Stephanie Coontz: “Temos de nos livrar das velhas definições de amor”

A história do amor romântico não tem fim à vista, e o casamento não é ideia ultrapassada, mas vislumbre de presente e futuro. A monogamia começou enquanto estratégia para o sucesso, mas hoje deve ter a igualdade ao seu serviço. É o que defende Stephanie Coontz, historiadora de casamentos e especialista em estudos familiares.

Nos anos 1960, quando a igualdade da mulher passou para a agenda política, foi convidada a escrever sobre a história feminina nos EUA. Nas “intrigas” da família focou toda a investigação que lhe revolucionou a carreira. A forma como as relações familiares alteraram sistemas económicos e políticos e a desigualdade que também ocorre no amor passaram a marcar o percurso da agora diretora de investigação do Council On Contemporary Families e conselheira da MTV para as campanhas antipreconceito. À conversa com a “Notícias Magazine”, Stephanie Coontz fala sobre o futuro das relações românticas, da família e do amor.

Porque é que o conceito de família tem perdurado ao longo dos séculos? Há alguma vantagem evolutiva em manter essa unidade?
A família tem sobrevivido exatamente pelo motivo oposto ao que as pessoas alegam. Tem sobrevivido porque não existe a família tradicional. As famílias têm-se adaptado e têm mudado. Se recuarmos aos tempos pré-históricos e às primeiras comunidades, vemos que o casamento era muito diferente do que era na sociedade patriarcal da Idade Média. O principal objetivo de alguém quando se casava era aumentar as ligações e o número de pessoas que lhes tinham obrigações. O casamento nos seus primórdios alargava os círculos de influência, de partilha e de obrigações. À medida que se foi começando a esbater a desigualdade, o casamento passou a fazer o contrário: começou a excluir. Passou a ser uma forma de dizer “apenas algumas pessoas podem casar com a nossa família, e não casaremos com pessoas de classes inferiores ou que não nos possam trazer vantagens financeiras”. Foi nesse período que começaram a aparecer os casamentos verdadeiramente patriarcais e os pais passaram a decidir os parceiros, para garantir as alianças familiares. Isso foi particularmente duro para as mulheres porque não queriam que elas engravidassem de alguém cuja família não interessasse em termos de relações. Quando o casamento passa a ser uma instituição forte, passa a haver a instituição da ilegitimidade. Se um filho casa com alguém não aprovado pelos pais, deixa de poder usufruir de qualquer direito. Isso durou muitos anos. Depois, na Europa Ocidental, no século XVII, e agora no resto do Mundo, uma nova ideia de casamento aflorou: deve ser baseado no amor, para criar filhos e constituir um núcleo familiar. Ainda não atingimos a igualdade que a maior parte das mulheres quererá, mas isso será igualmente vantajoso para os homens no casamento.

É a família o ponto de partida para a mudança ao nível dos papéis de género?
Uma das boas notícias para as mulheres e para os homens é que a igualdade está a tornar-se atraente. Está a tornar-se num requisito para o amor. Em 2013, foi feito um estudo acerca do casamento e os investigadores concluíram que os casamentos em que havia mais igualdade entre mulher e homem não eram casamentos felizes. Os casamentos mais tradicionais, em que o homem era o ganha-pão e a mulher se encarregava da casa e dos filhos, atingiam maiores níveis de felicidade. Isso fez grandes manchetes na altura. Muitos de nós, no entanto, dissemos que não era um bom exemplo porque os estudos analisavam relações dos anos 1960, 1970 e 1980, quando a dominância masculina era muito forte e o sexismo era amplamente aceite. Por isso, alguns estudos dedicaram-se aos casamentos dos anos 1990 e encontraram o padrão oposto: nesses casamentos, os casais mais felizes e com maior satisfação sexual eram os que partilhavam as tarefas domésticas, os cuidados com os filhos e o trabalho remunerado. O homem e a mulher começam a perceber que é muito satisfatório construir uma relação baseada na igualdade, em vez de se basear na ideologia dos opostos.

A definição de laços de sangue e de parentesco foi benéfica para o ser humano?
Penso que não. Durante muitos anos, as pessoas sentiram que o casamento levava à evolução dos seres humanos. Os homens casavam-se com mulheres mais jovens, férteis, com ancas largas e cinturas finas – era assim que detetavam a sua fertilidade. Caçavam animais e traziam-nos para casa para comer. Em resultado da monogamia feminina e da capacidade de o homem trazer comida para casa, criavam filhos. As novas teorias da evolução dizem exatamente o oposto: que o que era melhor para a evolução do homem era a abertura para partilhar fora da família. Quando olhamos para trás, para o surgimento das sociedades antigas, os bebés estão no colo de alguém que não é a mãe em 40 ou até 60% do dia. Outras pessoas alimentavam os bebés, havia muita partilha. O que o casamento fez nessas sociedades foi criar conexões com outros grupos em relação aos quais se usufruía de obrigações. Os grupos que mais partilhavam aprenderam mais depressa e movimentaram-se mais rapidamente. Por isso, hoje acreditamos que a partilha é um dos principais propulsores do sucesso do Homo Sapiens. Isso sugere que, quando vivemos em sociedades cada vez mais egoístas, em que não partilhamos, podemos estar a comprometer os nossos planos de longevidade.

Mas, se recuarmos às raízes do casamento e da monogamia, podemos dizer que começam com a Revolução Agrária? Porque é que começa a lealdade em relação a uma pessoa?
Quando olhamos para as sociedades antigas, a maior parte era monógama, mas havia outras possibilidades de rearranjo também. A criação de laços com uma pessoa parece ter surgido muito lá atrás na História. Mas, quando temos sociedades agrícolas que monopolizam recursos, duas coisas acontecem ao mesmo tempo: o grupo como um todo fica mais defensivo em relação aos recursos, e, porque já não precisa da constante partilha, prefere não partilhar e começa a concentrar homens na defesa desses recursos. Nascem assim as desigualdades dentro do grupo, por isso, o casamento torna-se uma forma de proteger a propriedade. Passam a não querer casar a filha ou o filho com alguém com menos recursos. É nesse momento da História que o casamento se torna o centro da intriga, da traição e da desolação, porque é uma grande ferramenta política para ganhar dinheiro e seguidores, e para excluir pessoas que não se quer que tenham acesso aos recursos, a não ser enquanto clientes ou escravos. O casamento deixa de ser uma forma de partilha e passa a servir para manter a distância social e económica. Para isso, as mulheres são muito importantes porque engravidam e têm os filhos que continuarão a linhagem. Os gregos diziam: “Não quererás que um estrangeiro plante na tua terra as suas sementes”. O que eles queriam dizer era que não queriam que uma mulher escolhesse um homem de quem gostasse para dormir porque esse homem poderia invocar direitos por ter ligações àquela família. Nesse momento, a sexualidade feminina passou a ser muito restringida.

A componente de exclusão social e de distanciamento político-económico ainda está muito presente na base dos casamentos de hoje?
Em algumas sociedades, sim, mas, na maior parte dos territórios do Ocidente, há muito menos influência do que havia. Os pais têm preferências e muitas vezes escolhem as suas casas em lugares onde acreditam que os filhos encontrarão o tipo de pessoas que querem que integrem a família. Mas os filhos crescem e têm a sua própria opinião. Há muito mais liberdade no casamento. Vemos muitos mais casamentos inter-raciais, inter-religiosos e interculturais. O que não vemos tanto é casamentos inter-classes. As pessoas tendem a casar com alguém com o mesmo grau de educação ou dentro da mesma classe. Mas também aí há um aspeto interessante: no final dos anos 1980, pelo menos nos EUA e noutros países ocidentais, se um homem casasse com uma mulher com mais estudos do que ele, tendia a haver conflito, por se sentir ameaçado. Aumentava o risco de divórcio. Hoje, isso já não acontece, o que significa que homens e mulheres aceitam mais o conceito de igualdade.

A família ainda fornece um sentido de unidade necessário no Mundo atual? A monogamia ainda é necessária? E, se sim, é possível que no futuro se volte a escolher o parceiro de acordo com outros critérios que não o amor?
É interessante olhar para a evolução do amor. Quando o conceito de correspondência do amor apareceu, e as pessoas começaram a dizer que deveriam deixar os filhos escolher de acordo com o amor, os conservadores ficaram horrorizados. Diziam: “E se a mulher escolhe alguém que não é apropriado? O que faremos se os maridos amarem as mulheres e as deixarem ser iguais? O que faremos quando as pessoas começarem a dizer que têm o direito de abandonar o casamento porque o amor acabou?”. Ficaram muito assustados com as ligações heterossexuais por amor como mais tarde ficaram em relação a casais do mesmo género. E a forma como lidaram com isso foi desenvolvendo uma nova definição de amor, baseada numa nova definição de homem e mulher. No mundo medieval, as mulheres eram consideradas subalternas aos homens, mas perfeitamente capazes de fazer quase tudo o que o homem fazia. Era por isso que tinham de as manter sob controlo. O que aconteceu no século XIX foi definir-se que as mulheres e os homens eram tão diferentes que tinha de ser o homem a prover. A ideia de que o homem e a mulher são opostos e de que temos de nos apaixonar pelo nosso oposto manteve o casamento estável por algum tempo. Era a ideia do género complementar. Nos anos 1960, eu perguntava a casais sobre o seu casamento e o homem costumava dizer: “Ela não compreende o meu trabalho, mas é tão boa mãe…” . A mulher, por outro lado, dizia: “Ele não entende as minhas variações de humor mas é muito bom a garantir que temos tudo aquilo de que precisamos”. Hoje estamos a mudar isso. Queremos um amigo que nos conheça, queremos compreender o trabalho um do outro, mas temos de nos livrar das velhas definições de amor, que são baseadas na diferença e que colocam as mulheres na posição em que os romances e as novelas as inserem: de se apaixonarem por homens mais inteligentes, mais ricos, poderosos e perigosos do que elas, e de, de alguma maneira, terem de os fazer apaixonar-se por si. Estamos a começar a transitar para uma situação em que queremos igualdade no amor. Muitas relações heterossexuais vão optar pela monogamia devido à igualdade. Os casais heterossexuais podem aprender muito com a forma como os casais do mesmo género se organizam. Mas há também pessoas que optam pelas relações poliamorosas, há muita coisa a mudar. No entanto, não acredito que o casamento vá desaparecer. Penso que se tornará um entre vários tipos de relação, penso que dedicaremos menos tempo das nossas vidas a ele, porque as pessoas estão a casar-se mais tarde e têm mais opções quando querem sair do casamento. Mas, nos países ocidentais onde a liberdade mais aumentou, as pessoas continuam a olhar para o casamento como a maior forma de compromisso que existe. O casamento continuará a existir, mas terá de se adaptar para coexistir com outros aspetos da vida.

A solidão começa a ser um fenómeno dos tempos modernos. Quais são os fatores sociais e económicos que estão a afetar a procura pelo amor romântico?
Há várias barreiras nesta sociedade de Twitter e redes sociais que encorajam essa perseguição de uma forma superficial. Mas o maior problema é o aumento da desigualdade económica. É irónico, porque fizemos grandes avanços quanto à igualdade de género e à igualdade racial, apesar das coisas terríveis que têm sido notícia. A pandemia ainda veio piorar as coisas. Isso altera a calculadora do casamento imensamente. As mulheres ainda ganham menos do que os homens, e, quando têm bebés, podem tirar licença de maternidade, mas os homens não são encorajados a fazê-lo e são penalizados se o fizerem. Ainda há narrativas antigas que forçam homens e mulheres a modelos ultrapassados de criação dos filhos. Há uma grande divisão de classes sociais que se revela nos casamentos. Nos anos 1960 e 1970, as pessoas de todas as classes sociais tendiam a casar-se. Hoje, pessoas com mais estudos, que conseguem empregos e salários mais estáveis, têm muito mais probabilidades de se casarem do que pessoas com menor grau de ensino. São também mais capazes de permanecerem casadas. Não é porque são melhores pessoas, é porque podem negociar mais, têm mais tempo e paciência. Esta divisão assombra-nos em todos os setores da sociedade e vai ser transmitida à geração dos nossos filhos.