Sobreviver a uma tragédia e voltar a ser feliz

Para Carolina, Luís, Paula e Leónia há um antes e um depois. Antes do acidente e depois do acidente. No meio há um instante de perda. O momento em que a vida, como a conheciam, acabou. Feito o luto, há que reaprender a viver com a ausência do que foi perdido e não volta. E reencontrar a possibilidade - real - de ser feliz.

O dia em que quase morreu começou por ser normal. A 28 de maio de 2014, uma quarta-feira, Carolina Matias, então com 19 anos, passou o dia nas aulas, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde frequentava o segundo ano. Depois de Microbiologia, que terminou às 18 horas, apanhou boleia com uma colega. Saiu do carro. Disse adeus às amigas. Não se lembra de mais nada. “Os médicos não davam nada por mim. Diziam que se eu sobrevivesse – o que era pouco provável – ficaria um vegetal”, conta Carolina, hoje com 27 anos. O atropelamento causou-lhe um traumatismo cranioencefálico (TCE) com um enorme hematoma subdural e tiveram de lhe fazer uma craniotomia descompressiva. Depois do coma de três meses começou a verdadeira luta: esteve um ano internada em reabilitação. “Mesmo assim, quando saí, ainda usava andarilho. Tem sido tudo muito devagar, não é como nos filmes, em que a pessoa acorda do coma e está boa.”

Sete anos depois, continua a fazer fisioterapia neurológica três vezes por semana. E, apesar dos problemas de mobilidade e da fala afetada, acha que as suas atuais capacidades são um milagre. “Às vezes pergunto-me: como é possível eu ter um discurso coerente? O hemisfério direito do meu cérebro está morto. Estou a ser salva pelo lado esquerdo.”

Antes, só tinha um sonho: ser médica. “Era obcecada com o estudo e achava que tirar uma negativa era a pior coisa do Mundo. Agora sei que a pior coisa do Mundo é morrer.” Ainda não desistiu do sonho de terminar Medicina, mas sabe que é um objetivo a longo prazo. No ano passado regressou à faculdade. Conseguiu fazer algumas disciplinas, mas também percebeu que ainda está fragilizada. “Agora é tudo muito prático e quero recuperar mais para aproveitar a experiência a 100%. Fiz o que pude. Não foi muito, mas temos de ir grão a grão. Sou muito diferente. Não sou como antes.”

“A pessoa que sofre lesão cerebral grave vivencia uma rutura com o ‘eu’ anterior, nomeadamente, na alteração das capacidades intelectuais e funcionais. Então – com toda a resiliência que isso exige – diz que é uma nova pessoa”, sintetiza Isabel Mota, psicóloga da Novamente, associação de apoio aos traumatizados cranioencefálicos que apoia mais de 500 famílias. As sequelas de um traumatismo cranioencefálico, explica a psicóloga, podem ser variadas, mas “afetam sobretudo a fala, a concentração, a memória de curto prazo, o processo de tomada de decisão, o humor e o sentido de orientação espacial, sendo que também existem sequelas motoras mais frequentes, que estão relacionadas com a motricidade fina, equilíbrio e marcha”.

O sonho do ‘novo eu’ de Carolina é ter um emprego na receção de um centro de saúde ou clínica. “Tenho muito boa comunicação interpessoal e, assim, tinha contacto com os utentes, mas sem responsabilidade clínica”, confessa com um sorriso contagiante. Este sonho está por concretizar, mas há outros que já realizou. Desde o acidente, há sete anos, orgulha-se de ter feito um curso de inglês e de ter publicado um livro. Chama-se “Fases da Vida” e nele conta como foi, para ela, reaprender a viver.

Com o seu exemplo de persistência, espera não só inspirar pessoas e famílias que estão a passar pela mesma situação, como deixar um alerta para quem nunca viu a vida ficar voltada ao contrário: “Saboreiem cada momento. A verdade é que nunca sabemos qual vai ser a última vez que fazemos alguma coisa. Há coisas que não me lembro de ter feito pela última vez porque, para mim, era só mais uma. Afinal, foi a última”.

O luto é para sempre

Agora está tudo bem. Agora já não está tudo bem. Para Paula Beliz, o momento em que a vida se dividiu assim, em duas, foi às 8.10 horas da manhã de 6 de junho de 1998, um sábado, quando fazia o caminho entre Castro Verde e Lisboa, na A2. A geóloga e professora de Ciências, na altura com 37 anos, ia a uma biblioteca lisboeta contar uma história para crianças, escrita por si. Era sobre um dinossauro muito amigo do ambiente.

O marido ia ao volante, a mãe no banco da frente, Paula atrás, sentada com os três filhos: Rita, de 8 anos, Tiago, de 6 e a Joana, de 3. Dos momentos de consciência a seguir ao despiste e embate noutra viatura, recorda-se de ouvir a sua própria voz a rezar o Pai Nosso, da mão de um bombeiro nas suas costas, de olhar à volta e ver toda a família a dormir.

O marido ia ao volante, a mãe no banco da frente, Paula Beliz, atrás, sentada com os três filhos: Rita, de 8 anos, Tiago, de 6, e Joana, de 3. Foi a única que sobreviveu, mas, sobre esse dia, diz: “Também eu morri”
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Foi a única que sobreviveu, mas sobre esse dia diz: “Também eu morri”. No silêncio da cama de hospital, decidiu viver por amor. “Em homenagem a toda a minha família”, realça. Também ela ficou entre a vida e a morte. Esteve internada dois meses, teve de reaprender a andar e, de certa forma, teve de reaprender a viver. Voltou ao trabalho passados quatro meses. “E foi junto dos meus alunos que encontrei mais algum sentido para a vida”, assume.

O seu luto teve várias fases. Nos primeiros tempos, confusos, chegou a pensar: “Será que fui eu que morri e eles estão vivos?” Muitas vezes chorava e logo depois se aprumava. “Imaginava-os como os anjinhos da Capela Sistina, pendurados numa nuvem, a bisbilhotar para ver como é que eu estava. Então, tinha de estar bem, tinha de recuperar e de sorrir, para que ficassem tranquilos.”

Só um ano e meio depois se sentiu capaz de falar e procurou ajuda. Fez psicoterapia durante três anos. “Na fisioterapia, eu estava a fazer uma reestruturação exterior, a psicoterapia ajudou-me a fazer uma restruturação interior. Porque eu era como uma casa com as paredes exteriores em recuperação, mas com tudo destruído por dentro. O psicólogo fez, com muita gentileza, um grande trabalho.” Depois entrou também num grupo de entreajuda de pais em luto. “Também foi muito importante, fala-se uma linguagem idêntica.”

Há nesta mulher de 60 anos e sorriso doce – que nunca se zangou com a história do dinossauro – uma tranquilidade que impressiona. “Senti, e ainda sinto, amor e gratidão por os ter tido na minha vida. Mas também houve um tempo em que decidi que não poderia viver só por eles, que teria que aprender a viver por mim.” Foi nessa altura que começou a viajar e a frequentar cursos de autoconhecimento.

Ainda assim, acabou por vir o stress pós-traumático. “Como se fosse o corpo a dizer-me ‘já chega’. Tenho memórias e preciso de as gritar com a minha linguagem.” Ainda hoje, 23 anos depois, há momentos em que o corpo e o espírito protestam. “É um processo de luto que não tem fim. É uma transformação contínua de um amor com dor num amor sem dor.” O processo de aceitação, para ela, além do amor, tem por base uma crença: “Um dia todos nos voltaremos a encontrar e a abraçar numa vida para além da morte”.

O luto é, simultaneamente, a saudade do passado e do futuro. “A minha definição de luto é aprender a lidar com a saudade” diz Carlos Céu e Silva, psicólogo clínico, fundador da Olhar – Associação pela Prevenção e Apoio à Saúde Mental e presidente da Laços Eternos – Associação de Apoio a Pais em Luto. “Há a saudade por aquilo que se perdeu e por aquilo que já não se pode viver”, resume. Nessa medida, e partindo do princípio que a saudade é algo que nos acompanha para o resto da vida, o luto é um processo que nunca fica completamente concluído. “Apesar, claro, de se irem encontrando formas de lidar com a perda e a ausência, o luto, por vezes, é uma doença crónica: ninguém, até hoje, descobriu a cura para o luto por um filho.”

Aquilo que já não se é

O luto não é apenas encarado como a perda de alguém, pode ser a perda de alguma coisa. Uma capacidade, por exemplo. Olhar para as principais razões de incapacidade em adultos é olhar para os acidentes nas estradas. Apesar dos esforços para baixar estes valores na última década, em 2019 morreram mais de 22 mil pessoas nas estradas da Europa e, segundo a Comissão Europeia, por cada morte estima-se que haja quatro pessoas com incapacidade permanente provocada por lesões cerebrais, como no caso de Carolina, ou na coluna vertebral, como aconteceu com Luís.

Luís André, operador de telecomunicações, de 48 anos, viu-se privado da capacidade de andar depois de um despiste de mota entre Ourique e Castro Verde, em fevereiro de 1995. Tinha apenas 22 anos, mas tudo aquilo lhe era familiar: bombeiro voluntário desde os 16 anos, estava habituado a acorrer a acidentes de viação. Agora estava do outro lado.

Luís André, operador de telecomunicações, de 48 anos, viu-se privado da capacidade de andar depois de um despiste de mota entre Ourique e Castro Verde, em fevereiro de 1995. Tinha 22 anos
(Foto: Carlos Vidigal/Global Imagens)

Ainda deitado no chão, depois do despiste de mota, Luís André pensou nas regras de abordagem ao sinistrado com suspeita de lesão vertebromedular e pediu aos amigos para chamarem os “seus” bombeiros, de Ourique, que sabia terem formação e equipamentos para ajudar. Mas na casa onde os companheiros acorreram para fazer a chamada a pedir ajuda, só sabiam de cor o número de outra corporação – mais próxima, mas com menos meios.

“Pedi-lhes um colar cervical e uma maca rígida, mas não tinham esses equipamentos. Eu estava caído de barriga para cima e, na ambulância, deitaram-me de barriga para baixo. A meio do caminho voltaram a mudar-me de posição”, recorda Luís André. Que papel teve isso no desfecho, não sabe. Sabe que, naquele dia, já no hospital de São José, em Lisboa, o médico disse-lhe o que já sabia: que dificilmente voltaria a andar. Depois de três meses de reabilitação voltou a uma vida diferente. Sobre rodas.

O psicólogo Carlos Céu e Silva, que trabalha também na área da deficiência, é perentório: a sociedade ainda não está preparada para lidar com a deficiência. E quando uma pessoa habituada a ter uma vida autónoma é vítima de um acidente e fica dependente de uma cadeira de rodas, no imediato, “há também uma morte interna que essas pessoas vivem”. É, em certa medida, a morte de quem eram. Perante isso, podem acontecer duas coisas: “Alguns desistem, porque é muito difícil; outros conseguem interiorizar a perda, fazer um trabalho de renovação e investir no futuro”.

Luís André conseguiu investir no futuro. “Tenho toda a autonomia: a minha casa, o meu carro, o meu emprego. Considero-me uma pessoa feliz”, garante. O sonho de concorrer à Polícia de Segurança Pública, que tinha aos 22 anos, ficou suspenso. Mas não deixou de ser bombeiro, apesar de assumir funções diferentes. Desde há muitos anos é operador de telecomunicações nos Bombeiros Voluntários de Ourique: é ele que atende as chamadas de socorro. “De início custava-me não poder ir ajudar no terreno. Ainda hoje custa, sobretudo quando são acidentes de mota. Mas sei que o que faço também é importante. E gostava que deixassem de olhar para as pessoas que andam de cadeira de rodas como coitadinhos. Somos pessoas válidas e cidadãos úteis.” Considera que as maiores barreiras não foram internas – foram externas. “Em 1995 era tudo pior. Uma pessoa sentia-se mais perdida, sem saber onde ir buscar a informação que precisava para viver assim. Hoje é diferente. Na Associação Salvador, por exemplo, da qual sou embaixador, temos um manual com todas as indicações práticas.” Mas ainda há muitas batalhas a travar: “A atribuição atempada de produtos de apoio, como as cadeiras de rodas”, é uma delas e as condições de acessibilidade outra.

Cada saída de casa que fuja às rotinas tem de ser planeada e, mesmo assim, muita coisa pode correr mal. “Há muitas barreiras arquitetónicas: degraus, falta de rampas, rampas demasiado inclinadas, portas muito estreitas, falta de lugares de estacionamento para mobilidade condicionada. Já me aconteceu ir para um hotel que se diz acessível, ligar antes para confirmar e, mesmo assim, quando chego, afinal há degraus ou a cadeira de rodas não passa na porta da casa de banho.” Apesar das dificuldades, insiste nesta ideia: “Não deixem de sair à rua”.

Do lado de lá do obstáculo está outra vida

“Primeiro é preciso fazer o luto e aceitar. Mas, depois, também é necessário procurar e agarrar oportunidades, não ficar fechado em casa”, sublinha também Leónia Braga. A sua apresentação no Instagram é “amputada feliz”, mas foram precisos muitos anos para chegar aqui.

Se a Leónia Braga de hoje, com 41 anos e feliz, pudesse viajar no tempo e falar com a Leónia de 20, em luto pelos sonhos perdidos, dizia-lhe: há vida do outro lado dos obstáculos. “Não tive ninguém que me dissesse isso na altura, mas mesmo que tivesse tido, acho que não ia acreditar. Só vemos a dor, o mundo de sonhos perdidos.”

Leónia tinha 20 anos e era militar quando um acidente num comboio a fez perder os dedos do pé direito. O sonho da carreira no Exército morreu ali e seguiram-se 16 anos de tormento: infeções ósseas, intervenções para as controlar, dor permanente e muito incapacitante. Em 2016, farta de tudo, exigiu a amputação, que teve de ser feita pelo meio da perna.

Leónia Braga era militar quando, aos 20 anos, um acidente num comboio a fez perder os dedos do pé direito. Seguiram-se 16 anos de tormento. Farta de tudo, exigiu a amputação, que teve de ser feita pelo meio da perna. É praticante – e pioneira em Portugal – de parajiu-jítsu
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Livre de dores e em adaptação à prótese – mas a sentir-se sozinha e um pouco deprimida – virou-se para o desporto. Começou pelo voleibol sentado, a seguir foi para o ginásio. Um dia ficou para assistir a uma aula de jiu-jítsu, arte marcial originária do Japão. E depois, assim como houve um momento que lhe destruiu os sonhos, houve este acaso que lhe deu novos sonhos. “O Nuno Sampaio [mestre de jiu-jítsu] chamou-me para dentro do tatâmi. Eu disse que não podia, que tinha um problema. Mostrei-lhe a prótese. Mas ele respondeu: ‘Isso não é problema nenhum’ e estendeu-me a mão.”

“Não digo que o jiu-jítsu me salvou a vida, mas foi um pilar para uma vida diferente: deu-me autoestima, colegas e amigos. Dentro do tatâmi nunca me senti uma pessoa com deficiência. E então comecei a pensar: se consigo fazer isto, consigo fazer outras coisas. Comecei a ter mais objetivos, outros sonhos.” Tornou-se a primeira amputada portuguesa a competir em campeonatos oficiais de parajiu-jítsu e já trouxe quatro medalhas (duas de ouro e duas de prata) para casa. Chama-lhes “a cereja no topo do bolo”. Porque não valem por elas próprias, mas por aquilo que significam: o esforço, o foco em objetivos, o percurso, o trabalho, a dedicação.

Acabada de fazer uma formação de técnica administrativa, o próximo projeto é arranjar um novo emprego, para garantir estabilidade financeira. “Temos de ter objetivos”, frisa outra vez. “Temos de fazer acontecer.”

Fazer acontecer. Talvez seja isso que Carolina, Luís, Paula e Leónia têm em comum. Foram protagonistas à força de um guião que não escreveram. Mas nunca deixaram de acreditar que também podiam fazer escolhas e tomar decisões. São narradores das suas vidas. Contam o que lhes aconteceu. Mas também são sujeitos de ação. Fazem acontecer.