Quando o açúcar no sangue baixa perigosamente

Entender o problema implica, antes de mais, desconstruir o conceito de hipoglicemia noturna

As hipoglicemias noturnas são frequentes nos doentes que sofrem de diabetes tipo 1 - e particularmente perigosas nas crianças. Evoluções tecnológicas têm permitido livrar os pais de um desassossego permanente.

Jenifer Duarte, gestora de produto, 31 anos, tinha dez quando soube que sofria de diabetes tipo 1, uma doença autoimune que se caracteriza pela destruição das células que produzem insulina no pâncreas. A notícia chegou sem aviso. Jenifer não tinha qualquer caso de diabetes na família. Mas nem isso a livrou de um diagnóstico que lhe mudaria as rotinas para sempre. Anos depois, diagnosticaram-lhe também artrite reumatoide. Um fator de desequilíbrio adicional num malabarismo já de si difícil.

“Costumo dizer que é como jogar um jogo 24 horas por dia”, resume a almadense. O desafio é adequar, a cada momento, a insulina injetada às necessidades do organismo. E de simples nada tem. “É sempre complicado gerir porque não há dias iguais.” Para Jenifer, o período da adolescência, com a ebulição hormonal que ela traz – e com implicações que isso tem nas necessidades de insulina -, foi particularmente penoso. As noites, então, podiam tornar-se o cabo dos trabalhos. Volta e meia, acordava com palpitações, calor, tremores, um desconforto imenso a despertá-la de um sono aparentemente tranquilo.

Aprendeu depressa a interpretar aqueles sintomas. A travá-los também. Ingeria açúcar (sempre gostou dos néctares) e passados cinco/dez minutos estava consideravelmente melhor, o corpo a dizer-lhe que se tinha livrado de mais uma hipoglicemia noturna.
Entretanto, fez-se adulta e começou a olhar para a doença com “outro tipo de aceitação”. As evoluções tecnológicas também lhe vieram facilitar a vida. Primeiro a bomba infusora de insulina – espécie de pager que está permanentemente ligado ao doente e é configurado para ir injetando uma certa dose desta hormona -, depois o sensor, que lhe permite verificar os níveis de glicose no sangue sem que seja preciso andar constantemente a picar o dedo.

“Hoje em dia, basta olhar-me para o telemóvel para verificar os meus níveis e conseguir ajustá-los rapidamente.” Recentemente, foi até lançado um novo dispositivo de monitorização de glicose que, através de um sistema de alarmes, permite que os doentes sejam alertados, em tempo real, sempre que tiverem sintomas de hipo ou hiperglicemia. A evolução tem sido tal que atualmente Jenifer mal sabe o que é despertar com uma hipoglicemia noturna. Mas as quebras de açúcar continuam a ser uma preocupação constante para quem sofre deste tipo de doença.

Os riscos das quebras de açúcar

Entender o problema implica, antes de mais, desconstruir o conceito de hipoglicemia noturna. Falamos de um valor de glicemia (açúcar no sangue) suficientemente baixo para causar sintomas e eventualmente dano orgânico. Estas quebras de açúcar podem ser particularmente perigosas quando ocorrem durante a noite porque, ao contrário de Jenifer, que sempre despertou com o corpo a dizer-lhe algo não estava bem, nem todos os doentes as conseguem percecionar, havendo risco de passarem um longo período em hipoglicemia.

E há estudos a sugerir que é precisamente neste período que mais de metade destas diminuições glicémicas acontecem. Mas, afinal, as hipoglicemias noturnas afetam unicamente quem sofre de diabetes? Não. Segundo a John Hopkins Medicine (EUA), o risco aumenta em quem passe uma refeição importante, sobretudo o jantar, faça exercício físico antes de deitar ou consuma bebidas alcoólicas.

Mas, como observa César Esteves, endocrinologista no Grupo Luz Saúde, o problema é muito mais frequente em indivíduos com diabetes, particularmente do tipo 1. O risco também. “Nestes casos, a quase totalidade de insulina provém de fonte exógena e há uma maior probabilidade de se verificar uma maior desproporção entre a exposição à insulina e as necessidades do doente.”

Necessidades essas que variam consoante a ingestão alimentar e a atividade física, por exemplo. Ou seja: uma dose que costume funcionar para uma dada pessoa será provavelmente excessiva se esta realizar exercício físico fora do normal num determinado dia. “É um problema difícil de prevenir e que requer muita atenção ao pormenor”, assinala.

Dentro destas dificuldades, o especialista, que também é coordenador do Grupo de Estudos de Tecnologias Avançadas em Diabetes da Sociedade Portuguesa de Diabetologia, explica que há dois cenários possíveis, com vários subcenários envolvidos.

“Cenário um: no caso de estar com uma hipoglicemia, o indivíduo acorda, com o corpo a reagir [palpitações, suores, dores de cabeça…] e vai comer alguma coisa. Por vezes, o doente pode encontrar-se num estado tal de confusão que não consiga tratar-se a si próprio. Cenário dois: o doente entra em hipoglicemia e não acorda. E aqui há dois subcenários possíveis. Num pode ocorrer o coma ou mesmo a morte – embora seja cada vez mais raro -, noutro o corpo acaba por recuperar mesmo sem o indivíduo despertar, mas a pessoa acorda com dores de cabeça, irritada, cansada. Há, portanto, compromisso da qualidade de vida.”

No caso dos mais pequenos, o cenário é ainda mais preocupante. Como refere Brígida Robalo, que se dedica à endocrinologia pediátrica no Hospital de Santa Maria e no Hospital Lusíadas, em Lisboa, as hipoglicemias podem mesmo originar “alterações ao nível do sistema nervoso central que, no caso das crianças, ainda está em formação”. O resultado é, quase sempre, um estado de desassossego permanente para os pais.

Alexandre Silva, de Santarém, é pai de Joana, de dez anos, e aprendeu com ela o significado destas palavras. A filha tinha quatro anos quando lhe começaram a notar algumas diferenças relevantes. Não só começou a comer consideravelmente mais como a beber muito mais água.

Os pais ficaram com a pulga atrás da orelha e, aconselhados por um enfermeiro amigo, optaram por ir fazer o teste. A glicemia de Joana estava de tal forma alta que a máquina “deu erro”. “O limite era 120 e a Joana tinha 750. O pâncreas pura e simplesmente deixou de produzir insulina.” Seguiram-se dez longos dias de internamento hospitalar. Mas o problema estava longe de ficar resolvido por ali.

Rotina desgastante

O que estava para vir era uma longa e desgastante rotina de doses de insulina, “umas seis ou sete vezes ao dia”. Isto ainda antes de surgir a bomba, que de forma automática vai assegurando este processo. Mas é uma ginástica sempre ardilosa, porque dependente de vários fatores. Ainda mais na fase em que Joana está agora, da pré-adolescência. Tanto que, estima Alexandre Silva, a filha se debate com episódios de hipoglicemias noturnas “duas a três vezes por semana”. O estado de preocupação constante é, pois, evidente.

“Durante muito tempo, acordávamos de três em três horas, não sabíamos o que era ter uma noite completa de sono.” Felizmente, dá graças, o sensor veio dar-lhes, a todos, outra qualidade de vida. “Se virmos que o valor está a descer muito, damos-lhe um néctar e a coisa resolve-se.”

Também Brígida Robalo reconhece que estes sistemas de monitorização vieram “melhorar em muito a qualidade de vida dos doentes e da família”. E para que o problema não passe despercebido especifica os sinais de alerta da diabetes a que todos os pais devem estar atentos.

“Habitualmente, as manifestações clínicas são o facto de as crianças terem muita sede (polidipsia), urinarem em maior quantidade (poliúria) e voltarem a fazer xixi na cama e terem muita fome (polifagia), mas, mesmo assim, perderem peso”, realça a pediatra. A diabetes tipo 1 “pode aparecer em qualquer idade mas é a forma mais típica das crianças e jovens, sabendo-se que existe uma predisposição genética”.