Quem vive e quem morre? A ética não verga com a pandemia

Os profissionais de saúde continuam na linha da frente de um combate sem tréguas. A fazer das tripas coração num cenário de enorme intensidade moral e decisões difíceis. A medicina no seu limite. Uma coisa são os princípios, outra é a falta de recursos. Mantêm-se os valores, mudam-se procedimentos.

Os médicos juram com todas as suas forças no início da profissão. “A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação.” Prometem cumprir a sua arte com consciência e dignidade e guardar respeito absoluto pela vida humana, “mesmo sob ameaça.” E, de repente, uma pandemia virou o Mundo do avesso. Nunca ninguém previu dias assim. Meses intensos de dedicação e de esforços nos níveis máximos da sua potência. A medicina no seu limite. Quem tem direito a um ventilador? Quem não tem? Tratar doentes covid? Tratar doentes não covid? Quem vai para os cuidados intensivos? Quem não vai? O que adiar? O que priorizar? Quem vive e quem morre? “Os médicos estão preparados para escolher sempre a vida. Estão, porém, também treinados para aferir até onde podem ir de acordo com a ‘reserva fisiológica’ de cada doente. A isso chama-se decisão clínica e os médicos estão preparados para a decisão clínica em diferentes contextos”, resume António Lacerda Sales, secretário de Estado Adjunto e da Saúde, licenciado em Medicina. Um ponto de ordem e uma mensagem ao país. “Cabe a toda a sociedade – ao Governo, em particular – tudo fazer para que esse contexto seja o mais favorável possível”, acrescenta.

“Os médicos estão preparados para escolher sempre a vida. Estão, porém, também treinados para aferir até onde podem ir de acordo com a “reserva fisiológica” de cada doente”, reconhece António Lacerda Sales, secretário de Estado Adjunto e da Saúde
(Foto: DR)

No entanto, o panorama é de medicina de catástrofe. Falta de meios, falta de recursos, filas de ambulâncias às portas dos hospitais, falha na rede de oxigénio no hospital Amadora-Sintra na última semana, transferência de doentes. A terceira vaga da pandemia é avassaladora, o número de mortes por covid-19 não pára de aumentar. E a ética médica? Como fica?

“A ética não muda, nunca mudou”, garante José Artur Paiva, diretor de Medicina Intensiva do Hospital de São João, no Porto, presidente do Colégio de Especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos. “Quanto mais difícil é o contexto, mais importante é a ética.” Quem pensa ou diz o contrário, em seu entender, só poderá fazê-lo por “imaturidade ou inexperiência”. “As decisões éticas têm o mesmo mantra, os mesmos raciocínios. O que pode mudar são os recursos”, faz notar.

E os recursos são escassos. Quando há uma mesa onde só cabem 10 pessoas e há 12 para acomodar, o que fazer? Jorge Soares, médico patologista, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, usa a analogia para falar do sofrimento ético dos profissionais de saúde e do sufoco imenso que se vive na linha da frente. “Estão a fazer tudo, mas esse tudo não é o que devia ser feito. Têm conhecimento de como acomodar as 12 pessoas na mesa de 10, mas têm dificuldades.” São decisões difíceis, sempre foram, mais ainda numa altura em que o número de óbitos nunca foi tão elevado como agora.

“A ética não muda, nunca mudou. Quanto mais difícil é o contexto, mais importante é a ética. As decisões éticas têm o mesmo mantra, os mesmos raciocínios. O que pode mudar são os recursos”, assegura José Artur Paiva, diretor de Medicina Intensiva do Hospital de São João, no Porto, e presidente do Colégio de Especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos
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Jorge Soares lembra que o vírus é igual em todo o Mundo, que os profissionais de saúde são os mesmos em Portugal, mas as condições de trabalho não são as mesmas. “Com um número tão elevado de doentes, os profissionais de saúde estão em situação de exaustão e de um grande cansaço, e não se tomam as decisões mais certas.”

Há princípios que têm de ser respeitados na prática profissional. A ética médica é intocável, assegura Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos. Mas há hospitais lotados, transferência de doentes, cirurgias oncológicas adiadas, unidades com 350% de taxa de ocupação por doentes covid, escassez de meios e recursos. “Quem tem de tomar decisões difíceis é quem está no terreno”, lembra. A Ordem dos Médicos emitiu vários pareceres com indicações e recomendações para estes tempos tão complexos.

“Estão a fazer tudo, mas esse tudo não é o que devia ser feito. Têm conhecimento de como acomodar as 12 pessoas na mesa de 10, mas têm dificuldades”, explica Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
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O doente com a doença e não a doença no doente é um dos princípios base da decisão médica. Salvar vidas é o princípio maior. “Não há doentes que ficam à frente de outros doentes. Tem tudo a ver com a gravidade da situação”, explica o bastonário. Com a pandemia, há dificuldades acrescidas, decisões difíceis, como adiar doentes menos graves e cirurgias programadas. Os planos de contingência dos hospitais preveem estas medidas, ou seja, o abandono gradual do que é considerado menos prioritário, o desvio de recursos físicos e humanos.

“Todo este contexto, em si, é catastrófico.” Com todo o sofrimento ético que implica. “Os profissionais tratam da melhor forma possível os doentes, que podem não estar a ser cuidados como seria a melhor forma porque os recursos não chegam a todos. O que causa uma sensação de desconforto enorme”, sustenta o bastonário.

O sofrimento ético é também evidente quando os profissionais sabem que são a última família do doente. Do lado de lá da porta do hospital, não haverá mais um abraço, um sorriso, um abraço. São momentos dolorosos. A Ordem dos Médicos já deixou o alerta. Os responsáveis máximos das unidades hospitalares que têm doentes covid devem estar atentos e providenciar apoio psicológico a todos os profissionais de saúde que necessitem desse suporte e pelo período que for considerado relevante.

“Não há doentes que ficam à frente de outros doentes. Tem tudo a ver com a gravidade da situação”, garante Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos
(Foto: DR)

Jorge Soares defende esse apoio. “O acompanhamento psicológico é muito relevante. As pessoas lidam com a morte todos os dias e de uma forma violentíssima.” Miguel Guimarães adianta, porém, que o Estado não está a garantir essa ajuda. “Essa falta de acompanhamento já está a ter consequências terríveis.” E as críticas estalam. “O Ministério da Saúde não tem fio condutor, não temos liderança no ministério. E este jogo de faz de conta vai causar imensos problemas.”

Consultas adiadas, transferência de doentes

Rui Nogueira é médico de família, especialista em Medicina Geral e Familiar, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar até ao final do ano passado. Neste momento, por hora, faz, em média, dez contactos com os seus doentes por diversas vias, telemóvel, email, WhatsApp. Em meia hora, pode receber duas mensagens e um telefonema. A pandemia exigiu uma rápida readaptação nas unidades de saúde. Uma ginástica outrora impensável.

“Há uma dinâmica nova e nós somos muito ortodoxos em relação aos princípios éticos”, avança Rui Nogueira. A ética médica é a base de tudo. “Temos um cuidado extremo com tudo o que é ético na nossa profissão.” Se, em circunstâncias normais, os médicos não fazem triangulação de informação, ou seja, saber da mãe pelo filho ou do filho pelo pai, por razões clínicas, de saúde, no atual contexto, em que muitas vezes é difícil que os mais velhos atendam o telemóvel (se é que o têm), em que é complexo acompanhar e seguir os doentes, esse cruzamento pode fazer sentido. “Nestas circunstâncias, isso pode acontecer porque é em benefício do doente.”

Nos cuidados intensivos do Hospital de São João os profissionais de saúde preparam-se para a segunda vaga de covid 19
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Se em condições normais, os doentes iam às consultas com os resultados dos exames debaixo do braço, agora pede-se aos laboratórios para que enviem essa documentação para o email do doente que, por sua vez, reencaminha para o seu médico de família com a autorização, implícita ou explícita, de que pode abrir os anexos e analisar toda a informação. Como tem de ser. O sigilo profissional é inviolável.

Escolher a quem dar ou não dar oxigénio nos hospitais, no entender de Rui Nogueira, não será um caso tão flagrantes quanto isso. “Não podemos ultrapassar as regras básicas, que são regras de ouro, que, perante a situação de emergência que vivemos, têm de ser garantidas, não podem ser beliscadas.” Há, no entanto, e mais do que era frequente, limbos cinzentos. Mandar ou não mandar um doente para uma urgência hospitalar? É preciso pensar melhor, ponderar bem. Até porque há doentes com medo de meter o pé num hospital. Estas zonas de fronteiras são mais frequentes. “É uma questão ética de benefício do doente em função das situações. Optar pelo que é mais vantajoso para aquele doente, nestas circunstâncias.” Seja como for, os procedimentos mantêm-se. “Não estão em causa os princípios mais elementares da ética médica, nem num estado de emergência em que vivemos, embora tenha de haver essa elasticidade, mantendo os princípios fundamentais”, realça. O respeito pela dignidade humana é inabalável.

Cuidados intensivos do Hospital de São João
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Os hospitais reorganizaram-se internamente, funcional e estruturalmente, para dar resposta à pandemia. Tempos excecionais justificam mudanças de procedimentos. Assim pensa o Governo. “Vivemos, naturalmente, uma situação única que justifica a adequação de procedimentos, desde logo, a separação de circuitos nas unidades hospitalares”, refere o secretário de Estado Adjunto e da Saúde. Consultas não urgentes adiadas. Centros de saúde com consultas à distância. Transferência contínua de doentes. As circunstâncias, segundo António Lacerda Sales, obrigam a uma reorganização e adequação do que existia. O que está a acontecer quanto à transferência de doentes, recorda, está na Lei de Bases da Saúde, que prevê “a integração de cuidados, salvaguardando que o modelo de prestação garantido pelo SNS está organizado e funciona de uma forma articulada e em rede.” A transferência de doentes “é uma evidência da expansão da rede, quer regionalmente, quer nacionalmente, muitas vezes de forma preventiva, para garantir resposta para todos”, prossegue o secretário de Estado.

Valores intransponíveis, consciência e dignidade

Em abril do ano passado, o Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos avançou com recomendações de natureza ética para situações complexas. Por várias razões. Uma delas foi providenciar, como escreve, “a base para uma decisão ética mais prudente num cenário de enorme intensidade moral” e recursos que não esticam.

Os médicos sabem quais os seus deveres de bem cuidar, administrar os recursos adequados, os princípios de responsabilidade, de verdade, de transparência, de consistência. O equilíbrio entre o bem individual e o bem comum é complexo, ainda mais na linha da frente de combate a uma pandemia sem precedentes. Em todo o caso, as decisões devem resultar num consenso da equipa de saúde que acompanha o doente.

Se os recursos não chegam, é necessário condicionar o acesso e maximizar os benefícios dos meios à disposição. “Esta decisão deverá ter em consideração critérios clínicos e de avaliação de riscos, incluindo os da própria medicina intensiva, bem como a maior probabilidade de eficácia do tratamento e sobrevida esperada (idade, comorbilidades, etc.), com proporcionalidade e justiça distributiva”, recomenda-se no parecer. E sublinha-se: “Não se trata de tomar decisões de valor, mas de reservar os recursos que podem tornar-se extremamente escassos para aqueles que têm, antes do mais, maior probabilidade de sobrevivência após o tratamento.” A idade não pode ser um critério, a presença de comorbilidades e o estado funcional dos diversos órgãos do corpo têm de ser cuidadosamente avaliados. Miguel Guimarães deixa um reparo às escolhas ao mais alto nível. “Más decisões, sem base científica, levam a resultados que podem ser catastróficos.”

No final de outubro do ano passado, a direção do Colégio da Especialidade em Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, vincou a sua posição numa carta aberta ao Ministério da Saúde, subscrita pelo bastonário da Ordem dos Médicos. Perante a segunda vaga, pediram-se medidas para potenciar os recursos existentes e uma capacitação adicional do SNS, mais camas, mais equipamentos, mais recursos humanos para tratar todos os portugueses com covid-19 e com outras patologias. “A capacitação da resposta é essencial, mas nenhum sistema é capaz de uma resposta infinita. Como tal, há que modular a procura, isto é, reduzir a incidência da infeção, pela minimização da transmissão vírica”, vincaram os médicos intensivistas.

“Tem é de haver critérios éticos. Há uma consciência de que há determinados valores intransponíveis. É uma escolha feita com princípios éticos para não ofender nenhum valor”, conta Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética
(Foto: DR)

Para Rui Nunes, médico, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, a questão é bastante clara: a ética médica, milenar e intemporal, sobressai neste tempo de pandemia e tem, inclusive, mostrado um sinal de vitalidade. “Há uma extraordinária dedicação dos profissionais de saúde, em geral, e dos médicos, em particular, mesmo com risco para a sua integridade física”, comenta. Dedicação e empenho essenciais e provas consistentes de uma ética que, em seu entender, muito orgulham a profissão. Sem recusas em trabalhar, sem baixas médicas. De mangas arregaçadas, para o que for preciso. Não obstante as situações de escassez de recursos e de como se decide. “Não há nenhum sistema de saúde, por melhor que seja, que consiga satisfazer todas as necessidades ao mesmo tempo”, repara Rui Nunes. A falta de meios é uma variável que não se pode excluir, mais ainda neste momento. “Tem é de haver critérios éticos. Há uma consciência de que há determinados valores intransponíveis. É uma escolha feita com princípios éticos para não ofender nenhum valor.” Há circunstâncias e circunstâncias e uma situação de catástrofe pode levar a uma escassez de recursos impensável.

Por tudo o que está a acontecer no terreno, Rui Nunes considera que não só os princípios éticos não foram beliscados, como saem reforçados. “Ninguém é discriminado em relação à idade, género, zona de residência, etnia.… Há um esforço acrescido por parte dos profissionais para acudir a todos. Este esforço e esta abnegação enaltecem a profissão médica.”

Pressão permanente nos sistemas de saúde

No entanto, e dadas as circunstâncias e o panorama atual, não se podem excluir situações de rutura. O médico de família Rui Nogueira vê a atual situação pandémica com muita apreensão. “É como se tivesse rompido uma barragem e tivéssemos os campos todos inundados.” A analogia transparece o nível de preocupação. “As autoridades têm de falar direitinho às pessoas e continuar a informá-las. A situação é mais grave do que em março e abril do ano passado”, salienta.

“Não podemos ultrapassar as regras básicas, que são regras de ouro, que, perante o que vivemos, têm de ser garantidas, não podem ser beliscadas”, afirma Rui Nogueira, médico de família
(Foto: DR)

Todos concordam que o cenário não é, nem de longe nem de perto, animador e o Governo reconhece falhas. “Apesar do esforço em manter a atividade assistencial, que vinha recuperando até outubro de 2020, é um facto que, em função do crescimento da incidência da covid-19, tem sido necessário parar periodicamente com a atividade não urgente”, admite o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, sublinhando que é assim em Portugal como nos restantes países da Europa. “Não porque não seja importante manter a atividade não covid, mas pela pressão gigantesca que a pandemia provoca nos sistemas de saúde”, justifica António Lacerda Sales. Para voltar ao ponto de recuperação da atividade assistencial é necessário controlar a pandemia. Não há volta a dar.

A Carta Europeia de Ética Médica, adotada na Grécia há quase dez anos, numa reunião do Conselho Europeu das Ordens dos Médicos, reforça a importância dos princípios deontológicos. O médico defende a saúde física e mental. “Alivia o sofrimento, respeitando a vida e a dignidade da pessoa no que se refere a todas as formas de discriminação, na paz como na guerra.” O clínico dá prioridade ao que interessa na saúde do doente e usa todos os recursos ao alcance da ciência médica. Sempre pelo respeito pela vida, autonomia moral e liberdade de escolha do doente. Sempre com consciência e dignidade.

Para Ricardo Mexia, médico de saúde pública, epidemiologista, presidente da Associação dos Médicos de Saúde Pública, a ética é um dos grandes pilares que sustenta uma profissão e que não poderá mudar. “A ética médica não é flexível, não se ajusta a ética ao contexto, adapta-se a resposta ao contexto”, afirma. Nada muda nesta matéria, mesmo numa pandemia. “Perante um cenário em que apenas há um meio terapêutico ou um recurso para oferecer a dois doentes, é preciso fazer uma escolha.” O que acontece quando se entra num nível de medicina de catástrofe. Seja como for, e em todas as circunstâncias, sem abdicar dos princípios deontológicos, oferecendo sempre o que é mais adequado ao doente.

“A ética médica não é flexível, não se ajusta a ética ao contexto, adapta-se a resposta ao contexto”, atesta Ricardo Mexia, presidente da Associação dos Médicos de Saúde Pública
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Como professor de bioética e ética médica, Rui Nunes tem partilhado com os alunos o seu orgulho nos profissionais de saúde. “Nesta situação limite, era fácil fraquejar nas atitudes éticas e o que vemos é um esforço coletivo”, assinala. Acima de todas as expectativas, acima de todas as probabilidades, além de todas as possibilidades.

Apesar de tudo, António Lacerda Sales encontra pontos positivos no meio de tanta adversidade. “O avanço na telemedicina, a que a pandemia obrigou, é das coisas positivas que ficam para futuro. Apesar das suas limitações, em muitos casos não substituindo o contacto médico-doente, tem também muitas vantagens noutras circunstâncias e, nessas, temos de aproveitar o que ficou e não voltar para trás.” Aprender com o passado para preparar o futuro. Mesmo com uma herança tão dura e feridas tão profundas.