos atuar, a carrinha começava a ter dificuldades em continuar a andar”, recorda Lena. “Eram milhares de pessoas, uma coisa inacreditável. Queriam tocar-nos, mexer-nos no cabelo, acho que queriam ver se éramos verdadeiras. A mim tocavam-me muitas vezes na cara para ver se o sinal que tenho é real. Chegava a ser assustador, porque às vezes parecia que nos iam engolir. Não sabíamos se saíamos dali vivas.”

Capa da banda sonora do filme que as recorda

Por outro lado, o preconceito, o desprezo, a boçalidade de um Portugal machista e patriarcal. Uma nuance que emerge também no filme realizado por Patrícia Sequeira. A dada altura, vemo-las em cima do palco, a serem alvo uma investida de rompante de uns quantos elementos do público que as agarram de forma imprópria, elas a tentar esgueirar-se como podiam, o concerto obviamente interrompido. No fim, um suposto presidente de câmara que se recusa a pagar-lhes por inteiro por não terem concluído a atuação, elas a fazer finca-pé e a argumentar que lhe cabia a ele garantir a segurança, o sujeito a conseguir dizer ainda: “Vêm para aqui assim vestidas, é normal que a rapaziada fique toda assanhada”. Uma vez mais, a ficção a fazer-se espelho da realidade. “Aconteceu mesmo. E ao longo daqueles anos houve muitas faltas de respeito. Mesmo nas cartas, recebíamos imensas. Tanto de mulheres como de homens. Uns simpáticos e bem educados, outros não. Mas acéfalos sempre houve. E nas nossas mentes ainda vivíamos em ditadura.”

Entre o êxito e as críticas, uma outra faceta, mais percetível hoje do que então, mesmo que as quatro Doce já o fossem percebendo aos poucos: a do contributo que deram para o empoderamento do sexo feminino, numa época em que a mulher estava reduzida a um papel irrisório. “A pouco e pouco, fomos sentindo que estávamos a conseguir dar um pequeno abanão. Que estávamos a ajudar a mostrar às mulheres que podiam ser elas próprias, que podiam assumir a sua sensualidade e gostar delas. Fomos vendo isso pela atitude nos concertos, pela forma como se exprimiam a nível físico, de estarem libertas, de cantarem e mexerem, não se importando com o que os outros pudessem pensar. Às vezes, diziam-nos coisas como ‘comecei a pintar os lábios por vossa causa’. De repente, percebemos que estávamos a lutar pela emancipação da mulher. Mais tarde, percebemos que não tínhamos sido um pequeno abanão. Fomos um grande abanão.”

A fama num ápice

Curioso é perceber que esta faceta emergiu espontaneamente, sem que tenha sido pensada a priori. Tozé Brito, nome incontornável da música portuguesa, criador e compositor do grupo, conta que inicialmente a ideia foi apenas criar um grupo para um segmento de mercado que não estava ocupado por ninguém. “Na altura, havia por um lado o novo rock e por outro os artistas estabelecidos. Entre uma coisa e outra, havia um espaço enorme e pareceu-me que podia funcionar muitíssimo bem.” Para isso, pesou e muito o facto de já ter trabalhado com Fátima [Padinha], Teresa [Miguel] e Lena [Helena Coelho] nos Gemini e de não as querer deixar sem trabalho. “Então, pensei: ‘Porque não um grupo de quatro mulheres?’ E foi assim que a ideia nasceu. Um projeto pop, puro e duro, mas com influências do que estava na moda na altura, como a dance music.”

Faltava apenas convidar Laura Diogo, que havia participado no concurso Miss Portugal. E assim, em 1979, nasciam as Doce. O êxito, como lembra Tozé Brito, foi quase imediato. “A primeira canção que se escreve é ‘Amanhã de Manhã’ e é logo Disco de Ouro. Com seis meses de vida, ficam em segundo lugar no Festival da Canção e começam a fazer espetáculos pelo país inteiro. Basicamente, passaram do zero a ter um projeto de sucesso que varreu o país.” Quatro décadas depois, o compositor detalha parte da fórmula vencedora. “Visualmente, conseguimos uma coisa que na altura não existia. Esteticamente, o grupo era muito bonito, funcionava muito bem. Uma imagem que foi pensada para ser sexy, digamos, mas sem ser desbragada, de mau gosto. Acabaram por ter um papel fundamental nisto de abrir caminho para a sensualidade. Depois as próprias letras tinham uma certa dose de atrevimento, sem ser demasiado porque as músicas também eram ouvidas por crianças. Isso esteve sempre presente.”

Também António Avelar de Pinho, compositor de renome e autor de umas quantas canções entoadas pelas Doce, destaca o papel das letras. E da atitude que rasgou um certo enfado prevalente na sociedade portuguesa. “O repertório mexeu com o panorama, o visual teve importância, explorou-se um bocado uma certa ‘leviandade’ por parte das Doce – entre muitas aspas! -, um certo atrevimento, uma certa apatia das plateias portuguesas, um quebrar determinadas regras. E depois o facto de terem sido muito bem vestidas pelo José Carlos, e não muito bem despidas, como se chegou a dizer. Havia um certo jeito provocador.”

Do estigma aos boatos

E assim as Doce correram um país em polvorosa para as ver, lançaram três álbuns, colecionaram singles que foram discos de ouro e platina, participaram quatro vezes no Festival da Canção – que venceram em 1982, com “Bem Bom” -, foram à Eurovisão e, antes de se eclipsarem em 1986, ainda se internacionalizaram. Mas nem este catálogo de feitos as livrou do estigma de um país que, assegura Lena, não estava preparado para elas. A ex-Doce dá como exemplo a participação no Festival de Canção de 1981, em que, vestidas de odaliscas e com uma coreografia sensual, entoaram “Ali-Babá – um homem das Arábias” e acabaram penalizadas pela ousadia com que se apresentaram em palco, no quarto lugar. “Foi a melhor canção que apresentámos num festival. Mas fomos vítimas do puritanismo e do machismo do público, que nunca deveria ter tido o poder de decidir o vencedor.” O arrojo valeu-lhes um chorrilho de críticas, de pornográficas para baixo.

Mas os obstáculos levantados por um país afundado em preconceitos não se ficaram por aqui. A dada altura, com o grupo fora do país, propaga-se o boato de que Laura Diogo teria dado entrada no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, depois de alegadas práticas sexuais violentas com um jogador do Benfica. O hospital ainda desmentiu, mas de pouco serviu. A atoarda era já impossível de conter. Tozé Brito reconhece que o grupo foi por vezes vítima de um país retrógrado, em que os triunfos não eram apreciados por todos. “Naturalmente, o sucesso atrai fãs e público como atrai críticas. E, em relação às Doce, havia uma mistura de amor e ódio. Depararam-se com muita inveja.”

De resto, até a leitura sociológica do fenómeno Doce aponta para o preconceito que as acompanhou desde sempre. Paula Guerra, socióloga com trabalho regular na área da cultura musical, realça que, apesar de o grupo ter tido em pequenas franjas da sociedade um impacto positivo, “no sentido de mostrar que uma mulher podia ser livre, um certo empoderamento”, se deparou, acima de tudo, com um imenso estigma. “Eram vistas por muitos como algo vazio, sem sentido, com um preconceito imenso por serem uma banda de mulheres. O episódio do boato é um bom exemplo disso. O que tem muito que ver com o nosso Portugal saído da revolução, muito cinzento, rural, fechado, preconceituoso. Elas foram impactadas por essa lógica. Tudo era objeto de estigmatização e estereótipos. A ideia é que elas eram um produto imediato, plástico. Até por se tratar de música ligeira. Na altura, não havia uma indústria da música pop. Mesmo entre a elite sempre foram vistas de forma negativa.” Para a docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, as Doce, apesar de terem marcado os anos 1980, permaneceram, por isso, “estigmatizadas, quase esquecidas”. E só agora, com o lançamento do filme biográfico, “se está realmente a olhar para elas de outra forma”, sobretudo no papel que tiveram em relação à emancipação da mulher, numa altura em que havia uma “dominação masculina fortíssima”. “[O filme] veio trazer ao de cima esta questão, num contexto diferente, em que o assunto assume uma premência muito maior. Cada vez se discute mais a questão do género, da desigualdade, tudo isso é objeto de atenção. Daí que se esteja agora a olhar para elas de outra forma.”

Lena não faz a coisa por menos. Gosta de chamar ao que fizeram há quatro décadas o “grito do Ipiranga” das mulheres portuguesas. Mesmo que ele tenha andado anos sem fim a ecoar em surdina.

O que é feito delas

Fátima Padinha cedo deixou o mundo do espetáculo. Foi secretária e esteve casada com o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho até 2003. Atualmente, devido a problemas de saúde, não trabalha. Helena Coelho ainda se aventurou num projeto musical, fez teatro e foi manager das Docemania. Hoje, vive no campo, plenamente dedicada à família. Laura Diogo mudou-se para os EUA, cursou Psicologia e abriu uma clínica, onde trabalha sobretudo com crianças autistas. Teresa Miguel manteve-se durante largos anos ligada à área do espetáculo, sobretudo ao teatro de revista. Entretanto, afastou-se, também por motivos de saúde. Ágata, que substituiu Lena Coelho em 1985, continua a cantar e abriu recentemente uma clínica de medicinas alternativas e terapias holísticas.