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Pobreza menstrual: sangrar não devia ser um luxo

Fotos: Freepik

A pobreza menstrual não acaba na questão do poder de compra

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Andreia teve de escolher entre comprar pensos ou o bilhete do autocarro. Cármen chegou a roubar tampões no supermercado. A pobreza menstrual existe em Portugal e afeta a vida e a autoestima de quem vive essa privação.

Andreia vem de “uma família de classe média, normal”. Comprar pensos higiénicos nunca tinha sido problema até aos 23 anos, quando saiu da casa dos pais. Na altura, vivia e estagiava em Peniche e estudava numa universidade privada de Lisboa. O dinheiro que ganhava a trabalhar num bar não dava para as despesas e, durante meio ano, teve de escolher: ou comprava pensos ou pagava os transportes. “Vinha-me o período e eu pensava ‘não vou gastar um euro e tal nisto só por quatro dias quando preciso do dinheiro’. Ia fazer-me falta, dava-me para apanhar o autocarro quando tinha de ir à faculdade, que era muito longe. Não havia hipótese, era impossível esticar. Abdicava dos pensos.”

Durante seis meses, quando menstruava, passou a usar papel higiénico que tirava do local de estágio e da faculdade. “Depois, arranjei trabalho e hoje isso nem me passa pela cabeça.” Só agora, com 38 anos, é que ganhou consciência do que viveu quando começou a ouvir falar de pobreza menstrual. “Tenho a certeza de que há muita gente a passar por isso e não tem consciência. Porque quando não há, não há. Uma pessoa torna-se resiliente e procura solução, não pensa que é pobre por não ter dinheiro para pensos. Só se pensa assim quando não se tem para comer. Está muito enraizado.” Na altura, Andreia trabalhava com mães cujos filhos lhes tinham sido retirados. “E, para mim, que vivia outra realidade, aquilo é que era pobreza. Nem pensava na minha.”

A sua pobreza era a mesma de Cármen, 31 anos, que certo dia, tinha então 17, roubou uma caixa de tampões de um supermercado. “Para mim, era muito dinheiro. Era um dos bens mais caros que tinha de comprar mensalmente. Não me orgulho, mas, na altura, não tive outra opção. Foi num momento da vida em que não tinha a quem pedir.” A vida deu voltas e agora Cármen produz e vende pensos higiénicos reutilizáveis, que já ofereceu a quem não tinha como pagar.

Foi o que fez com Patrícia que, primeiro como filha e depois como mãe, tem carregado a menstruação como um fardo. Em miúda, ficava a dever os pensos na mercearia ou na farmácia. Em adulta – a última vez foi no início do ano -, teve de pedir dinheiro ao pai para comprá-los para a filha. “Nos 15 dias antes do fim do mês, estou a contar os trocos. Já me aconteceu chegar ao supermercado, ver que uma caixa de tampões custa três euros e só ter um. Paciência, ponho papel higiénico ou peço à minha irmã, logo se vê.”

A água, a eletricidade, a renda e a comida são prioridades. “Na lista do supermercado, é muito mais importante comprar outras coisas do que termos uma caixa de tampões em casa.” A pensar na poupança ambiental, mas sobretudo na sua, Patrícia passou a usar copo menstrual (que custa entre 20 e 30 euros e pode durar até dez anos) e a filha pensos laváveis.

“Agora sinto-me livre, nunca mais vou ter de investir nisso.” Mas, para a miúda, “é um bocado assustador”: “Eu já tenho 33 anos e ainda não se fala muito do período. E ela, coitadinha, com 13, já tem de estar a lavar sangue dos pensos.” Não porque queira, mas porque as outras opções não lhe cabem no bolso. “Não é a situação que se vive em África, mas não é por isso que não tem o mesmo nome.”

Pobreza menstrual, um problema que une as histórias destas mulheres portuguesas, com casa e com família. Sem rostos expostos, a seu pedido. Porque a vida que acontece dentro delas aí pertence.

“É um conceito muito abrangente e tem três pilares essenciais”, explica Patrícia Lemos, educadora menstrual e para a fertilidade, que dedicou os últimos anos a ajudar mulheres a engravidar e evitar gravidezes, estimulando a literacia do corpo e combatendo as patranhas que foram passando de geração em geração no que ao período diz respeito. O primeiro pilar é a privação do “acesso aos produtos de recolha menstrual, que têm de ser adequados às necessidades das pessoas que menstruam” – sim, leu bem: não só mulheres, mas também homens transgénero e pessoas que não se identificam com nenhum dos géneros.

Outro é a falta de informação “para perceber de que forma o ciclo e a menstruação podem indiciar algum problema” (dores não devem ser normalizadas). E, por fim, a procura de “conforto, para nos dar dignidade, porque a vida não tem de ser penalizada por se menstruar”, esse fenómeno natural que por todo o Mundo é causa de casamentos precoces, isolamentos forçados e desigualdades no acesso ao trabalho e à educação (uma em cada dez meninas africanas falta à escola durante o período, segundo a Unicef).

17% admitem dificuldades

Mas, como todas, esta pobreza também não é exclusiva de lá longe. Vive aqui ao lado. Num estudo de 2020 sobre as conceções de 445 mulheres portuguesas sobre menstruação e higiene menstrual, apresentado na Universidade do Minho, 16,6% responderam ter dificuldade em comprar produtos de recolha. “Nesta amostra, que não é vulnerável [a maioria das participantes era licenciada e da zona de Lisboa], o número não deixa de ser estranho”, diz a sexóloga Vânia Beliz, uma das autoras da investigação que lembra que em Portugal “também há mulheres sem saneamento” e sem casa.

Foi a pensar nelas e neste “grave problema social completamente escondido” que a atriz Isabel Abreu lançou a 25 de abril, de braço dado e punho em riste com a também atriz Joana Seixas e a ativista Joana Guerra Tadeu, o projeto “Todas Merecemos”, acolhido pela Associação Corações Com Coroa, que alerta e contribui ativamente, no terreno, para a eliminação da pobreza menstrual em Portugal. “Como é que pessoas sem dinheiro têm acesso a tampões, pensos ou coletores? Como é que menstrua uma pessoa sem acesso a casa de banho? E uma pessoa sem água? Se estás numa situação de exclusão social, vais falar das tuas dores menstruais?”, questiona Isabel Abreu, lembrando que a pandemia veio agravar as desigualdades.

Gratuitidade de produtos em debate

Vamos, então, a contas. Numa vida fértil que dure 37 anos, desde a menarca (primeira menstruação) até à menopausa (a última), uma mulher terá, em média, 450 menstruações e usará 20 absorventes por ciclo (nove mil ao todo). Se cada um custar dez cêntimos, vai gastar 900 euros; se custar 25, chegamos aos 2 250 (mais ou menos consoante marcas e características). E estes números deixam de fora analgésicos, cuecas e contraceção hormonal. “Quem menstrua nasce com este ónus de ter de arranjar, ao longo da sua vida fértil, mais dinheiro para comprar algo que não é luxo, é um bem necessário”, aponta Isabel Abreu.

A gratuitidade dos produtos é, por isso, um bom ponto de partida. “Sobretudo se derem resposta às necessidades identificadas na população onde isso quer fazer a diferença”, como “as famílias mais carenciadas, as comunidades migrantes e LGBT, que muitas vezes são ostracizadas nas dinâmicas sociais e familiares” e têm dificuldade de acesso a estes produtos, acrescenta Patrícia Lemos. “Nas escolas, quando as miúdas dizem que não querem fazer Educação Física durante o período, muitas vezes é porque só têm um penso para o dia todo. Chegam às cinco da tarde, o penso está cheio, já começa a descolar, não estão confortáveis.” A campanha “Todas Merecemos” lança a ideia: “Se existem escalões que permitem dizer que determinado aluno não tem dinheiro para pagar refeições, porque não introduzir também o acesso gratuito a produtos menstruais?”

Partindo daí e à boleia do exemplo do Parlamento escocês – que aprovou, na generalidade, a gratuitidade desses produtos -, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues entregou um projeto, debatido esta semana na Comissão da Saúde, que recomenda ao Governo a sua distribuição nos centros de saúde, escolas e universidades a utentes e estudantes carenciadas, bem como a mulheres em situação de sem-abrigo.

Escolas, higiene e autoestima

Mas a pobreza menstrual não acaba na questão do poder de compra. “As nossas casas de banho não estão sensíveis à menstruação”, alerta Vânia Beliz, lembrando que muitas vezes os autoclismos não funcionam, as portas não fecham, não há luz, não há sabão, nas escolas as crianças têm de pedir papel às funcionárias. E, sem pontos de água dentro dos cubículos, quem usa copo menstrual não tem onde lavá-lo senão na área comum. Para a sexóloga, que integra vários projetos na área da educação sexual em meio escolar, as escolas são “prioridade” na melhoria das condições e na educação menstrual. “As primeiras experiências são muito importantes para a autoestima e para a forma como as meninas vão lidar com a menstruação e o corpo. Se tiverem nojo e estigma, a ideia vai perdurar.”

E como levar o tema para as salas de aula? Comecemos pelos currículos, cuja revisão o Parlamento aprovou recentemente. “É importante que o tema da menstruação e puberdade esteja lá”, avisa Vânia Beliz, acenando com as recomendações internacionais que Portugal não cumpre. “No nosso Referencial da Educação para a Saúde, não se fala praticamente sobre menstruação. Mas o guião internacional da UNESCO tem indicações específicas para se trabalhar esse tema, para evitar o estigma e a desigualdade.”