Margarida Rebelo Pinto

Tudo o que devemos a “O sexo e a cidade”


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O legado mais importante desta série manter-se-á intacto e inalterável: nunca antes o sexo fora abordado de forma tão aberta e despudorada, sem tocar o ordinário.

Nenhuma série teve mais impacto no Mundo ocidental para as mulheres do que “O sexo e a cidade”. Estreada em 1998, com seis temporadas, durou até 2004. Depois de dois filmes mal conseguidos, eis que voltamos a encontrar três das quatro mosqueteiras de Nova Iorque na meia-idade, Carrie, Charlotte e Miranda, já que Samantha está fora do naipe, por alegados desentendimentos entre as atrizes Sarah Jessica Parker e Kim Catrall.

A estreia de “And just like that” provocou uma onda de críticas negativas nos media dos EUA. Fazer uma sequela de uma série com tão estrondoso sucesso seria sempre um caminho com pedras. Para a minha geração, ver as nossas heroínas envelhecerem e aprenderem a lidar com cabelos brancos, ausência de libido, filhos adolescentes e amigas que se afastam, nada parece mais realista e tudo faz sentido. Ainda mais quando Big morre no final do primeiro episódio, porque a vida é mesmo assim, num instante tudo muda e o que ontem era dado como certo esfuma-se em poucos segundos.

Depois de assistir aos primeiros episódios, à exceção de algumas cenas sobre mal-entendidos que fazem sentido no “state of mind” americano, senti-me reconfortada com o tão aguardado regresso das personagens que moldaram a minha geração e as seguintes.

Durante a rodagem, a atriz Sarah Jessica Parker queixou-se publicamente de idadismo, a onda de preconceito ou discriminação pela idade que sentiu durante a rodagem. Contudo, ver Carrie com algumas madeixas brancas é melhor do que Charlotte com os lábios deformados por ácido hialurónico. Saber envelhecer é um “full-time job” a partir dos 40 e uma arte a partir dos 50. Quase todas continuamos a pintar o cabelo para disfarçar os brancos. Enquanto umas tentam lutar contra as marcas do tempo, outras preferem assumir os sulcos que este deixa, esperando com isso ganhar alguma serenidade.

O legado mais importante desta série manter-se-á intacto e inalterável: nunca antes o sexo fora abordado de forma tão aberta e despudorada, sem tocar o ordinário. Nunca o sentido de humor foi tão talentosamente usado para nos rirmos das nossas falhas e defeitos. Nunca antes as mulheres partilharam entre si e com os homens como gostam de ter e de dar prazer. A icónica série teve também o ímpar mérito de resgatar a “coquetterie” feminina que os anos 80 roubaram. Graças ao criativo closet de Carrie e à sua infinita coleção de sapatos, vestidos românticos e saltos altos voltaram ao quotidiano, mas desta vez usados por mulheres independentes e autossuficientes que procuram nas relações amorosas cumplicidade, romantismo, entendimento, um parceiro e não um provedor.

A mulher que combina prazer com equilíbrio, espírito crítico com liberdade, competência profissional com requinte, mudou o paradigma feminino para sempre. A consciência de que na vida há lugar para desfrutar uma relação com o Mister Right Now até aparecer o Mister Right deu às mulheres um poder de afirmação e um sentido de liberdade sobre a sua sexualidade nunca antes sequer imaginado, ajudando a atenuar a cruel tendência maniqueísta da Humanidade em separar as castas das impuras e as virtuosas das pecadoras.

Ver estas mulheres envelhecer de uma forma honesta e verosímil revela talento e mérito ao espelhar a vida como ela pode ser depois dos 50. Se o público está ou não preparado para ver as suas heroínas envelhecerem, isso já é outra história.