Que desafios enfrenta a liberdade dos media?

Nem todos os ataques à liberdade informativa são físicos e, hoje, os mais frequentes, acontecem em plataformas online

No ano em que se comemoram os 200 anos sobre a primeira Lei de Imprensa e foi aprovada a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, especialistas e profissionais do setor garantem que continua a ser necessário estar atento aos constrangimentos, limitações e ameaças à liberdade que o jornalismo enfrenta.

A primeira Lei de Imprensa data de 1821, mas uma parte significativa destes 200 anos foram passados sem verdadeira autodeterminação e independência dos meios de comunicação social. Os últimos 47 anos são, na verdade, o mais longo período de liberdade de imprensa – o que lembra que os direitos, mesmo depois de conquistados, nem sempre são mantidos. Preservá-los exige vigilância.

Muitas das atuais ameaças à liberdade são externas ao setor. De acordo com o relatório da Plataforma para a Proteção do Jornalismo e Segurança dos Jornalistas, divulgado em abril de 2021, nos 47 países do Conselho da Europa, houve 201 casos graves de ameaça à liberdade de informação, um aumento de 40% em relação ao ano anterior. As queixas mais graves são de ataques à integridade física (24%), assédio e intimidação (24%) e detenção de jornalistas (16%). O documento refere também constrangimentos criados pelo Estado a meios de comunicação social independentes, assédio judicial, pressão política e vigilância de jornalistas.

Em Portugal, a hostilidade contra os profissionais de informação é uma das preocupações do Sindicato dos Jornalistas (SJ). A propósito de uma manifestação antivacinas convocada para junto da delegação da RTP em Vila Nova de Gaia, a 19 de agosto, o SJ enviou uma carta ao ministro da Administração Interna, ao superintendente-chefe da Polícia de Segurança Pública e ao comandante-geral da Guarda Nacional Republicana, em que se manifestou preocupado com “o crescendo de violência” contra os profissionais de informação. “Este aumento da agressividade durante as manifestações intensificou-se durante a pandemia. Algumas franjas, como o movimento antivacinas, vê os jornalistas como inimigos da verdade”, diz o presidente do SJ, o jornalista Luís Filipe Simões.

Mas este não foi o único problema que a pandemia agravou. O teletrabalho, muitas vezes imposto, trouxe também restrições à liberdade dos profissionais. “As redações, que já estavam emagrecidas, tornaram-se sítios vazios, onde não há massa crítica nem troca de ideias.” Por fim, o dirigente sindical menciona ainda obstáculos no acesso à informação. “Tornou-se habitual o jornalista não estar presente por causa das contingências da pandemia”, realça, e isso criou uma barreira no acesso às fontes. “Multiplicaram-se as declarações sem perguntas. São muito convenientes para quem gere a informação, mas o jornalista não ter hipótese de questionar é perigoso.”

Um ataque também online

Nem todos os ataques à liberdade informativa são físicos e, hoje, os mais frequentes, acontecem em plataformas online. Na hostilidade para com os meios de comunicação e seus profissionais no ambiente virtual, concorrem três grupos distintos, refere Luís António Santos, ex-jornalista e Professor de Ciências da Comunicação na Universidade do Minho, onde é diretor-adjunto do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. “Há grupos que são hostis porque têm dificuldade em lidar com leituras que lhes são adversas, seja em termos políticos, desportivos ou outros, e há um segundo tipo de hostilidade que é fomentado por estratégias políticas que visam a descredibilização dos pilares da sociedade, como o aparelho de justiça, os políticos, o conhecimento científico e o jornalismo.” O docente lembra, a esse propósito, que a expressão fake news, foi popularizada por Donald Trump, como forma descredibilizar notícias verdadeiras que lhe eram desfavoráveis.

No entanto, é o terceiro grupo, maioritário, que preocupa o investigador: pessoas que não leem jornais, que veem um pouco de televisão e ouvem um pouco de rádio, mas que se “informam” sobretudo pelos fluxos de informação que o algoritmo lhes apresenta nas redes sociais. “São pessoas que se sentem fragilizadas em questões essenciais como o emprego, a saúde, o futuro dos filhos e, como o jornalismo não dá resposta às suas inquietações, vão procurá-la noutro lugar.”

Infelizmente, não precisam de procurar muito porque a rede está montada para lhes fazer chegar a desinformação que lhes alimenta mais a raiva e o descontentamento. O jornalista Paulo Pena, que tem investigado a desinformação, mostra no seu livro “Fábrica de mentiras: viagem ao mundo das fake news” como o fenómeno já está instalado em Portugal: à data da publicação do livro, em 2019, eram 40 os sites de desinformação a atuar no país, usando mecanismos sofisticados como os bots – soluções informáticas automatizadas para fazer disseminação através de perfis falsos e a criação de páginas e grupos no Facebook -, tendo um alcance mínimo de 2,5 milhões de portugueses.

O polémico artigo 6.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, publicada a 17 de maio, pretende dar resposta a esse problema gigante. Estabelece o direito à proteção contra a desinformação e define que “o Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”. A grande polémica está no facto de o ponto seis do artigo estabelecer que “o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.

Alguns têm apontado para esta formulação como uma nova forma de censura. Luís Filipe Simões não vai tão longe, mas tem dúvidas quanto à sua constitucionalidade, frisando que o SJ alertou desde o início para a provável inconstitucionalidade do documento. “A decisão do presidente da República, que pediu agora ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva do artigo 6.º, confirma dúvidas que o SJ sempre teve”, defende o líder sindical.

Também Luís António Santos acredita que a intenção do legislador é benigna, mas alerta para o facto de abrir a porta a “coisas estranhas”, por exemplo, para interpretações diferentes do que está escrito em sucessivos governos. “Além disso, o meu entendimento é que o jornalismo já é, ele próprio, um selo de qualidade”, remata.

Olhar para dentro

Nem tudo são ataques e condicionantes externos e pensar as limitações à liberdade de informação não é possível sem olhar para dentro. E não faltam problemas no setor que podem condicionar a liberdade dos jornalistas.

“Preocupa-me que possamos estar a criar uma classe que, pelos baixos salários, pela precariedade e pela falta de tempo, não tenha condições para ter coragem, que é uma das armas do jornalista”, frisa Luís Filipe Simões. “Coragem para dizer não, para resistir às pressões e para ter espírito crítico, não se limitando às ‘verdades adquiridas’ – como o que diz o chefe ou o que escreve o outro jornal – sem as verificar.” Porque tudo isto, vinca o jornalista, conduz a uma das mais perniciosas formas de restrição: a autocensura.

Na mesma linha, Helena Lima, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que tem desenvolvido investigação nos campos da análise de conteúdo de jornalismo, História do Jornalismo e Estudos de Media, acredita que uma das maiores ameaças à liberdade de imprensa é o desinvestimento das empresas nas redações e nos trabalhadores. “A redução das redações e a consequente dependência das fontes oficiais, com dinâmicas burocratizadas, leva a pouca multiplicidade em termos informativos: o que lemos, ouvimos e vemos num sítio é o mesmo que lemos, ouvimos e vemos nos outros. E isso faz com que as pessoas criem alguma indiferença em relação ao conteúdo jornalístico”, alerta.

Helena Lima sente-se particularmente preocupada ao olhar para os mais jovens: a geração que lê notícias parece estar em vias de extinção. “Isto tem também que ver com as dinâmicas da sociedade e com a educação, mas o certo é que em turmas de 100 alunos – no Ensino Superior e na área da comunicação – tenho no máximo dez que estão habituados a ler notícias”, exemplifica.

Assim, o problema tornou-se circular: redações pequenas e jornalistas com condições de trabalho precárias têm mais dificuldade em produzir informação de qualidade; sem ela as pessoas não consomem o produto; sem leitores ou audiência os anunciantes não compram espaço publicitário e, sem isso, não há sustentabilidade financeira, o que por sua vez conduz a mais desinvestimento, com cortes nas redações e condições de trabalho mais precárias.

“Enquanto não se valorizar o trabalho e a qualidade de vida das pessoas, o jornalismo vai ter sempre muitas fragilidades”, argumenta Luís António Santos. O investigador crê que o mercado vai tender para um crescimento das empresas maiores, que se tornarão gigantes, e por uma diminuição da estrutura das mais pequenas, que passam a forcar-se em públicos de nicho ou temáticos. Mas terá obrigatoriamente de haver mudanças que partem de dentro. “Num mercado em que os meios de comunicação social não detêm o exclusivo da disseminação da informação, a debilidade do modelo de negócio e a crise do setor não são contextuais. Já não estamos num lugar em que o jornalismo se possa voltar a posicionar como fornecedor exclusivo de informação credível”, considera Luís António Santos. Para sobreviver e prosperar – com sustentabilidade, autonomia e liberdade – o setor vai ter de se reinventar. Como o fará, ainda ninguém parece saber exatamente.

Bicentenário no parlamento, em selos e numa exposição documental

A lei de 12 julho de 1821, promulgada por D. João VI e publicada no dia 25 de julho no Jornal Oficial, introduziu a liberdade de “imprimir, publicar, comprar e vender nos estados portugueses quaisquer livros ou escritos sem prévia censura”, mas previa também quatro tipos de abuso: contra a religião católica, contra o Estado, contra os “bons costumes” e “contra os particulares”, abusos que, todos eles, implicavam a apreensão de todos os exemplares do título em causa, multas e, em alguns casos, penas de prisão que podiam atingir os cinco anos. Apesar disso, era extremamente inovadora para a época.

O voto de saudação pelos 200 anos da aprovação da primeira Lei de Imprensa, aprovado por unanimidade pelo Parlamento, em julho deste ano, defende que a melhor homenagem ao trabalho feito pelas Cortes Constituintes, há dois séculos, é “assegurar a robustez de uma comunicação social livre, transparente e rigorosa, realizando um imperativo urgente perante as ameaças que a ensombram”, não reduzindo a exigência nem a vigilância.

Os 200 anos foram também assinalado pelos CTT, com a emissão de dois selos e de um bloco filatélico, bem como pela exposição documental “Bicentenário da Liberdade de Imprensa”, no Museu Nacional da Imprensa, no Porto, que pode ser visitada até 30 de setembro.