Quando ser saudável é doentio

A preocupação com a saúde pode, afinal, ser uma doença

A obsessão pela alimentação e pelo exercício físico compromete o bem-estar e causa sofrimento. A ortorexia e a vigorexia são perturbações difíceis de desmontar. Os impactos são significativos.

Manuel começou a fazer exercício físico regularmente, queria uma boa imagem, e a procura do seu ideal de corpo perfeito não tardou a virar uma fixação. Mais treinos, mais músculos, mais ginásio. Nada era suficiente. A insatisfação aumentava, evitava atividades sociais por pensar que o seu físico ainda não estava no ponto, a saúde mental ressentia-se com essa obsessão patológica. Manuel, adulto no início da sua vida profissional, estava prisioneiro do seu próprio corpo.

Estes problemas têm nome. A ortorexia é uma preocupação excessiva com a alimentação saudável e livre de qualquer nutriente que se acredite ter o poder de provocar mal à saúde. Vigorexia é a obsessão com a imagem corporal que conduz a treino físico em excesso.

A preocupação com a saúde pode, afinal, ser uma doença. “É o que acontece quando a alimentação saudável e o exercício físico são levados longe de mais”, explica Cristina Sousa Ferreira, psicóloga clínica da Oficina de Psicologia. “Apesar de poderem parecer duas formas de preocupação com a saúde, alimentação saudável e exercício físico regular, são classificadas em termos psicológicos como duas perturbações de preocupação excessiva e obsessiva com a alimentação e o corpo e têm um profundo impacto na vida do dia a dia”, acrescenta.

São transtornos peculiares numa cultura obcecada pela imagem, pelo culto do corpo. Não escolhem género e não estão associados ao normal processo de crescimento porque são excessos que persistem além dos períodos apropriados de desenvolvimento.

Sara Ferreira, psicóloga clínica e psicoterapeuta, analisa os perigos. “Os excessos e a preocupação desmedida na procura por saúde, prazer e bem-estar transformam-se negativamente no seu oposto, ou seja, acabam por ser contrários aos objetivos iniciais e prendem as pessoas a comportamentos obsessivos e disfuncionais que produzem, acima de tudo, desconforto, mal-estar e falta de saúde.”

Sofrimento emocional e afastamento dos amigos

Mais dor e menos liberdade. “Muitos isolam-se, afastam-se dos amigos, trazendo-lhes sofrimento emocional, acompanhado de dificuldades de concentração, de memória, abatimento, tristeza”, sublinha a psicoterapeuta.

Perturbações que arrastam sintomas como cansaço, irritabilidade, ansiedade, humor deprimido, baixa autoestima. A vergonha com a aparência potencia o isolamento social e a relutância em partilhar as preocupações. Estes excessos não surgem do nada. Segundo Cristina Sousa Ferreira, as origens são diversas, podem ser questões neurobiológicas, traumas, grande necessidade de agradar aos outros, compensação de perdas ou frustrações, processamento visual distorcido. “O ‘terrorismo’ nutricional, com o excesso de restrições e de informação nutricionais distorcidas e exageradas sobre o que se pode ou não comer, sobre os benefícios e malefícios de determinados alimentos ou nutrientes, está presente constantemente em todas as redes sociais e pode abrir as portas à ortorexia.”

Fronteiras ténues e sintomas mascarados

Os cuidados numa alimentação saudável e na atividade física são socialmente aceites e, portanto, os sintomas de excessos podem ser mascarados ou camuflados. “É difícil traçar uma linha firme entre uma consciência saudável de como melhor alimentar o corpo e uma obsessão doentia com a qualidade dos alimentos”, refere Cristina Sousa Ferreira. Contudo, mudanças na vida pessoal, profissional e social são indicadores de que se pode ter passado para uma zona de perigo.

Na ortorexia, a questão não está nas calorias de cada prato, mas na qualidade dos alimentos. “A obsessão com a dieta passa a controlar as emoções o que cria um desequilíbrio e um círculo vicioso, com mudanças de humor frequentes, alternando entre sentimentos de vergonha e autoaversão, a sentimentos de euforia, dependendo de como está o estilo de vida”, alerta Cristina Sousa Ferreira. “Na vigorexia, assim como na anorexia, há sintomas cognitivos de alteração da perceção da imagem corporal”, adiciona.

Inês Pádua, nutricionista, salienta a dificuldade de diagnóstico por, muitas vezes, não haver sintomas físicos evidentes ou facilmente detetáveis. Desmontar obsessões não é fácil. Ainda assim, há premissas que podem ser assumidas. “É um processo geralmente moroso, que requer um grande comprometimento do paciente, que é invasivo, no sentido de poder interferir com todo o seu estilo de vida e rotinas”, sustenta. Abordar mitos e crenças que se perpetuam, desmistificar ideias da educação alimentar, conversar ou corrigir carências nutricionais fazem parte da estratégia. “A abordagem também terá de considerar o tempo em que a pessoa está exposta a informação contraditória, fotografias encenadas e manipuladas, dados extrapolados, e dotá-las de ferramentas para os poderem julgar e filtrar”, realça Inês Pádua.

Assumir uma postura saudável, mas sem excessos, é um passo importante. “A comida deve estar associada a prazer e não a culpa e a atividade física deve ser regular, mas moderada”, frisa Sara Ferreira. Procurar ajuda especializada é o primeiro passo para lidar com tamanho desconforto. Nesse apoio, percebem-se as causas emocionais e psicológicas do problema e tenta-se restaurar o equilíbrio e recuperar a autoestima.

Sinais de alerta

Conheça os sinais e sintomas que, de acordo com os especialistas, são sinais de alerta para as duas perturbações:

Ortorexia
Mais de três horas por dia a pensar na alimentação.
Examinar todos os nutrientes.
Culpa quando se sai da dieta.
A alimentação é a maior preocupação da vida.
Planear refeições com vários dias de antecedência.
A fixação na dieta controla as emoções e o tempo.
Dificuldade em comer o que é preparado pelos outros.
Deixar de fazer refeições fora de casa.
Deixar de conviver com família e amigos.

Vigorexia
Constante insatisfação com o corpo.
Prática exaustiva de exercício físico.
Treino e musculação são focos diários.
Evitar expor o corpo, recusar atividades sociais.
A vida gira à volta do ginásio e do “body building”.
Dieta muito restrita com substâncias proteicas, queimadores de gorduras, hormonas anabolizantes.
Depressão, ansiedade, isolamento social, dificuldades de memória, tristeza.