O entretenimento sexual digital cresceu com a quarentena. Um vírus que ninguém quer parar. É a nova montra do real e continua a fazer dinheiro só com desejos e excitação.
Deadly Raquel é uma rapariga de grandezas kardashianas que percebeu que o seu corpo é uma nova moda porque é a vida real. Ela filma-se nua em autossatisfação e ganha dinheiro com os outros a ver. Alexandre Claro, brasileiro, é um “escort boy” que antes da pandemia trabalhava num centro de dia. “Sou uma pessoa na contramão do moralismo, é onde gosto de estar.” Márcia entrou por vingança: o marido tinha-a traído e na revolta, depois de o deixar, meteu-se nas redes sociais da depravação sensual. Flávia só queria aumentar a autoestima e cortar com a solidão. Está a conseguir as duas coisas e a ganhar dinheiro para se mimar. Raquel P, um fac-símile de Nicky Minaj, tem uma história desgostosa para contar: publicava fotos transluzentes, mas os machistas da sua empresa descobriram-na e ela sofreu o assédio dos anormais. Teve que desistir, mas se calhar é tempo de voltar. Estas pessoas são reais e têm tudo de especial.
O quarto de Raquel tem vista para uma figueira-mansa algo tanto incomum. É gigantesca, cresce como se caminhasse pelo dorso da falésia acima, rápida e despenteada a bradar em todas as direções, laçada de braços e folhas esticadas de cinco lobos em langor. E está cheia de figos enormes como ela. Mas há algo ainda mais exótico naquela extravagante figueira: a crescer por todos os lados, a serpentear à volta dela, dentro dela, por ela arriba como cordas vivas, avançam silvados de ramos delgados cheios de amoras pretas polpudas a pender.
Raquel não se lembra que a figueira é a árvore da Bíblia primordial, nem lhe interessa discutir culpa, transgressão ou Adão – nada do que ela faz é pecado, é só extremamente comum: ela acabou de ter um orgasmo. Estava sozinha no seu quarto e o que fez a seguir também foi banal: bateu com a tampa do computador, terminando abruptamente a transmissão em direto na sua página do Only Fans, empurrou o aparelho para o fundo da cama com os pés, soterrou-os na colcha carmim e ficou perdida de pensamentos a mirar as mãos. Tinha longas unhas brancas recurvadas como garras ou como percebes albinas, esticou um braço e levantou a palma da mão para a frente, como se estivesse a mandar parar uma multidão imaginária. Eram 11 horas da noite, já chega, disse ela para ela, tinha acabado o seu dia de trabalho. Uma das unhas precisava de retoque, reparou quando as inspecionou ao perto, a mexer os dedos junto à cara como uma aranha.
O streaming trepa por todos os lados
Foi de um dia para o outro e depois todos os dias seguintes durante um ano: em dezembro de 2019, a rede social de conteúdos pagos Only Fans, que aloja fotos, vídeos e difunde transmissões em direto de pornografia ou erotismo, já tinha 17 milhões de subscritores mensais. Em março de 2020, quando a pandemia do coronavírus eclodiu e atirou o Mundo para a prisão social, o número duplicou. Quando 2021 chegou, aquele valor espantado já subira sete vezes e a plataforma pulara para 120 milhões de pessoas que em todo Mundo pagam para entrar na janela de sexo virtual. O movimento foi semelhante a um fogo de artifício: uma vertiginosa elevação seguida de uma explosão sideral; a cada mês o Only Fans somou tantos clientes como em todo o ano anterior. O número de criadores de conteúdos que nutrem os fãs viu uma aceleração ainda mais estonteante: cresceu 17 vezes, de 60 mil em 2019 para mais de um milhão em 2021. Os seus lucros assombram: retém 20% dos dois biliões de dólares que os seus clientes gastaram só no ano passado (todos os dados: Influencer Marketing Hub).
A vertigem replica-se consumista em muitos serviços de streaming e entretenimento digital geral: o grande grossista de cinema e séries Netflix passou de 167 milhões de assinantes em 2019 para 207 milhões em 2021; a discoteca virtual Spotify dilatou de 124 milhões de utilizadores para 165 milhões atuais; e o maior retalhista do Mundo de entretenimento sexual online, Pornhub, aumentou 21% na Europa central entre março e abril de 2020 (dados: Statista).
Mas como se explica a espetacular expansão do Only Fans, a plataforma onde os sonhos se fazem carne e a carne se faz dinheiro e que é a que mais cresceu na quarentena mundial? Numa palavra: proximidade. Se o Pornhub é um hipermercado colossal, onde entre tantos clientes que entram todos parecem iguais, o Only Fans, com o seu design simples, suave e quase caseiro, mas muito fácil de navegar, é uma loja de comércio tradicional. E tem todos os préstimos associados à gratidão: familiaridade, trato pessoal, reconhecimento, é um lugar onde os desejos são tratados pelo nome com intimidade, onde a confiabilidade é uma recompensa real. Mas, num Mundo saturado de perfeição, de pessoas com imagens inalcançáveis, haverá outra palavra ainda melhor: realidade. As pessoas que se ali se despem e exibem a sua autossatisfação sensual, são pessoas reais, não estão a fingir, são tangíveis e têm defeitos como nós. Ou, como nos vai dizer Raquel, a verdade – e a verdade quer ser sempre libertada – é uma coisa que dá tesão.
Raquel é autossustentável e ainda ajuda no orçamento familiar
O “nom de plume” dela é Deadly Raquel, o que quererá dizer Raquel Fatal. É uma mulher de proporções kardashianas, uma BBW, Big Beautiful Woman, diz ela, mulher volumosa bonita. Tem 22 anos, mora na margem sul da capital de Portugal e é uma rapariga comum que desde março de 2019 publica e transmite no Only Fans os seus momentos solipsistas de luxúria confidencial.
Tem 231 fãs que são clientes pagantes com taxas variáveis entre 4,99 dólares e 49,99 (o dólar é a moeda referencial global e os pagamentos são eletrónicos, PayPal, transferência bancária, MB Way, etc.) e ocorrem sempre promoções. O Only Fans fica com 20%, os restantes 80% são o lucro de Raquel. Além da taxa mensal, os fãs também pagam pontualmente por produtos específicos, que, por exemplo, num vídeo encomendado com fetiche pode começar em 100 dólares e só parar no tamanho do desejo ou da carteira de cada um – dependerá de cada tipo de parafilia, que é o substantivo que mede as excitações sexuais mais estrambólicas.
Nos melhores meses, Raquel encaixa 1500 dólares mensais. Não só consegue sustentar-se como ainda contribui com a maior fatia para o orçamento familiar. Produz os seus próprios conteúdos, é dona do seu produto, nem sempre se despe, às vezes fica só em lingerie, ou a filmar os pés, mas tem uma gaveta inteira colorida, debaixo da cama, cheia de brinquedos sexuais com que atinge apogeus orbitais, e essa é a sua especialidade mais prezada.
Ela está no seu quarto branco, que é a divisão da casa do trabalho e do prazer. Move graciosamente a sua mais-valia: o exagero ambulante do seu corpo. “Sou uma rapariga normal, cheiinha, não tenho as medidas das miúdas das revistas, sou a ‘girl next door’, a vizinha do lado, que é real e é acessível e isso é o que faz muita gente ter tesão”, diz Raquel a balançar nas mãos os óculos de massa e um ar salaz. “É essa sensação de proximidade, de verdade, de pessoa real, é isso que conta no Only Fans.” Conta mais: “De certo modo, vendo fantasias, não me vendo a mim, mas são fantasias verdadeiras, aquilo que mostro não é uma personagem, não tem efeitos especiais, não é outra persona, sou eu”.
Raquel interage com os fãs através de mensagens privadas, é uma regalia de quem paga, o que faz com que os fãs sintam que aquela mulher que adulam na montra virtual é a sua namorada digital. Ela relata as copiosas mensagens, “é bom dia alegria, é boa noite princesa, é então até amanhã e como estás minha querida e bom dia e bom dia e elogios então é o pão nosso de cada dia”, diz ela de lufada. “Às vezes, eles só querem desabafar, só querem companhia. Eu sou, eu sei, também uma educadora sexual, uma terapeuta, dou-lhes conselhos, ajudo-os, partilho o que sei, não sou só uma trabalhadora sexual, sim, não tenho medo do nome, faço esse trabalho, só não faço encontros, aliás tenho isso escrito no meu perfil a letras garrafais.” Mas mesmo assim, conta ela, não há um dia em que não receba propostas imundas para sair para o lado de cá do ecrã. “É a única parte detestável do trabalho, recebo muitas mensagens desagradáveis, muitas, de mais, mas não respondo, evidentemente.”
Há muito que queria fazer aquilo, Raquel, saber que era objeto do desejo plural. “E resolvi deixar de ligar ao que os outros pensam, enchi-me de coragem, demorei, mas atirei-me. Além de que precisava de pagar as contas”, completa ela depois de pausar. “Consigo viver só disto, e gosto, não tenho vergonha, e dou dinheiro à minha mãe.” A mãe dela sabe o que ela faz, a irmã mais nova também, mas mais ninguém, tirando uma ou outra amiga, ela prefere assim. “Fiquei muito feliz quando lhes contei, reagiram bem. ‘És feliz, estás em segurança e com saúde?’, perguntou-me a minha mãe. ‘É isso que importa, minha filha, o resto é contigo.’ E eu sorri e depois abraçámo-nos, foi muito bom ter sido assim.”
Talvez ela vá escrever um livro escandaloso com as propostas indecorosas, impolidas, boçais a que não responde, talvez, ainda não sabe bem.
Alexandre é um “escort boy” que antes da pandemia trabalhava num centro de dia
Os sonhos da geração anterior são sempre os instintos da geração que vem a seguir. Tornamo-nos naquilo que pensamos, melhor, naquilo que os nossos avós só puderam pensar sem alcançar. Por isso a masturbação é hoje uma ideia descomplexificada. É o que está a dizer Alexandre Claro, 40 anos, brasileiro há dois anos em Lisboa, e que daqui a cinco minutos se vai despir subitamente, e muito naturalmente, à frente da equipa de produção que naquela tarde foi a sua casa realizar um conteúdo que ele publicará na sua página Just For Fans, a plataforma gémea da outra, concorrencial. Mas antes ele quer mostrar um vídeo e uma fiada de fotografias.
Ele folheia as fotos no ecrã do tablet, está suspenso numa floresta fascinada, pendurado por tiras enlaçadas de celofane, uma ideia muito engenhosa, e o seu corpo pende nu de uma árvore alta balançante salgueiro-chorão. Fiapos de neblina entornam a imagem, há tufos vivos, ele olha cheio de sede, a floresta transpira realismo fabular, a pele coberta de sol, sem marca de calção. São as fotos de que gosta mais na sua página que supera 100 publicações – “mas estava um frio de zimbrar”, diz ele a rir, “e eu nu, estão a entender?”. No vídeo, muito estiloso, preto e branco “neo noir” limpo e contrastado, ele também está nu e começa em câmara lenta a masturbar-se. É o vídeo com mais saída que tem. E ele diz: “Graça a Deus eu nasci agora neste tempo, imagina se nascia no tempo dos meus avós!”, exclama num riso agudo de satisfação. “Sou uma pessoa na contramão do moralismo social. É onde gosto de estar.”
É um “escort boy”, faz encontros sexuais, devido ao seu biótipo, está entre o “daddy” e o jovial, e ainda há um ano trabalhava num centro de dia como auxiliar de ação de idosos. “E adorava, e era adorado, sou muito carinhoso, tenho jeito, é”, diz ele a afirmar a melancolia com a cabeça. “Mas depois veio a pandemia.” E a pandemia foi a sua emancipação. Mas só um bocadinho mais.
“Eu já tinha Twitter fetichista e exibicionista, no Instagram também, sempre gostei, sou um gajo da noite, das festas, gosto de rolar, mas depois percebi que podia monetizar”, isto é, transformar em dinheiro os seus nus, e entrou para o Just For Fans, onde se chama AlexClaroXXX. Entrou com tudo. “É, fui estratégico para ganhar logo fãs, apostei forte em eróticos e sensuais mas todos de conteúdo pornográfico. Vendo bem, mais vídeos do que fotos, as pessoas hoje gostam mais daquilo que é real, hoje é misterioso aquilo que é verdadeiro, é curioso isso, né? Hoje, com o excesso de informação e de imagens, é tanta a saturação que podemos perder a imaginação”, diz Alexandre muito certo, a devanear.
Somos todos mutantes, não somos sequer a mesma pessoa ao longo da vida, evoluímos da pele sobre a pele, somos outros múltiplos de nós. E Alexandre diz isto: “Sou um ex-hétero, há oito anos que sou homossexual. Já fui casado, duas vezes lá no Brasil, tenho um filho de 17 anos, mas desde que dormi com homem nunca mais me deitei com mulher”. Sustenta-se só com sexo, Alexandre, e vive bem na parte alta central da capital. Gosta muito de Portugal, sou ‘winter boy’”, diz ele, “fujo do sol”. Começa a tirar a camisola, revela-se uma frase gloriosa de Horácio que lhe enche o peito tatuado com a ode do gladiador imortal: “Nom Omnis Moriar”. Ele explica: “Não morrerei todo, não morrerei completamente, estou sempre pronto a renascer”. E depois põe-se então de repente todo nu e a produção vai começar.
Todos os dias, Márcia Lorainy veste a sua pele como uma libré
É centáurea como a planta, caleidoscópica, parece pudica, é carnal, é alta, é transexual, tem um quase superpoder de ubiquidade digital. Podemos vê-la, maiores de 18 anos, a pagar, nestas plataformas todas frontais onde junta mais de 500 fãs: Camera Privé, Viptransex, Classificados X, CAM4 e Only Fans. Promove tudo isto, fotos, vídeos, diretos de franqueza indecorosa, no Twitter, no Facebook e no Instagram, que são os motores propulsores gratuitos do seu marketing de sexo digital. Também é “escort” e recebe o desejo em casa, na Baixa Pombalina desafogada. É brasileira e está há sete anos em Portugal. “Já morei no Porto. Achei lindo, mas muito frio. Lisboa serve-me melhor. É verdade isso que dizem da luz”, diz Márcia muito sucinta, a falar em frases efémeras, a voz metida num vale.
É um personagem perfeito de bisturi, desenhou-se como sonhou, mas não ansiou ser só mulher, sonhou Jessica Rabbit. Descobriu aos 13 anos que era transexual, uma identidade como outra qualquer. A mãe não a compreendeu, o pai já morreu, ela nunca teve vergonha de ser quem é, mas diz que em Portugal é mais fácil ser do que no Brasil sonhar, “porque o Brasil é o país mais transfóbico do Mundo e o sonho pode matar”.
“Aturo muito louco, muito depravado, tenho um cliente que só quer que eu ande com ele por uma coleira, quer que o domine, que o trate como um cachorro, e eu faço, claro, ele está a pagar.” Faz outras coisas de impulsos irrefreáveis, fora da norma, bondage, sado-maso, fetichismos, mas não gosta que lhe sabujem os pés, nem faz chuvas douradas, muito menos chuvas negras, “já pediram, isso não faço”, por isso rejeitaria Adolfo Hitler, um reconhecido coprófilo, escatófilo, um pária sexual, e o que mais faz é possuir outros homens, que são a maior parte dos seus clientes, maioritariamente heterossexuais. Já fez casais, “mas não funcionou”. Faz facilmente mais de dois mil dólares por mês e só vai parar quando já não tiver no anseio aquele apartamento que sonha comprar. Já fez evidentemente as pazes com a mãe, que é o seu ídolo, juntamente com Celine Dion, Thalía, Leona Lewis, Beyoncé e Pabllo Vittar, cantor e drag queen brasileiro que é a cara escancarada de Madonna Louise Veronica Ciccone.
Mas, Márcia, como é que tudo isto começou? Ela não pestaneja, só arqueia uma sobrancelha, flexuosa, e inspira e depois suspira. “Foi uma vingança. Já fui casada, e por seis anos, lá no Brasil. Mas ele traiu-me. Foi com uma vagabunda de shopping.” Acabaram na hora, com alarido, num banzé que deu berreiro e ela saiu a correr e nunca mais olhou para trás. “E comecei nesta vida assim.” E Márcia apagou na hora a tatuagem que tinha no braço a dizer Júnior, em fonte Snell Roundhand – passou-lhe por cima e escreveu com tinta muito mais grossa, em fonte Arial Black, a melhor palavra Amor. Manteve no mesmo braço, o direito, a tatuagem do olho de um tigre floral e de uma caveira mexicana de olhos fixos, que ela mostra a mover o osso acrómio. “Gosta?”
Flávia só queria cortar com a sua solidão
Cheia de disponibilidade e de desejo, é isto que ela faz com o dinheiro que ganha no Only Fans: anima-se e mimoseia-se, brinda-se com extravagâncias a comprazer. Só porque pode e porque sim. Desta vez foi a alugar um quarto num design hotel com banheira de hidromassagem atrás da cama e morangos só para si. Passou uma noite vaporífera e saiu outra. É um ciclo vicioso, a retemperação, é a mesma razão que a levou a entrar na plataforma da exposição digital: “Autoestima. Estares ali faz muito por ti, corta muito a solidão de uma pessoa. Como tens de mostrar aquilo que vales, estás sempre a aprender sobre ti. É isso que eu quero, ter uma forma de me superar”.
Flávia tem 22 anos, é minhota, trabalha como chefe de cozinha e entrou há um ano no Only Fans quando se viu em lay-off na pandemia. Nem publica todos os dias, talvez de três em três, nem quer ter mais intensidade, é só um part-time de prazer, mas já juntou 80 fãs que pagam 20 dólares por mês para falar com ela depois de verem as fotografias do que ela esteve a fazer.
“Não publico nus frontais, nada, só nus artísticos, transparências, sugestões, gosto muito de lingerie, gosto muito de seduzir, não gosto de escancarar. Não gosto de coisas esquisitas, mas às vezes pedem-me e eu lambo os meus pés.” É uma coisa de podólatras, que são os ardosos amantes de pés, normalmente femininos, especialmente bem cuidados, de unhas primorosas pintadas como os capôs dos carros velozes. “O fetiche é deles, não é meu, mas eu aceito, não tenho nada a dizer das taras de cada um”, diz Flávia a mirar e mexer os dedos fruitivos dos seus pés, as unhas de verde cítrico a cintilar.
Ela não quer discutir a dicotomia do que é trabalho e do que é prazer. “Sei que sou uma rapariga normal, tenho os meus defeitos, os meus traumas, mas alguma coisa devo ter de especial. É um clichê, mas este trabalho dá-me prazer, não quero saber da moral. Devia ser assim com todos os empregos, ninguém pode ser bom a trabalhar se não trabalhar com prazer.”
A mãe dela foi a primeira a saber, tinha que ser, não quis que ela soubesse porque lhe foram contar, não quer mexericos na sua vida, ninguém tem que bisbilhotar. “Não devo nada a ninguém, ninguém tem nada que abichar da minha vida, só devo respeito, à minha mãe, por isso tinha que lhe contar. Ela entendeu, dá-me a minha liberdade, damo-nos bem assim.”
Tem 41 tatuagens, Flávia, e a maior e a mais pequenina são as de que gosta mais: uma grande deusa Ísis, a divindade do antigo Egito que aprendeu a ressuscitar, de asas abertas no seu peito; e uma pequenina com a palavra Lust (luxúria) incrustada junto à virilha. Também gosta de um beijo vermelho que tem na nádega e dos dois laçarotes nacarados, um em cada coxa, atrás, e de uma rosa, e de um trevo de quatro folhas, e de uma espada, e de um coelhinho da Playboy, e de outra da sua cadela Melissa.
No fim, aprendemos todos uma palavra que só um minhoto é capaz de decifrar: cabaneirar. Vem de cabaneira, isto é, alcoviteira, maliciosa, bisbilhoteira, mulher que faz mexericos e intriga, que é intermediária daquilo em que não se deve meter. “É isso, na minha vida mando eu, não gosto que me venham cá cabaneirar.”
Raquel P teve um desgosto, foi quando a descobriram na montra do Makani
Ela está agora na orla da costa marítima do Porto, fala do episódio com melancolia, diz que é uma tristeza, teve que desistir. Mas antes: Raquel P é a cara tal qual de Nicki Minaj, a cantora de “Whole lotta money” e de “Tusa” que também é parecida com Cardi B, que por acaso também se parece com Megan Thee Stallion, a rapper acobreada do som descomunal de “WAP”, uma canção de devassa, toda indecorosa, deliciosa. Ela ri. “Sim, já me chamaram Nicki, uma ou duas vezes, talvez três, nem gosto muito do som dela, ouço mais Van Morrison, Wu Tang, Michael Kiwanuka, Isaac Hayes, tenho vinis em casa para mostrar.”
Raquel tem uma história breve, esteve cinco meses no Makani, uma plataforma de serviço digital “à la carte” como o Only Fans, onde ela metia as suas fotos de nus artísticos, muito cuidados, relimados ou então ornamentada em lingerie insinuante, hialina, bem ornada, de bom gosto, fotografias para atear fantasias, nada de mais.
“Não era mesmo nada de especial, basicamente era só para mim, gosto de me ver, sempre gostei, gosto de fotografia também, não me importo de posar, é tudo para a minha autoestima. Mas como não tenho nada a esconder, resolvi aderir ao Makani e publiquei umas fotografias. Apareceram fãs, compravam, cheguei a fazer 500 euros por mês, mas não dei grande importância ao assunto, ali ninguém fica milionário, é um mito.” E a coisa assim ficou.
Mas um dia, ela percebeu logo mal entrou, a coisa descambou e chegou a estrondear. Os colegas da empresa onde ela trabalha, uma firma cheia de homens e trogloditas, descobriram a página da Raquel. “Primeiro ouvi os boatos, os mexericos, tudo a olhar, aos risinhos, aos grupinhos. Foi péssimo, foi um desconforto dias seguidos. Senti-me vulnerável, desrespeitada, humilhada, desmoralizada, fui assediada, parecia que eu é que era a anormal.”
Raquel apagou logo a página, mas aquilo que entra na Internet, é como em Vegas, fica para sempre na Internet e ela via as cópias das suas fotos a circular. “Foi pavoroso. As cópias eram ilegais, eu devia era processá-los, aquilo tem direitos de autor, mas não quis descer ao nível deles, as ações deles ficam com eles. Para mim aquilo é arte, é bonito, é a minha visão. Mas para eles, que são ignorantes, não sabem mais, aquilo era pornografia e eu fui tratada como tal. Foi uma tristeza, foi o que foi.”
Não perdeu a compostura, Raquel, só provisoriamente deixou de sorrir. Mas o orgulho dela não esvaeceu, aguentou-se, o namorado e as amigas nunca a deixaram cair, já se reergueu. “Isso já está lá atrás, eles é que são pequeninos, eu sou da altura que quero ser, não lhes devo nada, nem a ninguém, orgulho, só tenho orgulho naquilo que sou” – e ela engole um palavrão que só quando fica sozinha é capaz de bramar. A vingança vai servi-la fria: vai obviamente voltar a publicar, esse dia está quase a chegar.