Histórias de quem tem filhos com doença celíaca e teve de eliminar o glúten da alimentação. A adaptação, as estratégias e soluções para lidar com uma patologia grave que até pode afetar a vida psicossocial de crianças e adolescentes.
Guilherme tinha sete anos quando recebeu o diagnóstico de doença celíaca. Era esquisito a comer, mas gostava de umas bolachas sem glúten que iam ser descontinuadas. Desnorteada, Susana não teve meias medidas: meteu-se no carro e percorreu meio país, parando em todos os supermercados até conseguir um stock de 80 pacotes de bolachas. Oito anos depois, olha para trás e ri-se da loucura. “É um bom retrato de como se fica em pânico”, reconhece a mãe.
O diagnóstico de doença celíaca é suficiente para virar do avesso a vida de uma família. Joana tinha quatro anos quando a conclusão dos exames chegou. No dia seguinte, Paula entrou na cozinha, fez uma limpeza a fundo e deitou tudo fora: micro-ondas, torradeira, frigideiras, colheres de pau e todos os utensílios que algum dia podiam ter tocado em glúten, esse conjunto de proteínas que está presente no trigo, no centeio, na cevada, na aveia (por contaminação) e escondido em centenas de alimentos processados. Não é para menos. “Ingerir um miligrama de glúten causa os mesmos danos do que comer um pão inteiro”, sublinha.
Doença celíaca ainda é um nome estranho para muitos, embora comece a merecer cada vez mais atenção nas escolas, na indústria alimentar, na restauração e na sociedade em geral, muito por mérito da Associação Portuguesa de Celíacos (APC), criada e liderada por um conjunto de pais que nunca baixou os braços e fez da adversidade o seu cavalo de batalha. Susana Tavares e Paula Parente conheceram-se há oito anos porque Guilherme e Joana andam na mesma escola, no Porto, e têm a mesma patologia. Paula desbravou caminho e Susana aproveitou os conhecimentos da amiga. Atualmente, Susana é presidente da APC e Paula também faz parte da direção.
Inflamação no intestino impede absorção de nutrientes
Causada por uma sensibilidade permanente ao glúten, a doença celíaca surge em pessoas com predisposição genética, sobretudo em idade pediátrica, e é para toda a vida. Não há cura e o único tratamento disponível é uma dieta rigorosa totalmente isenta de glúten. Há estudos em curso para o desenvolvimento de medicação adjuvante que evite os efeitos da contaminação cruzada, mas por ora ainda nada palpável. De cada vez que um celíaco ingere glúten, seja que quantidade for, o sistema imunitário ataca-o como se fosse um corpo estranho e provoca uma inflamação que destrói as vilosidades do intestino, umas pequenas dobras responsáveis pela absorção dos nutrientes. Resultado: o organismo deixa de assimilar ferro, cálcio, vitaminas, ácido fólico e outros nutrientes essenciais. A doença por controlar pode provocar osteoporose precoce, infertilidade, abortos espontâneos, anemias e cancro do intestino.
Em Portugal, o único estudo de prevalência da doença a nível nacional foi coordenado pela gastrenterologista pediátrica Henedina Antunes. A investigação, realizada em 2016, e que envolveu mais de 1 300 jovens de todo o país, concluiu que um em cada 162 portugueses tem a doença, embora a grande maioria desconheça. Na Europa, estima-se que sejam sete milhões e cerca de 80% estarão por diagnosticar.
As campainhas soaram em 2013 quando o pediatra percebeu que Joana Parente Coelho não engordara nem crescera durante um ano, numa fase em que o normal é a roupa deixar de servir a cada seis meses. O médico prescreveu uma bateria de exames, incluindo análises ao sangue e biópsia intestinal, e acabaram-se as dúvidas. A degradação do intestino delgado era tal que não absorvia os nutrientes, prejudicando o desenvolvimento da criança. É um dos sintomas típicos de doença celíaca em idade pediátrica. Mas há mais: obstipação, com ou sem dor abdominal associada, diarreias prolongadas, atraso na puberdade, anemia, entre outros. Mal retirou o glúten da alimentação, Joana desatou a crescer. “Parecia magia, passado um mês já estava a crescer. Fomos logo comprar roupa dois tamanhos acima”, recorda a mãe, Paula Parente.
Depois do choque inicial, Paula recorreu à APC, onde recebeu “um apoio fundamental”. Aprendeu a ler os rótulos nos alimentos, a fazer pão sem glúten em casa – “Foram meses até atinar com a receita”, admite -, ganhou ferramentas para ir à escola sensibilizar a cantina, os professores e a turma para o problema de Joana. Em linguagem simples e positiva, dirigiu-se aos pequeninos e explicou-lhes quão grave podia ser trocarem os lanches ou aproximarem um pão da cara da filha. Aos poucos, a família aprendeu estratégias para que a felicidade de Joana não fosse afetada. O glúten desapareceu de casa e Pedro, o irmão mais velho, nunca se queixou. Nos dias de aniversário dos colegas, Paula preenchia-lhe a lancheira da escola com uma fatia de bolo sem glúten e, se a festa era em casa dos amigos, ligava aos pais para saber o que teriam na mesa para poder enviar um lanche idêntico, mas sem riscos. Apesar de tudo, salienta, o diagnóstico de Joana aconteceu “numa idade ótima porque não se lembra do gosto do pão com glúten ou do croissant”.
Adolescentes lidam pior com a doença
Mais difícil é na adolescência, sublinham a nutricionista Inês Pádua e a psicóloga Helena Correia. Uma ida a um restaurante, por exemplo, tem de ser bem planeada. “Há cada vez mais restaurantes com este tipo de cuidados, mas muitos não querem ou não conseguem garantir uma refeição segura, sem contaminação cruzada”, refere Inês Pádua. A nutricionista com experiência em alergias alimentares e dietas de exclusão atende sobretudo crianças na consulta. “A maior preocupação dos pais é o impacto psicossocial da doença, imaginarem que os filhos não vão poder fazer os mesmos programas dos amigos”, relata. Tudo depende dos contextos familiares, mas em regra os mais pequenos adaptam-se bem às restrições alimentares, afirma a nutricionista, que vai muitas vezes às escolas, a pedido dos pais, sensibilizar professores e turmas para a necessidade de as regras serem seguidas à risca.
A partir dos 12, 13 anos é mais difícil conciliar a doença com a vida social. Torna-se ainda mais complicado para os jovens que não têm sintomas quando ingerem glúten, ainda que a inflamação esteja lá. “Pensam que a doença passou, põem a palavra dos pais em dúvida e vão prejudicando a sua saúde”, elenca Inês Pádua.
Helena Correia, psicóloga que trabalha com a APC, realça que é na adolescência que surgem mais conflitos com os pais e “a vivência desta doença crónica na dinâmica familiar, às vezes, é complicada”. A postura de quem não quer saber das consequências, a “emancipação pela negativa”, a agressão dos pais com as transgressões alimentares são traços comuns nesta fase da vida.
Joana tem agora 12 anos e a mãe ri-se do seu rol de preocupações: “Além das drogas, do álcool e das gravidezes precoces, a mãe de um celíaco adolescente ainda tem a preocupação do croissant”.
O impacto psicológico desta doença na vida dos pais e dos doentes pode ser significativo, pelo que o acompanhamento por psicólogos devia estar incluído no pacote do Serviço Nacional de Saúde, defende Helena Correia. A situação pode ser geradora de ansiedade, potenciada pelo permanente estado de alerta, e até de comportamentos obsessivos. A psicóloga recorda-se de uma adolescente que não pegava num telemóvel tocado por outra pessoa, não se sentava numa mesa com alimentos com glúten ou numa poltrona que tivesse sido usada. “É uma escalada tremenda do medo” que pode ocorrer em pessoas mais suscetíveis para desenvolver ansiedade perante situações ou ambientes de perigo, resume. Nestes casos, sempre que há imprevisibilidade e ausência de controlo, a ansiedade dispara.
Guilherme tem agora 15 anos e, garante a mãe, “nunca deixou de fazer nada por ser celíaco”. Desenrascado, mas cauteloso, acompanha os amigos para todo o lado. Leva a sua marmita ou vão a restaurantes apropriados. A cadeia McDonald’s, por exemplo, já assegura refeições sem glúten e o procedimento – sempre o mesmo funcionário a tratar o pedido para evitar a contaminação cruzada – resulta de um protocolo com a APC. A pandemia tem impedido muitos convívios, mas Susana Tavares já sabe que as saídas à noite vão ficar mais caras porque a cerveja tem glúten. Ri-se com a situação, mas sabe que este é um problema transversal a todas as famílias com doentes celíacos. Um cabaz com produtos isentos de glúten fica substancialmente mais dispendioso ao final do mês.