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Responso de Santo António (ou o alegado monstro)

(Ilustração: João Vasco Correia)

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Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Estranho dia para vos contar tal história, mas os dias são estranhos há ano e meio, não só no Santo António de Lisboa, a 13 de Junho de 2021, aniversário da morte do sábio religioso em Pádua, há 790 anos. É muito tempo, santo casamenteiro, muito tempo a casar, a atender preces, e daqui te faço um responso, oração dos aflitos quando uma coisa importante se perde nesta pandemia repetitiva: pensa na filha, não deixes a criança, salva a inocente vítima de um casamento perdido, quebrado como um copo atirado contra as pedras.

A juíza tentou. Quando soube que o homem, o acusador, não podia vir a tribunal por estar retido num hotel de Madrid com suspeitas de covid, ouviu da advogada de defesa:

– Acho que a arguida ficará muito feliz de saber que ele não pode regressar a Portugal.

A juíza começou a tirar as medidas ao caso, a traçar os azimutes do ódio e a chegar ao único destino que interessava: o bem-estar da filha do casal, que precisava de um acordo entre os (como se diz agora) progenitores e um fim imediato para isto. Várias vezes a magistrada disse que o importante era poupar a menina a um processo que, condenando a mãe ou absolvendo-a, só podia terminar em mais sofrimentos da menor. E aquela mulher nos seus trinta e poucos anos, parada no banco dos réus como mosquinha na teia, só mexendo uma asinha transparente com medo de se enredar mais? Comecei a perceber que, tanto ela como a mãe – a sogra do suspeito de covid retido em Madrid – tinham dito coisas graves sobre o homem. Injúria e difamação.

– Para ele, é mais importante o pedido de desculpas do que o dinheiro, disse a advogada do homem em Madrid.

– Disparate!, respondeu a advogada da mulher.

O problema do dinheiro é mais antigo. Há meses, num outro processo, o homem foi condenado a pagar cinco mil euros de indemnização por violência doméstica. Agora, era ele o acusador. O que as advogadas e a juíza iam tentar era que a ex-mulher lhe baixasse a dívida para 3 500 euros, isto é, um acordo que lhe amortizasse em 1 500 euros. Tudo certo, mas ele só aceitaria com um pedido formal de desculpas da ex-mulher e da sogra. E o máximo que elas admitiam dizer, depois de a juíza ter ensaiado, em directo na sala de audiências, várias versões, era:

– Declaram que não pretenderam ofender o queixoso.

– Não sei se será suficiente, suspirou a advogada do homem em Madrid. Parece-me que o mais importante para ele é o pedido de desculpas.

Até porque as injúrias e difamações foram “publicitadas”. A juíza lembrou que ele já foi condenado e que, continuando o julgamento, nunca qualquer decisão seria aceite pelas duas partes, que o processo subiria à Relação, e daí sabe-se lá até que ponto do aparelho jurídico e da insanidade.

– Não é um crime de homicídio nem de violência, continuar com isto para quê? O que está aqui é muito mau, tanto para a parte materna, quanto paterna!

Então, encontrando-nos nós no século XXI, ligou-se para um hotel em Madrid, e a um homem retido pela pandemia perguntou-se se queria chegar a acordo, pagando ele muito menos pela sua própria condenação. Mas o homem, com a imagem trazida pelo éter da internet, começou a beber água sem autorização da juíza e a rolar os olhos, mostrando, como disse a magistrada, “um perfil difícil”.

– Estamos a propor-lhe uma proposta razoável. E está aqui a beber água?! Estamos num julgamento, não num café. E não me revire os olhos.

– Não vou aceitar, sem desculpas não é razoável. Foi para denegrir o meu nome, e como pai, terminou o homem.

Mais tarde, ouvi o resumo da difamação: diante de várias pessoas, no meio da rua, as duas, mãe e filha (avó e mãe da criança), gritaram “Monstro violador. Tu vais preso!”.

Meu rico santo antoninho: Recupera-se o perdido/Rompe-se a dura prisão/E no lugar do coração/Cede o mar embravecido. /Pela sua intercessão/ Foge a peste, o erro, a morte/ O fraco torna-se forte/ E torna-se o enfermo são.

E acendam por esta menina, que sei eu mais!, uma vela branca.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)