Raquel Soeiro de Brito: “Não me arrependo de nada. Fiz o que quis”

Raquel Soeiro de Brito acaba de celebrar 96 anos

Define-se geógrafa de campo. Foi das primeiras mulheres a doutorar-se em Portugal. Foi das primeiras investigadoras e um dos nomes mais destacados e produtivos da Escola de Geografia de Lisboa. Apaixonou-se desde jovem por vulcões. Em 1957, era a única mulher em trabalho na erupção do Capelinhos, nos Açores. Fez domingo, dia 19 de dezembro, 96 anos.

Magra, de estatura pequena, olhar muito vivo e uma memória – antiga e recente – impressionante. Recebe-nos em casa, em Paço d’Arcos. A sala aberta para o jardim é forrada a livros e fotografias do filho, dos netos e dos bisnetos. Algumas tiradas por ela, fotógrafa intuitiva e talentosa. Raquel Soeiro de Brito olha para a vida com sentido de humor e muita curiosidade. E otimismo.

Nas Canárias, o Cumbre Vieja continua a causar estragos em prédios e plantações, até desembocar no oceano. Tem acompanhado a tragédia?
Alguma coisa.

O que a impressiona nos vulcões e neste, em particular?
A brutalidade do fenómeno e a beleza plástica. A chuva de cinzas, o cheiro dos compostos de enxofre, as nuvens branquíssimas no meio daquela confusão imensa. No caso do Cumbre Vieja, é essencialmente a lava. De noite, é extraordinária. O vermelho lindíssimo e o negro do material já arrefecido dão uma combinação linda. Um vulcão é uma maravilha da Terra, é um espanto e um encanto visual. E uma tragédia.

Cumprem-se, em 2022, 65 anos da erupção do vulcão dos Capelinhos, que filmou, única presença feminina no terreno. Em que medida esse vulcão marcou a sua vida?
Marcou muito e de muitas maneiras. Desde miúda que tenho uma paixoneta por vulcões. Não me pergunte porquê. Talvez os achasse bonitos, mas não sei se era só isso. Gostava muito de ver fotografias e uma delas marcou-me. Era de 1943 e mostrava uma mulher em trabalho de campo. E marcou-me porque era uma mulher, porque era uma geógrafa e porque estava de saia comprida e chapéu. Lembro-me de pensar – “Como é possível andar ali de saia, e comprida?”.

Muitos anos depois, filmou, de calças, a erupção do Capelinhos. Conta-se que os miúdos do liceu a iam mirar, espantados.
Pelas calças, por ser a única mulher e, desculpem-me, por ser o elemento mais ativo (ri).

Não tenho dúvidas. O que mais a impressionou?
Uma coisa é olhar para uma fotografia, outra coisa é olhar ao vivo. Por isso, não perdi tempo. Mal vi a notícia, corri para casa de Orlando Ribeiro. Que tínhamos de ir depressa, disse-lhe. Ele estava reticente, mas acedeu. Um vulcão é para ser visto. Corri Lisboa inteira à procura de material e encontrei muito pouco.

Foi o primeiro geógrafo português a usar máquina de filmar.
Sempre recorri à cartografia, à fotografia e, mal foi possível, ao filme. Na geografia, são absolutamente indispensáveis. Sei do que falo. Antes do Capelinhos, vira centenas de fotografias de vulcões. Lera muitos livros. Percebi então que ver é outra coisa.

Fale-me do medo.
Claro que senti medo. Mas sou capaz de dizer que tive mais medo quando as cinzas começaram a cair em terra, e em cima de mim, do que quando vi o vulcão pela primeira vez, estava eu dentro de um avião poderosíssimo americano, restos da Guerra 1939/45. Era um vulcão submarino, mas quando o vi já tinha uma ilhazinha muito redondinha, em forma de ferradura, com uma abertura. Uma maravilha, fiquei encantada. Porém, desde logo assustada. Percebi, de imediato, a altura imensa que aquele material ia atingir. E atingiu muito mais do que eu pensava.

Não era suposto ver mulheres em sítios perigosos.
Ninguém me impedia, mas havia uma reprovação. “É doida, é louca.” Repare, já tinha um gaiatinho, com cinco ou seis anos.

Casou em 1948. Como é que o marido lidou com a mulher emancipada que sempre foi?
Não lidou. E tanto assim foi que me divorciei logo. Pronto. Em 1957, já estava divorciada. Esse problema estava à parte.

Casamento ou carreira: foi uma escolha difícil até que ponto?
Com um homem português era muito difícil ter as duas coisas. O meu segundo marido era também português, mas em circunstâncias diferentes: eu tinha outra idade e avisara desde logo que ou era assim ou não era. Então, tudo correu muito bem (ri).

E como explicava ao filho as ausências?
O meu filho ficava em casa dos meus padrinhos e com uma pessoa de toda a confiança, a tomar conta. Sempre lhe expliquei tudo muito bem: abria o atlas, mostrava os lugares, as distâncias, pedia-lhe que continuasse a ser bom aluno enquanto a mãe ia providenciar o nosso sustento. Na Índia, a missão foi de praticamente dez meses. Consecutivos. Era de facto muito tempo.

E os pais?
Nasci em Elvas e fui para Évora com dois aninhos. Aos quatro, fiquei sem mãe. Aos cinco anos, fui para casa dos meus padrinhos. O meu padrinho e o meu pai eram oficiais da Armada. Tive a sorte de serem pessoas abertas, sobretudo o meu pai.

Porquê a Geografia?
Vivi em Elvas, Évora, Porto, Paço de Arcos, Viana do Castelo e este andar de um lado para o outro ajudou muito, reforçado pelo facto de ter crescido no meio de cartógrafos. Lembro-me bem do meu padrinho, acompanhado de outros oficiais, estar a preparar o levantamento para o mapa militar 25 000, e de mim a brincar no meio deles. A ver e a achar graça ao que estavam a fazer. A certa altura, hesitei entre Geografia e Agronomia. Escolhi Geografia por ser mais ampla, ser “mais Mundo”. Naquela época, muita gente não sabia o que era Geografia. Incluindo no meu círculo próximo. Geografia, para mim, era o Mundo.

Tem netos e bisnetos. Quando lhes conta a história de vida, que pretende passar-lhes?
Tenho duas finalidades: que devemos ouvir-nos e prosseguir os nossos objetivos, ainda que contra a vontade de outros. Que, escolhido o caminho, o percurso deve ser reto, fazendo a cada momento o melhor que soubermos.

E sobre o preço que pagou, que lhes diz?
Fiz o que quis e paguei vários preços. A minha avó admitia que fosse professora de piano, professora de francês, mas o que queria mesmo era que fosse farmacêutica, para ter a farmácia no rés-do-chão e a minha vida pessoal num dos outros andares. Como não obedeci, cortou. Na altura da tese de licenciatura, que pensei fazer em Évora, julguei que teria o apoio da minha família que lá vivia. Coitadinha de mim. Que ignorante. Acabei por ir para o Minho, aldeia do Soajo. Levava duas cartas de recomendação: uma para um senhor da junta de freguesia, a outra era para o padre. Ninguém sabia o que era Geografia. Era a engenheira. Sempre fui a engenheira. Ou pior: em alguns lugares tomavam-me por um representante das finanças que ia cobrar dinheiro. (ri)

“Acima de tudo sou geógrafa de campo. Tenho muita honra nisso e muito gosto.” É possível ser-se um geógrafo sem ter campo?
Fui acusada, e se calhar ainda o sou, pelos meus colegas, sobretudo pelos mais novos, de não saber a teoria. Acontece que a Geografia vem primeiro do campo. Um geógrafo tem de ver o que há. O meu jogo é sempre terreno/pessoas. É esse conjunto que para mim faz a Geografia. Esta dualidade: terra/civilização.

Um geógrafo tem de ter ação?
E saber olhar. E olhar é uma coisa e ver é outra.

Andou por Portugal e pelo chamado “país ultramarino”. Foi mesmo do Minho a Timor, com passagem pela Índia e por África. Tem seguramente muitos episódios da vida de uma geógrafa.
Vários: na Índia, desde passar uma noite em claro, porque sentia passos, descobrindo de manhã que afinal fora visitada por vacas – esse é um dos engraçados – ao risco, por pouco concretizado, de me cruzar com um tigre, e esse foi muito assustador. Felizmente, o vento estava contra. Mas também atravessei rios com água pela cintura, perdi solas de botas a escalar vulcões.

Foi uma das primeiras mulheres a doutorar-se em Portugal, e seguramente a mais nova delas. Tinha 28 anos. Teve um sabor especial, por ser tão raro?
As críticas foram muitas. Porque era mulher, porque tinha 28 anos, porque tinha uma linguagem que toda a gente podia ler e perceber, e isso fazia muita impressão. Era suposto sermos muito herméticos. Nunca fui. E isso sempre causou estranheza.

Raquel Soeiro de Brito é uma geógrafa com um vasto currículo

A Geografia é essencial para lidar com as questões essenciais do século XXI?
É indispensável. Há muita asneira que se faz no Mundo, muita, muita, por desconhecimento da Geografia. Se tivesse algum poder, obrigava toda a gente a estudar Geografia, todos os cursos superiores, a incluírem nos currículos cadeiras de Geografias adequadas à área. Muitos erros se devem a falta de noções de Geografia. Por exemplo, é inconcebível que um diplomata não tenha Geografia. Tem História – muito bem -, mas não tem Geografia.

Trata-se bem da educação da Geografia?
Não. E é cada vez pior.

O mundo de hoje só quer CEO, empreendedores de sucesso e gestores?
Se essa gente não sabe de Geografia, se não tem noções de História, não pode ser competente. Um gestor tem de lidar com pessoas que cresceram em muitos lugares, tem de andar pelo Mundo, dos Estados Unidos a África. Tem de conhecer as diferenças de civilização. Sem isso, nada correrá bem.

Sabe se há muita procura do curso?
A partir dos anos 1980 passou a haver mais. Modéstia à parte, graças ao meu esforço. Transformei o curso de Geografia fechado – praticamente só dava acesso à docência – num curso mais aberto. Apanhei pancada de meia-noite de quase toda a gente. Principalmente da academia. Mas há uma frase do Mariano Feio (geógrafo contemporâneo de Orlando Ribeiro) que não esqueço: “O teu defeito, Raquel, é andares à frente. É por isso que levas pancada”.

Deu-se bem com a democracia?
Dei.

Nos Açores, passou por espiã russa.
Por causa do material, sobretudo das máquinas fotográficas.

A fotografia era trabalho e prazer?
Sempre gostei imenso de fotografia. Tenho fotografias dos miúdos belíssimas. Nunca estudei fotografia, mas sempre fiz, relativamente, boas fotografias. A primeira muito elogiada foi tirada no forte de São Julião, num dia de temporal danado, uma coisa medonha. Subi as muralhas e tirei fotografias giríssimas. Certa vez, em Cabo Verde, um pescador esfarrapado, com uma barba de nem sei quantos dias, pediu-me que lhe tirasse uma fotografia. Dessa fotografia posso dizer que é soberba.

Sempre a pisar o risco.
A vida é uma aventura.

Qual é a experiência mais memorável de Geografia escolar que recorda?
A ideia que tenho é que obrigavam a empinar tudo. Os rios, as montanhas, os caminhos de ferro. Era uma coisa muito chata.

Quando percebeu que a Geografia era mais que empinanço?
Quando andava com o meu padrinho e os militares a ver como se faziam os mapas.

Qual é a sua atividade geográfica favorita?
A vulcanologia deu-me muito nome e fez-me muito bem. Sou muito mais conhecida pela vulcanologia do que por outras matérias que me deram muito mais trabalho e que estudei muito mais a sério. O que eu gosto mesmo é de estudar as pessoas. As pessoas no seu território.

Que opinião tem de Greta Thumberg?
É capaz de ser mais louca de que eu, mas nunca faria aquilo. Por uma razão simples: é certo que se fizeram muitas asneiras. E disse-o muitas vezes. Mas virar tudo ao contrário, não. Parece-me que é o que essa miúda está a tentar fazer. Não se pode voltar ao tempo das cavernas. Por isso, digo que o trabalho de geógrafo deve ser lido acima de tudo por políticos.

Qual o disparate que mais a incomoda?
O disparate generalizado que é a má ocupação dos solos. Sendo a agricultura a base da vida, ir contra a natureza dos solos, com artifícios tecnológicos que o permitem, mas que a bem da Humanidade não devem ser feitos, é um erro enorme. Dou o exemplo da ilha de Madagáscar. Em 1945 era uma ilha natural. Hoje, não.

Até onde nos podem levar as alterações climáticas?
Quem sabe um pouco da arqueologia da Terra sabe que há desde sempre ciclos climáticos. Não vale a pena ir ao Ártico para o perceber. Temos na nossa terra testemunhos da última e da penúltima era glaciar. Portanto, de certo modo, deve-se perceber que as alterações são naturais. O problema de agora é que a evolução dinâmica e positiva da população obriga a alterações que a tecnologia torna possíveis. E isso nem sempre é bom. Mas é importante não esquecer que há uma mudança natural. Olhe as praias algarvias. Aquelas plataformas já estiveram cobertas de água. Já foram leitos de mar.

Não nega as alterações climáticas, mas considera, em certa medida, que são naturais, é isso?
As ilhas maravilhosas para onde as pessoas vão gastar fortunas numa semana de férias estão sujeitas a desaparecer com as alterações climáticas. As alterações climáticas são naturais. O que a ação humana faz é acelerar o processo. Por isso, peço que não façam mais disparates do que os que já fizeram.

O que aprendeu com a Geografia?
Isto de andar pelo Mundo a ver com os meus olhos como é feito e como as pessoas interagem com ele, deu-me uma abertura enorme. Por muito que lesse ou visse fotografias e filmes, se não tivesse saído de casa, não era esta pessoa aberta ao Mundo. Toda a minha vida foi ver e sentir. Dou um exemplo: um dia, na Índia, num cenário fisicamente lindo, tive à minha frente uma mulher com os olhos esbugalhados, cheia de medo. Quando lhe pedi, através de um intérprete, que me mostrasse a casa, a senhora passou de assustada a aterrorizada. “Mas, senhora, eu sou der.” Sendo der uma não-casta, a senhora achava que não era digna de me receber. Mas, deixou-me entrar. Em Timor, a ilha mais pobre que vi, estive lá em 1970, tenho histórias assim. Que marcam. Por isso, é ver e sentir.

Arrepende-se de alguma coisa?
De nada. Fiz o que quis, o melhor que fui capaz.