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Que direitos têm os ratinhos de laboratório?

Fotos: Wikimedia Commons

Investigadores alegam que há inúmeras situações em que ainda não é possível substituir os animais, nomeadamente em testes de medicamentos, dado que é fundamental validar o fármaco num sistema complexo e mais próximo do ser humano

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O tema gera emoções e tomadas de posição fortes. O uso de animais para investigação científica cruza ética e moralidade, custos e benefícios, bem-estar e sofrimento. O caminho tem sido a redução. Os investigadores alegam que a substituição total é impossível. Mas há quem defenda que existem alternativas eficazes.

Em 2019, foram usados em Portugal 79 447 animais para fins científicos, a maioria murganhos (também conhecidos como ratinhos), sobretudo na investigação de doenças infecciosas, cancro e perturbações do sistema nervoso, de acordo com os dados publicados pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). A utilização de animais não-humanos para pesquisas científicas, nomeadamente para testar medicamentos, é muito antiga, mas continua longe de ser socialmente pacífica e eticamente inquestionável. Esta preocupação ética tem sido refletida na lei: a União Europeia baniu os testes de cosméticos em animais em 2004, bem como a venda de produtos cosméticos testados em animais, em 2013. Por outro lado, a Diretiva Europeia n.º 63/2010/CE – que Portugal transpôs para o Decreto-Lei n.º 113/2013 – veio reforçar a proteção de animais usados para fins científicos. O princípio essencial é o dos três ‘R’s’: replace, reduce, refine (substituir, reduzir, refinar). Ou seja, substituir os animais por outros métodos sempre que possível, reduzir o número de espécimes em cada experiência e refinar os métodos para minimizar o sofrimento e aumentar o bem-estar dos que forem envolvidos em experiências.

Para determinar o que é o bem-estar animal, a ciência tenta definir as condições necessárias para que se possa dizer que uma criatura “tem uma vida que valha a pena ser vivida”, refere Nuno Franco, investigador no i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, no Porto, onde faz investigação na área de bem-estar de animais de laboratório e valor preditivo do seu uso em biomedicina. “Procura-se que o uso de animais em ciência conflitue o mínimo com as chamadas ‘cinco liberdades’: estarem livres de fome ou sede; de desconforto; de dor, lesão ou doenças; de medo e angústia e poderem expressar comportamentos naturais, como a interação social”, pormenoriza o investigador, que fundou uma rede informal que reúne profissionais integrados em Órgãos Responsáveis pelo Bem-Estar dos Animais (ORBEA), nos estabelecimentos onde são criados e usados para fins científicos ou educacionais.

A letra da lei

A legislação em vigor estabelece desde logo que os animais só podem ser usados quando não há alternativa viável e também que deve haver uma avaliação de dano e benefício para cada projeto submetido a aprovação. Nuno Franco explica que, em Portugal, esta avaliação é realizada a dois níveis. “Ao nível local, cada estabelecimento onde são utilizados animais para fins educacionais ou científicos deverá ter um ORBEA, que emite um parecer não vinculativo. O parecer vinculativo é depois emitido – ou não – pela autoridade competente: a DGAV”. Estes pedidos de licença, detalha, incluem informação sobre os procedimentos a realizar, as condições de alojamento, as pessoas responsáveis pelos procedimentos (que devem ter formação específica e estar certificadas) e, por fim, a razão pela qual os animais são imprescindíveis.

A questão que levanta mais preocupações éticas e as reações mais emotivas é o sofrimento a que o animal está sujeito. Também isso está regulado: a severidade dos procedimentos em animais de laboratório é classificada em quatro categorias: não recuperável, ligeira, moderada ou severa. Ricardo Afonso, presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências em Animais de Laboratório, esclarece que as classificações ligeira e moderada dizem respeito a ações que se preveem causar desconforto ou dor, ligeiros ou moderados, por um curto intervalo de tempo e que estas são autorizadas dentro dos trâmites legais que o processo de aprovação envolve. “Já a classificação de severidade ‘não recuperável’ pressupõe que todas as intervenções ou procedimentos são realizados sob anestesia geral, portanto, sem dor ou desconforto para o animal, não se prevendo a sua recuperação de consciência no final das intervenções”, clarifica o médico, investigador e professor na Nova Medical School, em Lisboa.

Por fim, a classificação “severa”, ou seja, os procedimentos que induzem dor ou sofrimento consideráveis ou duradouros só podem ser realizados com autorizações excecionais que, afinal, não são assim tão raros. “De acordo com a lei vigente, o recurso a procedimentos classificados como ‘severos’ só pode ocorrer mediante aprovação excecional da autoridade competente e por razões excecionais cientificamente fundamentadas.” Segundo os números da DGAV, em 2019, essa exceção foi autorizada em 11 242 casos, o que representa 14 % do total de procedimentos anuais.

Vozes críticas

Questionada sobre o uso de modelos animais para fins científicos, Maria do Céu Sampaio, presidente da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, declara que “a solução para a sobrevivência e melhor qualidade de vida dos humanos não deve ser feita através do sacrifício de outros seres”. Por isso, sublinha ser “contra todas as experiências em animais que não tenham como finalidade salvar vidas humanas” e, mesmo assim, “só mesmo quando não existam métodos alternativos”.

Já Rita Silva, presidente da direção da Associação Animal e membro da direção da Cruelty Free Europe, vai mais longe: é veementemente contra a utilização de animais seja com que fim for. “Há muitos métodos não animais já validados, como os organoides [conjunto de células de um tecido específico, cultivadas in vitro, usado para estudar um órgão], os modelos matemáticos e informáticos, os simuladores que mimetizam organismos vivos, as pessoas que se oferecem para testes, os corpos que são doados à ciência. O que não há é preocupação em utilizá-los”, defende. A ativista concede que nada disto é igual ao corpo humano, mas lembra que os animais também não são. “Então, se há sempre diferenças, vamos escolher aquilo que é mais ético. Os animais não humanos experimentam dor, prazer e sofrimento. Não devia ser eticamente aceitável utilizá-los como recurso.”

Também Bebiana Cunha, deputada do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), deixa várias críticas à atuação de Portugal nesta matéria. Lembra que em 2018 a Comissão Europeia instaurou um processo a seis países, entre eles Portugal, por incumprimento de alguns artigos da diretiva europeia em território nacional e “ainda nada foi feito para resolver esse assunto”. Os números de 2019 são preocupantes, pois mostram que “não está a haver uma redução do número de animais usados e que há uma grande quantidade sujeita a procedimentos de severidade elevada.”

A deputada admite que acabar com os testes em animais não é algo que se possa fazer de um dia para o outro. “A ética exige-nos essa reivindicação, mas, evidentemente, isto é um processo, um caminho que tem de ser feito.” E Portugal não está a trilhar esse caminho, acusa. “É preciso, por exemplo, melhorar a fiscalização por parte da DGAV, que não tem recursos humanos suficientes.” Por outro lado, considera ser necessário investir na investigação de modelos não animais. “O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tem de apoiar as instituições que já estão a fazer um investimento em alternativas aos modelos animais e deve incentivar as outras nesse sentido.” O PAN tem um marcha um novo pacote de propostas sobre esta matéria.

Uma questão de eficácia?

As questões éticas não são o único argumento de quem pretende o fim dos animais de laboratório. Há também alegações de ineficácia: as vozes contra referem unanimemente que entre 92 a 95% das drogas aprovadas como seguras e eficazes em animais não superam depois os ensaios clínicos em humanos.

Nuno Franco explica que, efetivamente, apenas 8% das moléculas pequenas e 13% das terapias macromoléculas chegam ao mercado. Há várias razões que podem levar um medicamento a falhar num ensaio clínico e não estão relacionadas com a sua eficácia. “Os ensaios podem ser descontinuados por não serem mais eficazes do que os medicamentos já disponíveis, terem efeitos secundários pouco frequentes que apenas são detetáveis quando se alarga o tamanho da amostra ou razões económicas e logísticas.”

Já Ricardo Afonso aceita que os animais não mimetizam na perfeição o organismo humano, mas garante que são muito mais próximos e fiáveis do que as alternativas existentes. “O principal motivo pelo qual se recorre ao modelo animal antes de realizar testes em humanos é claro: evitar induzir em humanos efeitos nocivos que poderiam ter sido detetados em modelos animais”, diz. De resto, alerta que há um enorme número de “fármacos experimentais que não avançaram para testes em humanos por possuírem efeitos secundários incomportáveis, ou simplesmente por se terem mostrado ineficazes quando testados em modelos animais, apesar de terem sido anteriormente testados com aparente sucesso em células, tecidos ou modelos matemáticos”.

Quais são as alternativas?

Os métodos alternativos são a grande questão. Bruno Silva-Santos, líder do grupo de investigação em imunobiologia e imuno-oncologia e vice-diretor Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, de Lisboa, tem em curso, entre outros, um projeto no qual está a tentar de desenvolver uma imunoterapia universal para a leucemia mieloide aguda, a mais agressiva de todas a leucemias, a partir de linfócitos T gama-delta. Explica que, para isso, precisam de “um modelo in vivo, com órgãos semelhantes aos nossos, apesar de numa escala menor, para fazer a experiência”. Assim, o projeto é testado em ratinhos.

“A experiência anterior ao ratinho, que já fizemos milhões de vezes, é in vitro, num poço plástico onde se coloca o tumor e células para matar o tumor. Mas isso é uma experiência que está condenada ao sucesso: in vitro, o tumor não tem sítio para onde fugir dos linfócitos T.” Ou seja, para estudar a resposta terapêutica a um cancro num organismo vivo como o nosso, a única solução é colocá-lo também num organismo vivo. As soluções como os organoides também são em in vitro, o que levanta o mesmo problema, e os “modelos matemáticos não se aplicam à realidade de uma imunoterapia experimental inovadora”. “A complexidade do corpo humano tem de ser mimetizada na experiência, e é isso que o ratinho – o mamífero mais simples que podemos usar para obter uma resposta fidedigna – permite fazer.”

Também Ricardo Afonso frisa que ainda “são inúmeras e variadíssimas” as situações em que não é possível substituir os animais. “O organismo é um sistema fisiológico complexo em que existe interação entre os diferentes órgãos e sistemas, adjacentes e não só, pelo que a manipulação de um órgão ou sistema de órgãos pode implicar profundas alterações de outros e esta complexidade fisiológica dificilmente é simulada em células ou modelos matemáticos.”

O investigador recorre a um exemplo para o demonstrar: o desenvolvimento de um hipotético medicamento para tratamento de uma patologia no músculo cardíaco. Inicialmente, poderão dispensar-se animais e fazer modelações matemáticas para prever o comportamento do fármaco na corrente sanguínea, o que permitirá perceber as doses a testar. Depois, muito provavelmente, realizam-se experiências in vitro, ou seja, em culturas de células em 2D ou 3D que afiram a eficácia do fármaco nas células do miocárdio, o órgão-alvo. No entanto, Ricardo Afonso avisa que, “antes de o medicamento poder ser submetido a estudos clínicos em humanos, é necessário perceber a interação com outros órgãos que não o órgão-alvo e dos órgãos entre si, quando sujeitos às ações daquele fármaco. Ou seja, é necessário validar o fármaco num sistema complexo, e portanto mais próximo do ser humano.” E é aqui que entram – ainda – os animais de laboratório.