Rivalidade. Da motivação à falta de ética

Onde há competição, há rivalidade

No desporto, no trabalho e no amor, entre pessoas, países e empresas, é o impulso para fazer mais e melhor. Em doses moderadas, melhora os resultados. Em excesso leva a stress, frustração, batota.

No dia 1 de dezembro de 1907, 22 jogadores entraram no Campo da Quinta da Vitória, em Carcavelos, para o confronto entre as duas equipas. O ambiente era tenso. Oito dos 11 jogadores de um dos clubes tinham abandonado recentemente o outro e jogavam agora contra os seus ex-camaradas. A equipa reforçada era o Sporting Clube de Portugal, a desfalcada era o Sport Lisboa – um ano mais tarde rebatizado como Sport Lisboa e Benfica. Foi o primeiro dia de uma rivalidade que já dura há 114 anos.

Onde há competição, há rivalidade. No desporto, seja entre clubes ou atletas individuais, a história está cheia de rivalidades famosas: Benfica e Sporting, Brasil e Argentina ou Messi e Ronaldo, no futebol; Alain Prost e Ayrton Senna, na Fórmula 1; Roger Federer e Rafael Nadal, no ténis; Tom Brady e Peyton Manning, no futebol americano. “A dimensão competitiva é fulcral na alta competição”, esclarece Rui Gomes, que trabalhou como psicólogo em clubes desportivos, acompanhando atletas e é professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. O responsável pelo grupo de investigação “Adaptação, rendimento e desenvolvimento humano” explica que, quando a competição é vista como uma batalha a ganhar, o stress competitivo aumenta e, com isso, “podem surgir efeitos negativos, como sentimentos de insucesso e baixa competência, esgotamento e perda de prazer”. Já quando é encarada de forma saudável, “os atletas tendem a sentir-se mais satisfeitos com as suas prestações e com a atividade desportiva”.

Na verdade, na sua forma mais saudável, a rivalidade pode até aumentar os resultados desportivos. Gavin Kilduff, que estuda as rivalidades entre pessoas, grupos e organizações, reuniu vários exemplos. Num dos seus estudos, o professor da Escola de Negócios Stern, da Universidade de Nova Iorque (NYU Stern), avaliou provas de atletismo de cinco quilómetros e percebeu que, com os rivais presentes na prova, os corredores fazem menos 25 segundos de tempo total. Mas o investigador não ignora o lado menos bom da rivalidade e já demonstrou que, além de aumentar o stress e a tendência para correr riscos, também pode fazer disparar os comportamentos pouco éticos. “As pessoas são mais propensas a fazer batota para enganar seus rivais e para obter alguma vantagem”, sustenta à NM. E dá um exemplo: “As partidas de futebol entre equipas rivais envolvem taxas significativamente mais altas de cartões amarelos e vermelhos”.

Outro dos problemas da rivalidade excessiva, refere Rui Gomes, é que, quando é “desenraizada de valores fundamentais de desportivismo e fair play, é a principal razão do fenómeno da violência no desporto”. O especialista garante ainda que importa distinguir desporto de alta competição e o juvenil. No caso dos mais novos, sublinha, “é indesejável tornar a competição e a rivalidade um aspeto central do processo formativo” – o jovem deve ser motivado para superar os seus próprios limites, não apenas para ganhar.

Competimos com quem nos é próximo

“O meu maior rival é o meu melhor e mais antigo amigo porque crescemos a competir um com o outro em muitas coisas”, conta, a rir, Gavin Kilduff. “Isso ilustra bem que a rivalidade não precisa de ser negativa ou envolver animosidade. Com frequência, os rivais respeitam-se e partilham um vínculo.” Este exemplo revela também duas outras importantes características que envolvem a rivalidade: a similaridade entre os competidores e a importância da proximidade do relacionamento.

E isto porque uma das mais importantes fontes de rivalidade é a comparação social: a tendência para nos autoavaliarmos por contraste com os outros. Sendo que estes ‘outros’ são aqueles que são parecidos connosco e fazem parte do nosso círculo. Stephen Garcia, professor na Universidade da Califórnia – Davis (EUA) e especialista em psicologia da competição, propôs um modelo que elenca os fatores individuais e contextuais que aumentam a comparação social – e, por arrasto, os comportamentos competitivos – que foca precisamente esses aspetos.

Da perspetiva individual, a tendência para rivalizar é marcada por três aspetos, sendo o primeiro a similaridade. “Ou seja, numa maratona, as pessoas que vão competir em si são aquelas que têm tempos semelhantes”, exemplifica Stephen Garcia. Depois, importa a proximidade do relacionamento: “As pessoas têm mais tendência para ser competitivas com amigos ou conhecidos do que com estranhos”. E, por fim, interessa a relevância do que está em disputa. “Alguém que habitualmente joga ténis será provavelmente mais competitivo num jogo de ténis do que num concurso de pesca”, pormenoriza.

Em relação ao contexto, um dos elementos que tem mais peso na competitividade é aquilo que ele batizou como Efeito N: a motivação competitiva diminui à medida que o número (N) de competidores aumenta. Isto surpreendeu-o. “Achávamos que mais concorrentes significava mais concorrência, e isto pode ser verdade nos negócios, mas não o é a nível psicológico. A preocupação com a comparação social diminui à medida que este número é maior”, detalha Garcia. “Num grupo de dez concorrentes, estamos muito mais preocupados com a posição que vamos ocupar do que num grupo de cem.”

Empresas: colaboração ou comparação

Stephen Garcia admite que estudar este tema tem sido uma aprendizagem para si próprio. “Agora sou capaz de reconhecer quando estou a ser competitivo em relação a outra pessoa, e não à tarefa que tenho em mãos. E se os sentimentos competitivos não forem úteis, relembro-me que não me devo preocupar com a comparação social. Penso simplesmente: ‘Mas o que é isto interessa?’.” Aconselha toda a gente a fazer o mesmo: a colocar o foco nas tarefas, não nas pessoas, e escolher apenas as batalhas que valem a pena.

Claro que isso é mais fácil de dizer do que de fazer. A rivalidade profissional, por exemplo, pode depender menos dos indivíduos e mais do estímulo das próprias instituições. Dos três principais sistemas de avaliação usados nas empresas, uns estimulam mais a competição do que outros. Nos sistemas individuais, cada um é avaliado pelo seu próprio desempenho; nos colaborativos é analisado o desempenho conjunto e, nos competitivos, as pessoas são avaliadas por comparação umas com as outras. “Todos têm o seu mérito e valor próprio”, defende o investigador Rui Gomes, acrescentando que “o grande desafio para quem lidera é definir o sistema mais adequado, em função do tipo de pessoas que tem na equipa e da situação”.

Um exemplo típico de avaliação centrada na competição é o usado em agências imobiliárias que dão destaque ao agente que mais faturou ou mais imóveis angariou nesse mês, por comparação com os colegas da mesma agência. Isso não serve todos de igual forma. “A competição tem o potencial de despertar as pessoas para uma dada tarefa ou objetivo, principalmente as mais focadas em resultados, mas tem a grande desvantagem de deixar um número significativo de funcionários sem possibilidade de sentirem sucesso e realização no seu trabalho”, salienta Rui Gomes.

Um pouco diferentes são as rivalidades que surgem de necessidades ainda mais primárias do que a valorização social ou profissional. De uma das mais básicas – o desejo de ser aceite e amado – brota muita rivalidade. Homens e mulheres competem por parceiros amorosos tentando colocar em evidência os seus melhores atributos, ao mesmo tempo que tentam desvalorizar os dos potenciais rivais, por exemplo.

Irmãos, os primeiros rivais

Mas é do amor fraterno, e não do romântico, que surge a mais precoce das rivalidades. “A relação entre irmãos é, por excelência, um dos espaços mais importantes de treino de socialização para uma criança. Ela pode experimentar, com relativa segurança, várias emoções e pode treinar a capacidade de decisão e de resolução de conflitos”, explica a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva. Assim, a rivalidade entre irmãos, “é sobretudo um meio de desenvolvimento de competências sociais e emocionais em que as crianças experimentam, com autonomia, a sua capacidade de regular afetos e resolver divergências”, resume.

Perante isso, os pais devem tentar ser meros observadores, sem tomar partido. “Uma intervenção maior pode ser necessária quando alguns limites são ultrapassados, mas em rivalidades saudáveis é preferível observarem sem intervir ou intervirem apenas como mediadores, modelando uma boa expressão de afetos”, diz a psicóloga. Por norma, após a adolescência, estas rivalidades tendem a esbater-se. “Quer exista uma relação mais ou menos próxima, na idade adulta há um aparelho cognitivo e emocional e uma identidade mais alicerçada que permite que as rivalidades se desvaneçam ou extingam.”

Contudo, extinguem-se de um lado, para começarem de outros: é precisamente na adolescência que começam a acirrar-se no desporto, na escola e no amor, dando continuidade ao ciclo de competição.