Rituais, o antídoto para a rotina dos dias

O ritual desta quadra festiva vai além da reunião familiar, dos banquetes sem-fim, dos convívios sem hora marcada

Os filhos que vêm de longe, a família reunida à mesa sem hora marcada, a conversa posta em dia ao ritmo de afetos. Como a quadra festiva é um aporte de energia para a azáfama do quotidiano.

Quando se começa a aproximar esta época do ano, é certo que, com maior ou menor frequência, o tema do Natal lhe há de entrar pelo consultório adentro. Lígia Ferreira Gomes, psicóloga clínica, reconhece que, quando tal acontece, nunca é numa perspetiva positiva. “Ou é porque as pessoas percebem que estão mais sozinhas, ou porque há problemas familiares. Mas há sempre uma dificuldade emocional associada.” Não se pense por isso que a época natalícia é sempre sinónimo de angústias e estados de alma difíceis. Na verdade, os rituais festivos, e no caso a quadra natalícia, são muitas vezes um importante aporte de energia para aguentar a rotina. Para muitos, são até um momento crucial para um bem-estar mais profundo. Desde logo porque somos, por definição, um ser social, gizado para viver entre família e entes queridos.

“Uma das principais características das festividades desta época é serem momentos muito importantes de encontro familiar, o Ano Novo talvez mais de encontro de amigos, mas há essa dimensão ritualista, de encontro, de apoio, de momentos em que reavivamos ligações e que, por isso, constituem para nós uma fonte de felicidade”, destaca a socióloga Alexandra Lopes.

Prepara-se tudo com afinco para receber a família, partilham-se afetos, vêm os filhos de longe, volta-se à terra, sentam-se todos à mesa sem hora marcada para levantar, sem a azáfama dos dias a pesar aos ombros. Lígia Ferreira Gomes assinala isso mesmo. “Se vivemos imbuídos numa rotina muito stressante, de responsabilidades, ou até numa rotina muito monótona, a existência destes dias é importante para termos um propósito, para nos sentirmos bem, diria até que é crucial.” A própria pandemia, defende, ajudou-nos a ter mais consciência disso. Não só em relação ao Natal, mas em relação a todos os convívios sociais e familiares. “Percebemos isso nestes últimos tempos, pela reação das pessoas à anulação do cafezinho, das festas, etc.. Oiço muitas vezes: ‘Era tão feliz e não sabia’. Acho que isso é uma tomada de consciência importante do quão bem estes convívios fazem e do quão importantes são.”

No caso do Natal, e eventualmente também do Ano Novo, com características particulares, sublinha Alexandra Lopes. “O facto de [estas festas] acontecerem no inverno, em ambientes fechados, que são acolhedores, em que há uma decoração especial do espaço, proporciona uma junção de um aconchego físico-espacial a um aconchego mais afetivo, relacional e essa dimensão é muito importante. O encontro, o reencontro, a troca de afeto, a gratidão, há toda uma dimensão cultural e simbólica à volta deste momento que se traduz num aconchego psicológico muito forte.” Mas que também se pode traduzir numa profunda angústia, no caso de não estarem reunidas estas condições. “Quando isso não é possível é uma situação geradora de grande sofrimento porque evidencia a nossa solidão.”

Invariavelmente, uma mudança

Depois, é a importância das festividades e dos costumes perpetuados em conjunto. “Todos os grupos humanos encontram rituais, que têm a ver com a necessidade de assinalar mudanças e de marcar o tempo. É uma forma de prevermos a nossa vida e de nos dar alguma segurança. É também uma forma de celebração do coletivo”, explica Irene Rodrigues, antropóloga, lembrando que os rituais mais antigos da nossa existência são os rituais funerários. Mergulhando mais fundo na História, a docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa recorda que, “muito antes de se orientar pela passagem de um tempo histórico”, a Humanidade se orientava pelos ciclos da Natureza e das estações do ano. “Desse modo, estabeleceram-se celebrações cíclicas organizadas em torno desse calendário, que são momentos coletivos importantes de partilha e de celebração do próprio grupo, das próprias relações. Mas estas celebrações também se destinam a assinalar as mudanças de atividades, da estação do ano, etc.. Essencialmente, um ritual assinala uma mudança.”

E no caso específico do Natal? “Trata-se de um ritual de celebração religiosa para as comunidades cristãs, embora com interpretações diferentes. Em Portugal e junto de muitas comunidades cristãs no Mundo, trata-se de um ritual de reunião da família, que no caso da China, por exemplo, ocorre com a Festa da Primavera ou o Ano Novo Chinês. Por esse motivo, muitas pessoas que não são crentes ou religiosas praticantes celebram também o Natal, como um momento importante para as famílias.”

Ainda numa retrospetiva histórica, Irene Rodrigues aponta que “antes do estabelecimento do Cristianismo, a grande celebração de final e início de ano era o que chamamos hoje de Carnaval, uma festa pagã”. “Como forma de promover o seu próprio ciclo festivo e religioso, a Igreja estabeleceu os seus próprios ritos nesta altura do ano, antecipando o final do ano lunar”, acrescenta a antropóloga, antes de avançar com uma explicação para as sensações positivas que estes rituais podem imprimir na nossa vida. “O bem-estar tem a ver com a necessidade de termos rotinas coletivas, um calendário, de olharmos para o passado e para o futuro. Tem a ver com aquilo que são determinados hábitos que adquirimos ao viver numa comunidade e tendemos a reproduzir.”

Mas o ritual desta quadra festiva vai além da reunião familiar, dos banquetes sem-fim, dos convívios sem hora marcada. São também as pequenas coisas. Como as compras de Natal, por exemplo. Que se para uns são uma fonte de ansiedade sem igual, para outros podem ser lufadas de bem-estar. “O consumo nas nossas sociedades é uma fonte de prazer, de felicidade até, que acaba por se materializar na abundância, numa mesa farta e variada, nas cores e nos produtos apelativos. Há uma sensação de conforto simbólico em tudo o que o Natal envolve.”