Rui Cardoso Martins

Um cidadão de estalo

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Não me toques, não me agarres, era o que ele dizia na Praça Paiva Couceiro em Lisboa. Tinha cortes no nariz e na cara. O que fazia: gesticulava, abria os braços e dava estalos. Primeiro aos bombeiros, que o tentaram levar ao hospital, depois à Polícia, que lhe pediu identificação. Mas será que aquele homem era mesmo ele?

Quase dois anos depois, não apareceu no julgamento. A máquina não pára, começou sem o réu. Entrou um polícia que explicou que o homem tanto dizia que se identificava, como que o cartão de cidadão já o tinham os bombeiros, como esperem só um pouco que vivo aqui e subo a casa a buscá-lo. No tribunal, o polícia, franzindo o sobrolho, fez cara de vejam só o que me aconteceu:

– Tinha um pouco de odor a álcool, mas nunca perdeu a noção da realidade. Ele era mais baixo do que eu, mas no momento em que subiu o degrau, ficou à minha altura e… deu-me um estalo.

– Mas passou-se alguma coisa para lhe dar uma bofetada? Quis saber a procuradora.

– Não, foi tudo muito rápido. O senhor com aquele discurso incoerente. Eu ia atrás dele. Os bombeiros também disseram que foram agredidos, mas não sabiam o motivo.

– E o senhor agente alguma vez o agarrou?

– Não.

– Então porque é que ele disse “não me agarres, não me toques”?

– Não sei. No momento, depois da bofetada, foi manietado. Foi cuidado e levado ao hospital.

O segundo polícia trazia a cena filmada de fora e um mistério.

– Eu estava de motorista. Fomos chamados à Praça Paiva Couceiro pelos bombeiros do Beato. O sujeito estava alcoolizado e tinha cortes na cara e no nariz. Não queria ir ao hospital. Vai pôr a chave na fechadura, vira-se e dá uma chapada na face do meu colega, do lado esquerdo.

– Mas nada o fazia prever?

– Não. Falava, gesticulava. De repente, vira-se e agride-o.

– Se estivesse o senhor daquele lado, era o senhor…

– É isso.

Agora começavam os problemas.

– Há uma questão que, enfim, sem a qual não podemos avançar. Uma vez que o arguido não está… Precisamos de saber quem é esta pessoa, porque não está cá. Esta questão da identificação, quem é que nos pode garantir que é ele?

Mas o polícia não se lembra de como é que o identificou. Viu o cartão de cidadão do detido? Não sabe. O senhor agente que veja o auto de detenção a ver se ele lhe faz lembrar alguma coisa. O homem lê, lê, lê o processo. Dois minutos passam. Franze o sobrolho (abusa-se do “sobrolho franzido” nas dúvidas, mas era o que sobrava da máscara cirúrgica do polícia, um sobrolho que se franzia).

– Não me recordo. Não ficou mencionado nos autos, por lapso…, suspirou o pobre agente.

A juíza e a procuradora pararam. Avançou a procuradora:

– Não se lembra de como identificou o homem?!

– Não.

– Há lapsos mais graves do que outros. O senhor pode contar as histórias todas, mas a parte inicial falta. Nem sabemos exactamente de quem estamos a falar!

E o polícia enrolava a língua na boca e os dedos uns nos outros. Podia ter sido sem mostrar o cartão, só pelo nome que o homem disse? Para isto avançou a juíza (também, já agora, franzindo o sobrolho acima da máscara).

– Aceitam uma identificação verbal em 2019?!

O guarda já não sabia. Se o homem subiu, se o homem desceu, se alguém da família o identificou, se ele mostrou o cartão de cidadão. Isto é, se aquele sopapo na Polícia estava identificado.

– Não me recordo, senão estaria a afirmá-lo.

– Então estamos aqui a perder tempo!, exclamou a procuradora (sim, de sobrolho carregado).

– É isso, disse a juíza. É possível alguém ser detido e deixar a pessoa abandonar o local sem dizer se é Maria, se é João?!

O homem irá a tribunal mais tarde, algemado. Ou melhor, alguém vai ser retirado pela Polícia de uma morada na Paiva Couceiro. Vindo o cidadão que vier, espera-se que seja mesmo “ele”, o do estalo de há quase dois anos. E que alguém se lembre de qualquer coisa. Ou teremos nós de o sobrolho franzir.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)