Quando os cuidadores não querem tomar a vacina

Quando um trabalhador de um lar ou hospital, que está em contacto com grupos de risco, opta por não se vacinar, há legitimidade para despedir com justa causa? E numa admissão pode exigir-se a imunização completa como requisito? Há direitos em conflito e as opiniões divergem. Os responsáveis dos lares pedem esclarecimentos.

Em novembro do ano passado, quando foi questionada pela primeira vez sobre se queria tomar a vacina contra a covid-19, disse: “De momento, não”. Era tudo muito recente, havia grandes incertezas, nunca gostou de decisões precipitadas e queria ponderar melhor. Catarina (nome fictício), 35 anos, é enfermeira num hospital do norte do país. Quase oito meses depois, mantém as dúvidas sobre a eficácia da vacina e, perante os efeitos adversos registados, põe em causa a segurança destes fármacos aprovados em tempo recorde. Entretanto, foi apanhada pelo vírus, passaram os meses de imunidade e, no serviço onde trabalha, a pergunta sobre a vacina surgiu novamente há dias. “Não quero”, respondeu.

Por duas vezes, sentiu-se julgada pela decisão que tomou – “Se todos pensarem como tu, nunca mais se controla a doença”, chegou a ouvir de uma colega que acabou também por não tomar a vacina. Por ora, Catarina está confortável com a escolha, mas receia ser identificada como a enfermeira que não se vacina e por isso pede anonimato. “Espero que esta decisão não venha a prejudicar a minha vida profissional”, desabafa.

Ninguém sabe quantos são os profissionais de saúde e trabalhadores de lares que não tomaram a vacina por opção (o Ministério da Saúde não respondeu às questões colocadas pela NM). Recentemente, o aumento de surtos em lares, alegadamente relacionados com a falta de vacinação dos funcionários, atirou o tema para a ordem do dia. Pode a recusa de vacinação ser fundamento para despedimento por justa causa? Pode o diretor de um lar, daqui para a frente, contratar apenas pessoas com vacinação completa? Perguntas que valem para os lares e para todas as instituições cuja missão é cuidar, tratar e proteger grupos vulneráveis, como o hospital onde Catarina trabalha.

A enfermeira garante que não se revê na ideologia “antivacinas”. “Nem sequer sou contra as vacinas, simplesmente acho que é tudo muito precoce, a ciência está sempre a mudar, o que hoje é verdade amanhã já não é”, explica. Catarina respaldou a sua escolha na decisão de um tio, médico no privado, que lhe confidenciou que ainda não foi inoculado por também não confiar na eficácia e segurança dos novos fármacos.

Há dias, um surto num lar em Faro provocou vários internamentos e a morte de uma idosa de 92 anos. Na mesma semana, outro surto numa unidade em Mafra teve o mesmo desfecho fatal para um utente. Notícias que já não se ouviam desde que a vacinação entrou em massa nas instituições residenciais de idosos. Ainda assim, nada que se compare com a fatídica terceira fase da pandemia em Portugal. Os últimos números disponibilizados pela Direção-Geral da Saúde, relativos a segunda-feira, indicavam que há quatro surtos ativos em lares e 51 infetados (parte dos quais recuperados), menos um do que na semana anterior. Em fevereiro, chegaram a contar-se 405 surtos ativos em lares em simultâneo, o que leva a autoridade de Saúde a concluir que “a diminuição drástica neste contexto demonstra a importância que a vacinação tem tido no controlo da pandemia e na proteção da população mais vulnerável”.

Não obstante, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, alarmado com o regresso do vírus aos lares, veio alertar para o problema dos funcionários que recusam vacinar-se e pedir esclarecimentos ao Governo. Manuel Lemos solicita uma discussão séria sobre o tema e a clarificação do que pode e não pode ser feito, “na medida em que a vacinação mexe com direitos, liberdades e garantias” dos trabalhadores. É preciso esclarecer se a vacina devia ser obrigatória para os profissionais de saúde, se as instituições podem despedir quem não quer tomá-la e se podem recusar a admissão aos que não têm a vacinação completa, defende. Manuel Lemos nota que as campanhas de sensibilização dos provedores e dirigentes junto dos funcionários dos lares têm tido resultados positivos – “Os que se recusam são uma minoria” – mas, ainda assim, é preciso esclarecer todas as questões para que as instituições conheçam as linhas com que se cosem.

As vacinas que já são obrigatórias

Embora, na generalidade, o Plano Nacional de Vacinação não seja obrigatório, há vacinas que o são, como as da difteria e do tétano, na medida em que sem elas não é possível fazer uma matrícula numa escola, uma inscrição num exame ou, por exemplo, apresentar candidatura a um lugar na Função Pública. Para Manuel Lemos, este poderia ser o caminho a seguir. “Nem nos lembramos que há um conjunto de vacinas que são obrigatórias, se calhar, resolvia-se desta forma”, propõe. Com tal medida, a não adesão à vacina, exceto por razões clínicas, poderia fundamentar a recusa de admissão de um profissional para um lar e até ser argumento para despedir com justa causa. Caso contrário, sem obrigatoriedade legal, fica mais difícil.

João Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Apoio Domiciliário, de Lares e Casas de Repouso de Idosos (ALI), pede cautela na análise porque as recusas existem, mas são uma minoria. Há muitos casos de funcionários que foram infetados e aguardam que passe o tempo exigível para tomar a vacina (entretanto antecipado de 180 para 90 dias) e também situações de alergias e outras complicações de saúde que esperam agendamento para vacinação no hospital. A ALI representa um quarto dos lares privados e João Ferreira de Almeida diz desconhecer casos de funcionários que rejeitam as vacinas. Há dias, a propósito de um surto numa instituição particular de solidariedade social de Mafra, em que se registou uma morte, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo informou que oito dos 13 funcionários recusaram a vacina. O lar é membro da ALI, mas o presidente não confirma. “Ao que sabemos, não houve recusas”, afirma. Ainda assim, admite que esses casos existem: “Claro que há recusas, não nego isso, há muita informação tóxica nas redes sociais”.

Embora, na generalidade, o Plano Nacional de Vacinação não seja obrigatório, há vacinas que o são
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Mesmo que os funcionários que não queiram vacinar-se sejam uma minoria, a verdade é que deixam as instituições que têm como missão proteger e cuidar de outros com uma batata quente nas mãos. À semelhança de Manuel Lemos, João Ferreira de Almeida considera “indispensável” que o Governo e a Assembleia da República façam uma “reflexão séria” sobre o tema e esclareçam as instituições. É defensor da vacinação obrigatória, “resolveria muitos problemas”, mas, se não for esse o percurso seguido pelo Estado, então esclareçam, insiste.

“Podemos despedir? Sempre ouvi dizer que não. Mas mesmo que sim, convém lembrar que os tribunais do trabalho tendem a decidir a favor dos trabalhadores e que estes processos levam muito tempo”, refere o responsável.

E a possibilidade de só admitir com certificado de vacinação é uma solução? “Só teria efeito a longo prazo e o problema é hoje”, realça, sem, no entanto, descartar a hipótese. Para André Dias Pereira, diretor do Centro de Direito Biomédico, “um trabalhador da área da Saúde tem o dever ético de se proteger a si e aos outros”. No plano jurídico, não há nenhuma lei a impor a toma obrigatória desta vacina, mas “há espaço de apreciação jurídica”.

No caso dos médicos e dos enfermeiros, as profissões regem-se por códigos deontológicos com normas que asseguram a proteção dos doentes, colegas, instituição e, por aí, não seria difícil encontrar uma violação deontológica das normas, salienta André Dias Pereira. Argumentos como a autonomia e a liberdade de escolha, bem como a falta de fundamentação científica das vacinas parecem “insuficientes” no olhar do também professor de Direito da Universidade de Coimbra. Por um lado, “a liberdade dos profissionais de saúde tem de estar dentro das regras da deontologia” e, por outro, se é certo que a vacina ainda é experimental (ainda não recebeu autorização definitiva do Infarmed), também é certo que está validada por comissões científicas.

“Daí a chegarmos a despedimento por justa causa vai um passo grande porque o Direito do Trabalho protege bastante o trabalhador, mas há um risco grave de haver fundamento para despedimento com base em violação de deveres deontológicos e de deveres funcionais perante a instituição”, assinala. No caso dos assistentes operacionais e de outras profissões não reguladas por códigos deontológicos também há deveres estatutários relativos aos utentes e à comunidade, embora o enquadramento possa ser “mais frágil”.

Exigir certificado de imunização para contratar?

Mais sólida, na opinião de André Dias Pereira, parece ser a possibilidade de tornar a vacinação um requisito obrigatório para admissão de um trabalhador num lar ou numa instituição de saúde ou até num restaurante ou hotel. “A entidade patronal tem o dever jurídico de assegurar a proteção dos seus clientes e de escolher as pessoas mais preparadas. Se não quer saber se os profissionais estão vacinados, então, está a pôr em risco a integridade física dos seus utentes”, sublinha o docente, concluindo que se “há uma série de profissões em que é obrigatório pedir o registo criminal do trabalhador para admissão, então, também se pode vir a instituir o requisito da vacinação”.

Opinião diferente tem José Amorim Magalhães. Antes de mais, o advogado do departamento laboral da sociedade Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados (ML) vê com dificuldade a imposição da vacinação obrigatória à generalidade das pessoas. “Admito que possa vir a ser um imperativo de saúde pública, mas o desconhecimento ainda existente sobre os efeitos secundários que a vacina pode ter a curto, médio e longo prazo constitui, na minha opinião, um obstáculo objetivo à dita imperatividade.” Distinta é a situação dos profissionais dos lares que trabalham em contacto direto com pessoas mais vulneráveis às formas mais graves da doença. Em relação a estes trabalhadores, o advogado tende a considerar que “uma medida legislativa de imposição da vacinação contra a covid-19 seria adequada, necessária e proporcional face aos diversos direitos em confronto”.

No caso, a questão da recusa/imposição da vacina mexe com o direito ao trabalho e à escolha do exercício da profissão, com o direito à saúde pública e ainda com o direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade de quem é chamado a tomar a vacina. Em caso de conflito, a resolução deve procurar “o princípio da harmonização”, ou seja, tentar a conciliação de todos os direitos, sacrificando o mínimo de cada um, explica.

Apenas a Assembleia da República (ou o Governo com autorização desta) pode legislar sobre as circunstâncias e condições em que a vacinação contra a covid-19 deve ser obrigatória, bem como sobre as consequências jurídicas do incumprimento dessa obrigatoriedade, observa José Amorim Magalhães, lembrando que, até à publicação de legislação, “está vedado ao empregador impor a vacinação aos seus trabalhadores”, sejam quais forem as funções em causa, “bem como adotar qualquer ato de desfavor em relação àqueles que optam por não se vacinar, sob pena de tal comportamento ser considerado ilícito e, inclusive, discriminatório”.

Não sendo a vacinação contra a covid-19 obrigatória em Portugal, a decisão sobre a toma é uma “escolha estritamente pessoal e individual na qual o empregador não se pode imiscuir”, frisa o advogado. Mesmo no caso de quem trabalha em contacto direto com grupos de risco, tendo em conta que a vacina não é legalmente imposta e que não elimina a possibilidade de infeção do vírus, é “difícil afirmar que o trabalhador que se recusa a tomar a vacina coloca deliberadamente em risco a segurança e saúde” dos utentes e que essa recusa seja um comportamento de tal modo grave que torne impossível a subsistência da relação laboral.

O mesmo raciocínio quanto à proibição do empregador impor a vacinação aos seus trabalhadores sem que a legislação o exija, aplica-se, na opinião do advogado da ML, ao candidato ao emprego, seja do setor público ou do privado. Exigir um certificado que comprove a vacinação completa para admissão de um funcionário pode ser considerada uma violação do direito à reserva e intimidade da vida privada e do direito à igualdade no acesso ao emprego, defende. “Não sendo a toma da vacina imposta por lei para qualquer grupo de trabalhadores, não pode o empregador substituir-se ao Estado, condicionando o acesso ao emprego à apresentação de um comprovativo de vacinação”, sustenta. Tal pode ser entendido como uma violação dos direitos do trabalhador e uma conduta discriminatória face a outros candidatos. “Se o empregador não pode impor aos trabalhadores a toma da vacina, também não poderá impor como requisito de admissão um comprovativo de vacinação, sob pena de através do segundo estar a encapotadamente exigir o primeiro”, conclui José Amorim Magalhães.

(Foto: Freepik)

A enfermeira Catarina está ciente dos direitos que têm e assegura que dorme descansada com a escolha que fez. “Tenho uma colega auxiliar que tomou as duas doses e está internada nos Cuidados Intensivos. Como se chega a isto depois de receber a vacinação completa?”, pergunta, voltando às dúvidas e a questionar a ciência. A eficácia das vacinas a evitar as formas mais graves da covid-19 e até a morte anda entre os 66% e os 95%, dependendo do fármaco tomado, sendo que as da Pfizer e da Moderna são as que apresentam melhores resultados. Porém, também é certo que a imunização não elimina totalmente o risco de infeção e de transmissão do vírus, como, aliás, a Organização Mundial da Saúde já veio alertar. Por ora, sabe-se que uma pessoa vacinada tem menos probabilidade de ser infetada, e, se acontecer, o risco de transmitir a doença será também menor porque a carga viral será inferior, como já explicou o epidemiologista Manuel Carmo Gomes.

É com base nessa premissa que os países estão a apostar tudo na imunização, tomando-a como a melhor arma para controlar a pandemia e para começar a recuperar a economia mundial. Em Portugal, a ameaça de uma quarta vaga é cada vez mais evidente. O aumento da incidência e do risco de transmissibilidade cresce há várias semanas à boleia da supercontagiosa variante Delta, prestes a destronar a britânica e a tornar-se dominante. Os casos dispararam primeiro em Lisboa e Vale do Tejo, depois no Algarve e, mais recentemente, no norte, ao ponto de o Hospital de S. João, no Porto, ter alertado esta semana para um aumento “exponencial e preocupante” de suspeitos de covid-19 a recorrer às urgências. A região da capital foi forçada a recuar no processo de desconfinamento e no Algarve as escolas dos 1º.º e 2º.º ciclos de cinco concelhos fecharam, apanhando as famílias de surpresa. A corrida contra o vírus está a impor um ritmo mais acelerado na vacinação e novas medidas de contenção que já ninguém esperava.

Enquanto isso, a União Europeia continua a trabalhar para que a vacinação completa possa ser um novo passaporte para a liberdade. A manterem-se as previsões, a partir de 1 de julho, as viagens com o certificado digital covid-19 dispensam a realização de testes e quarentenas para quem está vacinado (com exceção da Alemanha, que face ao agravamento da incidência e prevalência da variante Delta retirou Portugal da lista verde e impõe um isolamento profilático de 14 dias). Também aqui, sobram dúvidas e reticências a quem escolheu não se vacinar. “Não concordo com este caminho que beneficia quem se vacina porque não é com a vacinação que se evita o contágio. Para internar alguém num hospital é preciso fazer teste à covid-19, não basta estar vacinado, pois não? É com os testes que se evita o contágio”, argumenta a enfermeira Catarina.

Resistências na população ativa

A adesão dos portugueses à vacina nunca foi nem ameaça ser um problema, ao contrário do que acontece noutros países da Europa e nos Estados Unidos, onde os movimentos antivacinas ganham terreno há anos e onde a preocupação com a saúde pública não é tão evidente. Na Bulgária, por exemplo, apenas 15% da população tomou a primeira dose, mas já estão a sobrar vacinas por desinteresse da população. Em Portugal, o cenário é o oposto, mas ainda assim à medida que a campanha de vacinação progride (mais de 50% da população já tomou pelo menos uma dose) encontram-se novos obstáculos. Dos mais de quatro milhões de SMS enviados até ao último dia 28 para convocar os utentes para a vacinação, 74% (2, 9 milhões) responderam positivamente e 2,4% (97.224) disseram que não. Os restantes 23,6%, quase um milhão de utentes, não reagiram à mensagem. Por outro lado, o último inquérito da Escola Nacional de Saúde Pública, realizado na quinzena que terminou a 25 de junho, revela que “é na população ativa, nos homens e nas pessoas com mais escolaridade que se verifica maior resistência em relação à toma da vacina”. Entre os 45 e os 65 anos, 9,2% dos inquiridos afirmaram não ter intenção de tomar a vacina. Nos mais jovens (26 a 45 anos), a resistência é menor (5,6%) e nos mais velhos mais reduzida ainda (3,7%). Apesar destas bolsas, no total dos inquiridos ainda não vacinados, 86,7% querem tomar a vacina e apenas 6,5% diz não ter intenção de fazê-lo, valor semelhante aos que ainda estão hesitantes (6,8%). Desconhecem-se as áreas de atividade dos resistentes. Muitos estarão em contacto com grupos de risco, outros não. Catarina tem uma certeza: “Não sou uma ave rara, conheço várias pessoas da área da saúde que não vão tomar a vacina”.