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Tudo em dobro

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Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O Natal é a aspiração ao esplendor. Não vai ser nunca suficiente, mas é o bastante para sabermos que, se quiséssemos de verdade, seríamos muito melhores.

Aproxima-se o Natal e esse tempo no qual tudo parece em dobro. Atravessamos as festas intensificados, numa combustão complexa que nos mede quanto perdemos e quanto ainda se mantém, como se nos pratos da balança fôssemos pesando a vida inteira e o quanto se justifica continuar. O Natal é sempre uma revisão da matéria, o desafio perante os nossos íntimos para que nos vejamos como limpos ao fim de mais um ano, carentes sempre de nossas afeições, mais carentes quando nos juntamos e nos sabemos desmascarada e inevitavelmente sobreviventes de tanto desafio e esforço.

Há uma comoção inerente a uma festa assim. Uma sensibilidade acentuada que nos faz a todos muito vidrinhos, ao mesmo tempo cintilantes como crianças e prestes a partir como caídos ao chão. Julgo que fazemos todos demasiados planos para que o resultado desta tremenda autoconsciência seja positivo. Queremos que a balança nos celebre, que nos prove que vale tanto a pena, merecemos acreditar que vai ser melhor, ainda virá melhor. E compramos cada prenda com esperança e fazemos a felicidade dos outros para que a felicidade seja tanta que nos pertença também.

Devia ser tudo mais simples mas já não vamos a tempo disso porque também não envelhecemos para a simplicidade. Somos cada vez mais estranhos e inexplicáveis, mais fundos nos pretextos e nas desculpas que arranjamos para todas as falhas. Falhamos mais convictos, cheios de teorias para o fazer mas também mais desistentes em disfarçar. O que é uma desistência por inteiro, universal. Com a idade, expomos nossas incapacidades e cansaços, nossas vontades avessas e rejeições de modo mais franco, porque não nos conseguimos fazer mais amados nem mais virtuosos, ainda que tanto o quiséssemos.

Eu gosto do Natal e do seu folclore íntimo. Gosto do que nos move, do quanto nos gasta, do que exige de inteligência emocional e até do que nos faz decidir que nenhum outro tempo do ano haveria de fazer. É uma experiência de enternecimento até dos brutos e, por mais que nos iluda e nunca sirva para salvar o Mundo, o empenho momentâneo na brandura de um gesto, na gentileza de um encontro, é do tamanho de montanhas numa humanidade em que vemos cada vez menos brio, menos esplendor.

O Natal é a aspiração ao esplendor. Não vai ser nunca suficiente, mas é o bastante para sabermos que, se quiséssemos de verdade, seríamos muito melhores. Ao menos o dobro. Facilmente haveríamos de valer o dobro do que valemos.

Ando atrás das prendas que quero dar. E quero sempre que se entenda como sou grato. Quando não podemos chegar a cada uma das pessoas que nos mereceriam nem podemos cumprir o sonho absoluto, importa que a conta mostre que, afinal, estamos gratos. O mínimo que podemos fazer, mais delicados ou mais brutos, é agradecer. Só isso é meio caminho andado para um Mundo melhor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)