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Reformas reservadas a viagens

(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

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A fome de viajar já lá andava, ora embrulhada na rotina dos dias, ora adiada pela falta de tempo. Entretanto, as obrigações laborais passaram à história. E eles lançaram-se à aventura sem amarras. De bicicleta, de cruzeiro, de autocaravana. A reforma deu-lhes asas.

Hernâni Cardoso, ex-militar de 60 anos, quase 61, reformado há dois anos mas na reserva há bem mais, aborda o assunto com graça. “Quando nos reformamos, das duas uma: ou cuidamos dos netos ou ficamos à espera da morte. Ora, eu não tenho netos e ficar à espera da morte cansa-me.” Serve a tirada bem-disposta de porta de entrada para a vida mirabolante que este gaiense abraçou desde que as obrigações laborais deram tréguas. E tudo ao volante de uma bicicleta. O que é ainda mais curioso porque passou décadas sem pegar numa. “Eu cresci em Angola e lá andava de bicicleta. Só que vim para cá em 1975 e nunca mais andei.” Nunca mais como quem diz. Voltou a experimentar em 2008. E foi uma espécie de amor à segunda vista. No ano seguinte, já estava a fazer Porto-Lisboa de bicicleta. Nesse mesmo ano, Lisboa-Sagres. No ano seguinte Salzburgo (Áustria)-Varna (Bulgária). O Caminho de Santiago também. Entretanto, começou a desenhar-se a passagem à reserva. E Hernâni meteu na cabeça que era o cenário perfeito para cumprir um sonho: dar a volta ao Mundo de bicicleta. Começou então a planear tudo. Em janeiro de 2013, a passagem à reserva consumou-se. Em maio, começava a pedalar, a partir de Guimarães, a odisseia de uma vida a começar a cumprir-se.

A empreitada chegou a soar a delírio. Hernâni nunca se apoquentou. Quatro anos e quatro meses depois, dava por concluída a sua volta ao Mundo, com passagem pelos cinco continentes, num total de mais de 50 países. Uma experiência do outro planeta que não se fez sem uns quantos contratempos. “Tive um acidente no norte da Índia, em que choquei com um camião do Exército. Fiquei com a bicicleta totalmente destruída e tive de comprar outra. E tive duas evacuações do deserto australiano.” Num dos casos, por motivos de saúde. Bebeu água imprópria para consumo e apanhou giardia, um parasita que lhe deixou o intestino feito num oito. A dada altura, não teve alternativa senão voltar a Portugal para receber tratamento próprio. Ficou tão mal que já chegou ao hospital de cadeira de rodas. Mas duas semanas depois estava de volta à ação. E a Perth (Austrália), onde tinha ficado quando o bicho o atacou. “Na segunda vez, voltei a Portugal porque estava farto daquilo”, diz, meio a rir. Luxos de quem se vê desobrigado das rotinas do trabalho.

Depois de se reformarem, José e Angelina Gomes correram o Globo de cruzeiro. Se as contas não lhes falham, já fizeram 37
(Foto: DR)

Mas regressou. Outra vez. “Ainda estive um mesito em Bali, para descontrair. Depois visitei outras ilhas da Indonésia. E ainda fui a Timor-Leste. E ao Canadá.” E assim concluía a almejada volta ao Mundo. Entretanto, reformou-se oficialmente. Ainda que na prática já levasse vida de reformado há anos. Depois veio a pandemia. E o primeiro confinamento. E ele fechado em casa, deduzimos. Não. “Quando toda a gente foi para o confinamento, eu fui para a Suécia.” E por ali andou, de bicicleta. Ainda desceu para a Polónia. E foi até à República Checa. Uns meses. Só voltou em setembro. Sol de pouca dura. Já este ano, lá voou ele até Berlim, para depois ir para a Estónia, daí para a Suécia e de lá para a Dinamarca. Agora, anda pelo norte da Polónia, algures perto da fronteira com a República Checa. É a partir de lá que desembrulha a magia de viajar depois da reforma. “Gosto de ir nas calmas, sem stress. Se me apetecer ficar mais, desfrutar mais, fico e pronto. É do que mais gosto: da sensação de liberdade, de fazer aquilo que quero.”

Perder o medo e rasgar horizontes

Para José Gomes, 81 anos, e Angelina Gomes, 75, a reforma da Função Pública também soube a passadeira estendida para as viagens pelo Mundo. Primeiro, era o trabalho, as filhas, a rotina dos dias sempre preenchidos que não deixavam margem para grandes aventuras. No verão, iam até ao Algarve. Chegaram a visitar três ou quatro países na Europa, mas sempre de carro ou autocarro. Até porque uma outra questão se levantava. José tinha fobia das alturas e, durante anos, andar de avião não era opção. Até que um dia, estavam eles de férias, receberam uma chamada de uma familiar a desafiá-los para embarcarem num cruzeiro. Angelina abraçou logo a ideia, o marido tinha um senão. O barco partiria de Veneza e até lá tinha de ir… de avião. Mas José lá se convenceu. Fez gato-sapato do medo e voou. A princípio, a viagem até parecia destinada a dar para o torto. Primeiro, fizeram escala em Madrid e perderam o voo para Veneza. Depois, quando lá chegaram, estava tudo fechado e não tinham o que comer. Já na cidade italiana, ainda tiveram de sobreviver a uma viagem a bordo de um jipe nauseabundo. Mas tudo virou quando tiveram direito a uma “entrada triunfal” no cruzeiro. Era o prenúncio de um amor que se faria caso sério. “Ficámos encantados com aquelas férias.”

De tal forma que, passado uns tempos, viram no “Jornal de Notícias” um anúncio de uma companhia que aposta forte nos cruzeiros e não tardaram a contactá-los. Daí até se fazerem sócios foi um ápice. Mas não sem José impor uma condição: para avançar, teriam de lhe arranjar vaga no cruzeiro que arrancaria em breve para o Brasil. A imposição surtiu efeito. E em boa hora. Gostaram tanto que haveriam de ir ao Brasil mais três vezes. Entre incontáveis outras viagens. Ao todo, se as contas não lhes falham, fizeram até hoje 37 cruzeiros. Muitas vezes, faziam três por ano. Às vezes, uns a seguir aos outros. Com uma infindável lista de países visitados a registar, nos vários continentes. Da Rússia à China, do Japão ao Dubai, da África do Sul ao Egito, de Marrocos aos Estados Unidos. Sempre de barco, pois. “Para nós não há melhor maneira de viajar. Podemos conhecer imensos países sem ter de andar com a casa às costas. E muitos dos barcos eram lindíssimos, autênticas cidades, sempre com muita animação.”

Desde que passou à reserva, Hernâni Cardoso, 60 anos, já deu a volta ao Mundo de bicicleta. A aventura levou-lhe quatro anos e meio. E continua a pedalar Europa fora
(Foto: DR)

Das dezenas de viagens que fizeram, guardam histórias sem-fim. Como aquela vez em que numa viagem até à Madeira apanharam uma ondulação tão forte que enjoaram até à exaustão. José mal saía da cama. Ou a história de um casal de brasileiros que só viam de fugida no cruzeiro e que, perceberam mais tarde, andava a viajar só para correr todos os casinos onde pudessem ir. Ou aquela vez em que conheceram São Petersburgo, a cidade “belíssima” que é de longe a preferida. Ou os “amigos dos cruzeiros” que lhes foram ficando para a vida. Guardam também as recordações que foram trazendo dos muitos países onde paravam, agora que a saúde já é um entrave às viagens. Os pratos da Grécia que têm por cima da televisão, a máscara de Veneza que têm à entrada de casa, as réplicas dos cruzeiros em que viajaram, um guarda-chuva que veio diretamente do Rio de Janeiro. Memórias doces de dias felizes.

Com a casa às costas como o caracol

Para José e Angelina, a sedução dos cruzeiros é não ter de andar com a casa às costas. Para Alice e David Martins, 66 e 68 anos, a magia das viagens é o oposto: rumar aonde quer que seja a bordo de uma autocaravana de sete metros de comprimento, que compraram na Suíça (onde viveram durante largos anos) e que agora é companhia de todos os passeios. É certo que sempre gostaram de campismo, que o fizeram durante 30 anos, que chegaram a ter uma caravana num parque. Por isso, a opção de comprar uma autocaravana acabou por ser algo natural. Nos primeiros anos, viajavam para aqui e para ali. Mas o trabalho não lhes deixava margem para grandes aventuras. Depois reformaram-se. E regressaram de vez da Suíça. Desde então, não têm parado. “Normalmente passamos uma semana em casa e uma fora. Só quando o tempo está mais fraco é que não”, conta David, feliz da vida.

Alice e David Martins compraram uma autocaravana há nove anos, mas só começaram a desfrutar realmente depois de se aposentarem. Agora, é “uma semana em casa e uma semana fora”
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Sempre de autocaravana, pois. “Antes quero andar com a casa às costas como o caracol.” Até pela liberdade que isso lhes dá. Vão onde querem, têm tudo à mão, muitas vezes decidem na véspera que vão partir para mais um passeio. “É só uma questão de preparar as roupas, comprar a comida e abastecer”, especifica Alice. Em Portugal, já correram tudo o que é sítio. São Martinho do Porto, Peniche, Óbidos, Pampilhosa da Serra, Mêda, Trancoso, Régua, Bragança, a lista não tem fim. E assim que a covid abrandar de vez até já têm planos para uma viagem mais arrojada. “Queremos muito ir aos Picos da Europa.” A liberdade de não terem horários para cumprir nem obrigações para suprir permite-lhes isso mesmo. É por isso que Hernâni Cardoso, o homem que depois de passar à reserva deu a volta ao Mundo de bicicleta, defende que esta é “a melhor altura para se viajar”. “Não há horários para cumprir, não recebemos ordens de ninguém, somos donos de nós próprios.” E deixa uma pergunta no ar, que pode bem servir de passaporte a futuros viajantes. “Afinal de contas uma pessoa trabalha uma vida inteira para quê, para ficar à espera da morte? Acho que a vida começa realmente quando o trabalho acaba.”