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Sou transexual. E depois?

Fotos: Rui Oliveira/Global Imagens

Diana: "Não é o sexo que nos define, é a capacidade de sermos humanos que diz quem é que nós somos"

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Diana, 24 anos, brasileira, trabalhadora sexual, desde 2018 que adora viver em Portugal. “O meu sonho sou eu que o vou fazer. Hei de casar, hei de ter filhos.” Mónica, mais de 40 anos, portuguesa, viu-se empurrada para o sexo porque ninguém lhe dava um emprego formal. “Todos os meus clientes são homens, a maioria casados e heterossexuais.” Júlia, 31 anos, a primeira transexual a entrar na política, pergunta: “Porque é que não é concebível que uma transexual possa trabalhar a atender o público? Conhece alguém? Eu não”. Mulheres que nasceram em corpos de homem relatam a sua transformação.

Mónica está confortável na sua pele transexual. É trabalhadora do sexo, trabalha em casa, em Aveiro, num quarto branco com uma só parede a cintilar azul. Tem uma cama, duas cómodas cheias de cremes e gel de lubrificar, sobressaem atentos dois vibradores, tem um armário de onde pende uma toalha esquecida, a TV sintonizada na Globo sem som e um pequeno aquecedor no chão. Junto à janela está uma estatueta do Arcanjo São Miguel, comandante da guerra nos céus, que segura numa mão a espada, noutra o escudo, e tem um pé, o direito, sobre a cabeça esparramada do diabo.

Mónica atende o telefone, tem três espalhados na cama, faz uma voz fina e meninil, quase a miar, parecendo mais jovem do que o que é. O diálogo é sussurrado e breve, ela responde a duas perguntas, aceita a marcação, desliga a dizer sim, querido, até já.
“Todos os meus clientes são homens, a maioria casados e aparentemente heterossexuais. São quase todos passivos, querem ser possuídos, mas há uns que pedem que eu seja versátil, entende? Atendo-os todos, menos os menores. Casais não faço, mulheres também não.” E a seguir, com o mesmo despacho, expõe a pauta de preços: “É 50 euros por meia hora, 30 se for 15 minutos, mas isso é raro, 80 se meter uma massagem. Uso sempre preservativo, menos às vezes no sexo oral, mas só com clientes conhecidos”.

Tem mais de 40 anos, começou aos 26 nas ruas de Lisboa, “fazia praça”, já passou muito tempo, agora só atua em casa como a grande maioria das pessoas na sua profissão. “Para mim, o trabalho sexual é um trabalho banal, acho-o normal, sempre achei. A profissão já não é proibida na lei portuguesa para ninguém, nem para mim nem para o cliente, acho bem, mas a lei é incompleta porque eu não consigo declarar impostos nesta profissão. Como faço? Faço como as outras, desconto como empregada doméstica ou como esteticista ou como massagista e assim tenho direito aos cuidados de saúde e à Segurança Social.”

Diana conta uma história que nos há de envergonhar

Como uma nascente que desaprova o itinerário de um rio, a transexualidade é a sua própria afluência, tem autodeterminação.

Diana, 24 anos, brasileira, vive em Portugal, e no Porto, desde 2018, o ano da eleição de Jair Bolsonaro para presidente do Brasil. Veio de umas férias com a família na China, chegou cá para a passagem de ano, foi ficando, ajeitou-se aos costumes, foi gostando, gosta cada vez mais de cá estar.
Sentada na sala de casa, sandálias, jeans justos, uma camisola branca decotada a mostrar as marcas milimétricas do biquíni, sorri com dentes perfeitos, é alta, curvilínea como a Kardashian, é vistosa, sabe-o bem. “Socialmente, Portugal é muito menos violento do que o Brasil, é certo, mas o nível de preconceito para com transexuais, homossexuais ou pessoas que de alguma forma parecem diferentes, é o mesmo, é lá como cá”, diz Diana. “Acontece é que aqui são mais envergonhados. E custou, mas habituei, é que cada vez que saio à rua há sempre alguém a olhar, estranhado, a apontar, mandam piadinhas, piropos, é como dizem aqui, não é?, piropos, mas sem piada, de pouca imaginação, ouço risinhos à minha volta por todo o lado onde vá”, diz ela numa cara calorosa, mas capaz do olhar mais glacial. “Por isso, quando saio à rua, ainda que evite andar a pé, visto sempre a minha armadura. E sorrio.”

Transexual e imigrante, sofre a dupla discriminação, a que se somaria uma terceira, caso soubessem que é trabalhadora sexual.

E conta um episódio recente que nos há de envergonhar.

“Foi na Ribeira, que é tão linda, numa dessas tardes de sol. Estava com um amigo gay, os dois a andar de trotinete, muito soltos, a rir muito. E assim de repente, sem mais nem porquê, um homem jovem, não tinha 30 anos, começa a andar atrás de nós, a insultar. Que éramos isto, que éramos aquilo, sempre a xingar, que tínhamos que sair dali. Ainda tentamos confrontá-lo, não valeu a pena, ele só queria atenção.”
Mas Diana, que não é de se ficar — “não consigo fazer vista grossa, sou de ir à luta, sinto essa obrigação, é como sou” —, perguntou onde era a Polícia e ela e o amigo foram apresentar queixa. A experiência não correu bem.

“O polícia que nos atendeu pediu a nossa identificação. Olhou de lado para o meu amigo, olhou e revirou a minha carteira de identidade e começou a tratar-me pelo nome masculino, apesar de eu ser visivelmente uma mulher, e senti-me insultada, rebaixada. Ainda não o mudei, o meu nome, é muita burocracia para quem não é daqui, será mais fácil quando tiver dupla nacionalidade, vou pedir, depois é fácil, vou mudar.”

E Diana continua: “Aquilo prosseguia, mas não ia a lado nenhum, descortesia, pouca educação, sobretudo pouca preparação. O episódio condicionou e reafirmou a ideia que tinha da Polícia portuguesa, preconceituosa, meio xenófoba, meio transfóbica. Não serão todos assim, não é?”, diz Diana a rematar, “mas a Polícia deve dar sempre o exemplo, cortesia, educação, deve ter mais formação humana, esse filme aqui não foi bom, não”.

A transexualidade não é uma doença mental

Só quem passa por lá saberá da inumanidade e do barbarismo que é ver a sua condição sexual natural ser considerada por todos, e pelo Estado, como uma doença de perturbação mental. Transexual é a pessoa que nasce com uma identidade de género diferente da do seu sexo biológico. Isto é, nasceu fisionomicamente homem, mas sente-se completamente mulher, ou o inverso. Trata-se apenas, sabemos hoje cientificamente, de uma contrariedade identitária.

Mas foi só em junho de 2018 que a Organização Mundial da Saúde deixou de considerar a transexualidade um transtorno psíquico. As entidades LGTB (lésbicas, gays, transexuais e bissexuais) passaram décadas a reivindicar que a transexualidade saísse da gaveta das doenças mentais e entrasse na comportamental. Com esta mudança primordial, a OMS mantém a transexualidade no quadro da Classificação Internacional de Doenças para que as pessoas transgénero possam obter ajuda médica nos seus sistemas estatais de saúde. Os tratamentos são psicológicos, endócrinos e cirúrgicos e pretendem levar o indivíduo a sentir-se confortável com o seu género, aumentando o bem-estar psicológico, a autorrealização. Cada país deve adaptar-se ao novo quadro da Classificação da OMS até janeiro de 2022. E Portugal já o fez.

Consequentemente, o número de pessoas que escolheram mudar de nome e de género bateu um recorde entre 2018 e 2020: foram 556 pessoas, segundo o Instituto de Registos e Notariado. 2019 foi o ano de maiores afluências: 236 — o que deu, em média, uma pessoa a cada 37 horas.

Júlia não conhece transexuais no mercado de trabalho formal

Muito do que se avançou por cá deve-se a Júlia Mendes Pereira, que fez ontem 31 anos e só quer continuar a avançar. É uma das dirigentes do Bloco de Esquerda, concorreu às eleições de 2015 no círculo eleitoral de Setúbal, foi a primeira transexual a fazê-lo em Portugal, e ajudou a escrever a lei de 2018 que mudou tudo para as pessoas transexuais. Nasceu em Lisboa, cresceu entre a capital e a margem sul, vive em Viseu, é fundadora e diretora da API – Ação Pela Identidade, uma organização não-governamental para a defesa e o estudo da diversidade de género e das características sexuais.

Mas será mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito. “Em Portugal, apesar dos grandes avanços recentes na lei, estamos ainda em níveis de hostilidade, de discriminação, de verdadeiro preconceito que são muito acentuados. Eu não conheço nenhum ou nenhuma transexual que se tenha integrado no mercado formal de trabalho. Eu própria tentei muitas vezes e nunca o consegui — e continuo desempregada, apesar da minha formação superior. O trabalho sexual, devo dizer, é uma área como outra qualquer, não é a minha, e quem lá estiver pode sentir-se confortável. Mas o problema não é esse. A realidade é que é uma saída onde muitas vezes não há outra solução. E as pessoas transexuais acabam por ser empurradas para o trabalho sexual, quer queiram, quer não.”

Mónica só uma vez na vida teve um emprego fora do trabalho sexual. Não durou nem um ano e foi obrigada a voltar

E depois, a transbordar razão, Júlia pergunta: “Porque é que não é concebível que uma mulher transexual possa ter um trabalho de atendimento ao público? Tanto no setor privado como no estatal. Não acho isto normal”. E essa é a próxima luta. “É necessário fazer por aumentar a empregabilidade das pessoas transexuais. Uma solução legislativa seria a discriminação positiva a nível de empregos do Estado. O Estado deve dar o exemplo na inclusão.”

Mas há outras batalhas e a próxima chama-se terapia de reorientação sexual, também designada terapia de conversão ou terapia reparativa. Esta prática, ainda permitida em Portugal, abarca um conjunto de métodos que visam eliminar a orientação sexual homossexual ou transexual de um indivíduo. As terapias podem incluir técnicas comportamentais, cognitivas e psicanalíticas, além de abordagens médicas, religiosas e espirituais.

“É uma prática bárbara, não tem outro nome”, diz Júlia, “e deve ser proibida e criminalizada. Hoje, o consenso científico é de que essas terapias não são efetivas, não resultam, e podem causar danos físicos e psicológicos graves”. Júlia continua na linha da frente: o Bloco de Esquerda vai levar a debate no Parlamento uma proposta de lei que considere crime as terapias de tentativa de conversão sexual. O PAN – Pessoas, Animais e Natureza também já o fez.

Mónica estava irada e desconfiava da pandemia

Mónica estava irada com a proibição de circulação entre concelhos e a liberdade condicionada. Queria seguir no fim de semana para o Entroncamento, tem apartamento marcado lá, terá que pagar pelo menos parte, senão todo, mesmo que não vá. Era final de março de 2021, ela estava em Aveiro e desconfiava. “Todos os anos morrem dezenas de pessoas de pneumonias e não fechamos o país sem deixar as pessoas circular e ir trabalhar. Eu desconfio muito disto tudo”, diz Mónica, que teve que acatar, como todos, o estado de emergência e a restrição que agora passou. “Mas alguém pensou em nós e como é que nós íamos viver?”

A restrição passou, mas deixou marcas. Mónica sentiu uma quebra de 30% na faturação. “Os clientes tinham receio, andei um ano nesta incerteza, a perder dinheiro, sem saber com o que contar.” Os clientes, como a pandemia desacelerou, já voltaram, não perdeu definitivamente nenhum.

Já está vestida para o encontro que se vai seguir, Mónica, vestido acetinado vermelho e justo, sapatos acerejados, altos, longas unhas, muito maquilhada, solta o grande cabelo preto, ajeita a franja, senta-se na ponta da cama, põe uma perna a baloiçar. Depois diz: “La Veneno. O meu maior ídolo é a La Veneno, a grande artista espanhola, uma mulher transexual que não teve medo de ninguém”.

La Veneno, que se chamava Cristina Ortiz Rodríguez, foi uma cantora, atriz, trabalhadora do sexo e influencer do seu tempo. É considerada um dos ícones LGBT mais importantes e queridos de Espanha, ganhando fama nos anos 1990 ao afirmar a transexualidade frontal. Num trajeto estrondoso, depois de um livro escandaloso, “Ni puta ni santa”, em que revelava nomes famosos e dos círculos do poder, morreu esquecida em 2016, tinha 52 anos, depois de uma queda em casa. A autópsia revelaria a fatalidade: excesso de álcool com uma dose de Xanax cavalar. Teve um reflorescimento recente de fama, com o lançamento em 2020 da minissérie biográfica no canal HBO “Veneno”, que Mónica já viu várias vezes sem moderação.

Diana tem um sonho e sabe quando vai sair para o fazer

Liberdade é pouco, o que ela deseja ainda não tem nome, mas a naturalidade perante uma pessoa transexual há de chegar, acredita Diana, que nasceu noutro tempo definitivo, é muito desempoeirada. Mas a sua transformação foi árdua de fazer.

“Percebi aí aos 12 anos que o meu corpo masculino estava errado, era o que sentia. E primeiro assumi-me homossexual. Mas depois, já aos 15 anos, conheci uma mulher transexual e ela disse-me na cara: ‘Querida, você é trans!’. E era. Comecei a tomar hormonas, a bloquear o crescimento masculino, a pensar na transformação total.” No início a família rejeitou-a, saiu de casa, foi morar com a avó. “E continuei a minha transição, consultas, operações, é tudo muito doído, fiz 18 anos, fiz ao meu corpo tudo o que podia fazer para ser a mulher que sou, só não fiz o corte final, ainda vou fazer. Mas quando tiver uma vagina”, diz ela muito direita, muito direta, “vou ser mulher completa, mas vou sempre ser trans, é aquilo que sou. Não é o sexo que nos define, é a humanidade, ou a capacidade de sermos humanos, que diz quem é que somos”.

“Para mim”, diz Diana, “entrar no trabalho sexual foi natural. Ser trans fecha-te portas, perdes amigos, a sociedade recebe-te mal, não consegues um emprego normal. A rua é a saída para 99% das trans. E do outro 1% eu não conheço ninguém”.
Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo de vida, qualquer um pode começar agora e inventar um novo fim. Diana, que na sua área é muito popular – “levo cem euros, trabalho em qualidade, não em quantidade” – e poupa dinheiro para mandar para a família no Brasil, quer ser psicóloga, “vou tirar curso”, e quer ser empresária, dona do seu negócio de moda. “Só estou nesta vida até aos 30 anos, depois saio. O meu sonho sou eu que o vou fazer. Quero casar, quero ter filhos, quero ser uma perfeita mulher.”

Júlia soube sempre que quando crescesse seria uma mulher

Desde que se lembra, Júlia, que agora se passeia muito serena entre os claustros vetustos da Sé de Viseu, soube sempre que era uma mulher — e não um homem como o seu corpo a queria fazer crer. “Tinha três ou quatro anos e julgava que quando crescesse ia ser uma mulher como a minha mãe ou a minha irmã, era um pensamento natural para mim. Com essa idade, tão pequenina, ainda nem sabia ler, estava um dia no cabeleireiro com a minha mãe e vi uma reportagem numa revista sobre a Roberta Close [supermodelo e socialite brasileira, a primeira transexual a surgir na capa na Playboy, na década de 1990; hoje tem 56 anos, casou e vive na Suíça longe dos holofotes]. E ela mexeu comigo. Não sabia bem o que estava a ver, mas a minha mãe leu-me o que lá dizia. E percebi que haveria esperança para mim.”

Quando tinha 16 anos e já se tinha assumido à família – “foi aos 13, já tinha aprendido a palavra cisgénero, coisa que eu não era, era transgénero, e disse-lhes” –, deu-se o assassinato de Gisberta, transexual brasileira morta no Porto em 2006 por um grupo de 14 rapazes com idades entre os 12 e os 16 anos.

“Fiquei aterrorizada. Já estava a fazer a minha transição, ainda vivia em Lisboa e sofria bullying todos os dias no liceu, estava à procura de modelos de vida e acontece aquele horror. Era um medo de morte, achei mesmo que também me podiam matar!” E ninguém saberá, a não ser que passe por lá, o que é essa medida de pavor: “A Gisberta foi morta por rapazes que tinham a minha idade!”. E Júlia pôs-se em silêncio depois daquela exclamação.

Mónica percebeu o que era aos seis anos de idade

Mónica, que está agora espraiada na cama deitada de barriga para baixo e consulta alternadamente os três telemóveis – um é do trabalho com o número que anuncia em jornais e nas páginas de Internet dos classificados X, outro é o seu número privado que não dá a ninguém, o terceiro foi-lhe oferecido por um cliente dedicado que julgava que estava apaixonado –, nasceu em Caracas, Venezuela, filha de pais emigrantes e nos anos 80 regressou com a família a Portugal. Teve consciência de si e da sexualidade muito cedo, foi uma coisa aguda que não conseguia disfarçar.

Júlia Mendes Pereira, do BE: a próxima batalha é ilegalizar a prática das terapias de reconversão sexual. “São bárbaras”

“Tinha entrado para a escola, tinha seis anos, e num Carnaval quis-me vestir de bailarina. E vesti. A professora estranhou, falou comigo, quis-me mandar ao psicólogo, chamou a minha mãe, eu fui e disse-lhe que era uma menina, que não me sentia um rapaz. Mas eles continuavam a chamar-me pelo nome que me puseram, que era um nome masculino, e eu sentia que aquilo era errado, mas ainda não sabia bem explicar. No Secundário foi pior, não quero falar disso, para mim é um capítulo encerrado, custou a passar, olhavam-me de lado como se fosse um bicho raro. Mas não sou, só nasci num corpo errado. Sei bem o que sou, sou uma mulher transexual, sou hetero, sinto-me atraída por homens. E nunca tive vergonha daquilo que sou.”

Durante a adolescência viu na TV dos EUA, no programa “Geraldo”, um talk show tabloide sobre coisas e pessoas sensacionais, uma entrevista a um homem que assumia ser mulher. “É a minha luta, isto sou eu”, disse Mónica. E começou a tratar de si, tomou hormonas, tomou bloqueadores da puberdade, fez as consultas de psicologia e psiquiatria, fez a mamoplastia que tanto queria fazer, fez lipoescultura, harmonização facial, falta-lhe só o último passo, a vaginoplastia da transformação final que ainda há de efetuar. Em 2016, já vigorava a lei da autodeterminação sexual, que é de 2011, mudou oficialmente de nome, pagou 200 euros, hoje o processo é gratuito, foi melhorado na lei de 2018, chama-se Mónica, é Mónica que quer ser.
“Vivi sempre como mulher, sou mulher, tive vários namorados, vivi numa união de facto sete anos, depois separei-me. Só por uma vez tive um emprego normal, vamos dizer assim para simplificar, era empregada num restaurante/bar, durou menos de um ano, não resultou, mais ninguém me deu emprego, voltei ao trabalho sexual.”

O florescimento de Júlia e a forma de se aceitar

A transição de Júlia foi severa e fatigante. A relação “muito difícil e complicada” com a mãe durou toda a sua adolescência e só mudou quando Júlia assumiu oficialmente o seu nome feminino, o nome que sempre mereceu ter. “Reconstruímos a relação a partir daí. Hoje damo-nos bem, ela aceita e compreende a minha condição.”
Tinha 21 anos quando foi ao Registo Civil. “Na altura ainda se cobrava 200 euros pela mudança do nome próprio e era ainda obrigatório levar o terrível diagnóstico de perturbação mental. Hoje já não, mudamos a lei, a autodeterminação simplificou-se como deve ser.”

A sua metamorfose envolveu muitos médicos, demasiados, demasiadas instituições, pareceres a mais. Júlia passou por psicólogos, psiquiatras e bisturis, foi a consultas no Hospital Garcia de Horta, depois no Santa Maria, teve consultas de sexologia com Daniel Sampaio, depois entrou no Júlio de Matos, por fim na Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual do Hospital de Coimbra, que é ainda hoje centro de referência nacional.
Fez a primeira cirurgia em 2013, implantes mamários, fez terapias hormonais, a segunda cirurgia, genital, foi um ano depois. “Nunca tive dúvidas”, diz Júlia declarativa, as palavras cheias de brandura. “Soube sempre quem eu era. E já me pacifiquei com o processo todo. Terei sentimentos enterrados, evito visitar certos detalhes mais vivos, essa é a minha forma de fazer o ‘coping’, de lidar, de me aceitar.”

Enquanto se passeia plácida e etérea pelo centro histórico de Viseu, parece querer ser invisível, é uma tarde de abril e sol, Júlia faz lembrar demasiadamente Antony Hegarty, o cantor nova-iorquino de pop de câmara que em 2015 assumiu a sua transexualidade. Agora, Antony tem 49 anos, chama-se Anohni e responde pelo pronome feminino. “As palavras são muito importantes. Chamar uma pessoa pelo género que ela escolheu é honrar o seu espírito, a sua vida, é reconhecer a sua contribuição. Prefiro ser ‘ela’. ‘Ele’ é um pronome que me nega, é dissimulado para mim”, disse a artista à revista norte-americana de vanguarda “Flavorwire”. Depois confessou a sua florescência ao jornal inglês “The Guardian”: “A condição trans é um mistério muito belo, é uma das melhores ideias da Natureza. Que impulso incrível, que compele uma criança de cinco anos a dizer aos pais que não é o que eles pensam que é. Com apenas um bocadinho de oxigénio, essas crianças podem florir. Elas dão às outras pessoas possibilidades de se explorem mais profundamente, permitindo que as cores de sua própria psique brilhem com todo o seu fulgor”.