Rui Cardoso Martins

Smart e generoso, menina

Uma das memórias dramáticas da infância foi quando nos roubaram o carro, em férias. Naquele tempo, o carro fazia parte das famílias portuguesas. O meu pai e a minha mãe a olharem o espaço vazio, numa praceta de Oeiras, e a certeza de que a praia desse dia estava arruinada, a quinzena estragada, o semestre em risco, e assim se fez. Numa madrugada dos anos 1970, foi levado da casa de férias dos seus pais o pequeno Fiat 124 azul-escuro, matrícula… não acredito que me esqueci, confundo-a com o Peugeot 404 que veio depois. Um dia um senhor disse ao meu pai: “Eu ontem ia-o vendo. A sua matrícula não é SG-40-56? Ontem vi um Peugeot 404 guiado por um careca e de matrícula SG-40-57. Quase que o via a si!…” O Fiat apareceu meses depois, a carroçaria espancada e, naquela maneira triste dos carros estuprados, já morto pela maldade dos homens. É por isso que admiro o pragmatismo alegre do sr. Lourenço em relação ao seu carro, um minúsculo Smart, da Mercedes. É verdade que não chegou a fermentar de surpresa e de raiva, nem teve tempo. A Polícia telefonou-lhe às quatro da manhã para ir à esquadra: o carro fora furtado, mas os ladrões apanhados em flagrante. Agora, no banco dos réus, um jovem negro escutava o relato do assalto pelo polícia que o capturou.

– Os telemóveis e as chaves estavam dentro do carro que estava a ser furtado, o Smart. Entretanto, no outro veículo também havia lá mais objectos… telemóveis.

– O arguido não estava dentro do Smart quando o apanharam?

– Não, tinha acabado de sair do Smart. Ele tinha alguns objectos com ele e telemóveis. E umas chaves da viatura. Dentro do Smart deixou os outros objectos: a chave de estrela, o roquete… as ferramentas.

A seguir, entrou o dono do Smart, um homem robusto e alegre que levava de avanço meio metro de barriga.

– Tem ideia de onde é que o seu veículo foi encontrado?

– Perto da morada de casa. Eu fui acordado de madrugada pela Polícia para me deslocar à esquadra porque o meu carro tinha sido furtado, mais nada, não sei mais nada.

Observem o desprendimento do sr. Lourenço. Os ladrões tiraram um iPad e um iPhone do interior. Drama? Não:

– Eram da minha filha e ela, prontos, deixou por lá no carro.

– Sabe qual seria o valor?

– Aquilo também era um telemóvel que já estava obsoleto, não é por aí. Eu por mim o que quero repor é o valor da viatura que foi danificada.

– Olhe que neste processo não consta o pagamento de indemnização civil. Não vai conseguir o ressarcimento do dano da viatura. Só está a ser julgada a parte criminal. Estou a dizer-lhe para não ficar surpreso…

– Eu já estou! O que me interessa a mim é os danos sofridos e que foram causados.

– Tem noção de quanto? Tenho aqui um valor de 1 750 euros.

E foi então que o sr. Lourenço mostrou a sua, por assim dizer, extrema humanidade. De repente, a juíza era uma menina à frente dele, como se estivesse ao balcão de uma loja de acessórios.

– Isso será da capota estragada. Não sei, menina, não sei.

– O senhor foi prestar declarações à Polícia, deu um valor.

– Não, menina, eu pus um orçamento que…

– Aqui sou senhora juiz…, suspirou a juíza.

– Desculpe, doutora juíza. Eu fui aonde me mandaram.

– Os bens foram-lhe entregues?, começou a procuradora.

– Sim, uns foram recuperados… E mesmo os rapazes, eu não os quero prejudicar. Eu só quero… não sei doutros momentos, não sei o que aconteceu, eu quero é ser ressarcido daquilo que me foi prejudicado. Que é a minha viatura.

– Então, vou-lhe fazer uma pergunta. Se o senhor estivesse na disponibilidade, se… pretendia manter o procedimento criminal contra estas pessoas? Queria ou não?

– Se eles resolverem o problema que me causaram na minha viatura que… sejam felizes! Por amor de Deus, não quero nada disso! Eu pretendo que os meus danos sejam repostos. Mais nada, mais nada.

– Muito obrigado, terminou o seu depoimento.

– Um bem-haja e bom trabalho!

E dali saiu o sr. Lourenço, empresário, o meio metro de barriga à frente, o perdão à retaguarda. Um carro é só um carro, menina.