Quando a gravidez provoca depressão

Andreia Costa diz que sentia “enorme tristeza, uma grande irritação”, que “só queria discutir” e que se afastou de muitas pessoas durante a gravidez de Rafael (Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Raquel tentou suicidar-se três vezes. Andreia deixou de cuidar dela e da casa e teve ataques de pânico. A depressão na gestação tem forte impacto na mulher, no desenvolvimento do feto e em toda a família, mas raramente é devidamente tratada.

Raquel Ponte tem 35 anos, é de Antas, Esposende, e há 13 foi mãe do Gonçalo. Uma gravidez planeada e desejada. Quatro anos depois, engravidou sem esperar. “Chorava noite e dia, fechada no quarto, às escuras. Não queria comer. Não tratava do meu filho mais velho como uma mãe normal”, desabafa. Preparava o menino de manhã, mas não o levava ao infantário, lembra, sem esconder o desgosto dessa fase “muito vulnerável”. Queria “mudar de vida, arranjar trabalho”, mas “só pensava que a gravidez atrapalhava”.

A juntar ao descontentamento, numa fase supostamente feliz, Raquel começou a ter ataques de pânico e de ansiedade. “Nunca aceitei a segunda gravidez. Tentei o suicídio, grávida, por três vezes”, confessa, com um olhar triste. “Deixei de ter gosto pela vida e sentia que só dava desgostos a quem vivia comigo. Com a depressão, não somos nós. Vivemos no fundo do poço.”

Raquel “passa a ferro em fábricas de confeção” e assume a origem da ansiedade: “Sofri maus-tratos por parte dos meus pais”. Quando surgiram os primeiros sintomas da depressão, tanto os sogros como alguns vizinhos comentavam com o marido, Carlos, que “era manha para não trabalhar”. Com o agravamento do seu estado, o companheiro marcou uma consulta. “O psiquiatra pediu ao meu marido para não me deixar sozinha. Tinha depressão profunda.”

Para alguns autores, não se justifica diferenciar depressão na gravidez dos outros quadros depressivos. Por um lado, “têm razão porque não é muito diferente de outra altura da vida, por outro, tem características que são importantes para a intervenção, como os elevados níveis de ansiedade e os problemas de sono. É muito rara a ideação suicida, mas pode ocorrer”, sustenta Bárbara Figueiredo, professora na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Com investigação desenvolvida há mais de 30 anos na área perinatal, a docente refere que o risco de uma mulher desenvolver depressão na gestação se deve à vulnerabilidade, que pode resultar do historial prévio, mas há outros fatores, como a qualidade da relação conjugal, o planeamento e o desejo de engravidar.

Rafael completou um ano no passado dia 5 de fevereiro e, quando era um feto de dois meses, a depressão de Andreia Costa, de 36 anos, “intensificou-se brutalmente”. Streamer de jogos a viver em Alcântara, é mãe de mais dois rapazes, o Bernardo, de 17, e o Miguel, de dez, e acredita que a doença diagnosticada “por volta dos 24 anos” tenha como possíveis causas a “violência doméstica numa relação anterior” e o facto de o Miguel “ter necessidades especiais”. “Sentia uma enorme tristeza e uma grande irritação. Só queria discutir. Afastei-me de muitas pessoas e deixei algumas atividades de parte. Não cuidava de mim, nem da casa. Tive ataques de pânico que me impossibilitavam de sair de casa, por exemplo, para ir às consultas.”Além disso, “tinha muito receio de que o Rafael nascesse com os mesmos problemas do Miguel”, mas recorda uma frase do marido que lhe dava tranquilidade: “O Ricardo dizia-me ‘Venha como vier, vou amar. É nosso filho’”.

Afeta 10 a 20% das grávidas

As estimativas nacionais apontam para uma prevalência da depressão na gravidez entre os 10 a 20%. Sintomas como tristeza, choro fácil, diminuição acentuada do interesse ou prazer em tarefas que eram satisfatórias, fadiga, alterações no sono e no apetite ou dificuldades de concentração “têm de estar presentes por um período de pelo menos duas semanas para que se estabeleça o diagnóstico”, detalha Ana Fonseca, psicóloga clínica e membro do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Alerta, contudo, que alguns sinais “podem ser confundidos com as alterações físicas do próprio processo de gravidez e, assim, dificultar o adequado diagnóstico”.

 

Raquel Ponte “chorava noite e dia, fechada no quarto, às escuras”, e “não queria comer” quando engravidou da segunda vez
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Segundo Bárbara Figueiredo, se a depressão ocorrer no primeiro trimestre, há efeitos que são determinantes no desenvolvimento do feto. Dois artigos científicos publicados pela sua equipa, em 2018 e 2020, concluem que há menor variabilidade cardíaca nos fetos de grávidas com depressão. “Se o feto se mexer muito no terceiro trimestre de gestação, pode significar que há um menor desenvolvimento do sistema nervoso central, pois é suposto ocorrer um maior controlo dos movimentos gerais”, explica a investigadora.

Além do “sofrimento, vergonha e culpa que geram às mulheres, as consequências da depressão na gravidez afetam toda a família, em especial o desenvolvimento dos filhos”, considera Ana Telma Pereira, coordenadora do grupo de investigação em Saúde Perinatal do Instituto de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Parto prematuro, baixo peso à nascença, défice no desenvolvimento cognitivo, motor e socioemocional na infância e adolescência podem também ocorrer.

Na abordagem das gestantes com depressão, “restabelecer o sono é um dos aspetos a privilegiar, assim como repor as rotinas relativas aos cuidados pessoais e à alimentação e diminuir a ansiedade e o cansaço”, aconselha Bárbara Figueiredo. De acordo com Ana Fonseca, na depressão moderada, é indicada a intervenção psicológica, podendo ser combinada com terapêutica farmacológica nos casos mais graves. Ressalva, porém, que “o médico tem de ter em consideração o custo-benefício da medicação, porque alguns psicofármacos não são aconselhados na gravidez”.

Poucas recebem apoio profissional

A opinião da mulher deve ser ouvida. Andreia Costa optou por interromper os antidepressivos. “Fiquei com muito medo. Pensava que iria ter todos os efeitos secundários e prejudicar o bebé. Só tomava o psicotrópico para a ansiedade”, comenta esta mãe.

Muitas mulheres não reconhecem o sofrimento que estão a passar como uma doença, não pedem ajuda e não são corretamente tratadas. Como em Portugal não existe um rastreio, a deteção “está muito dependente dos obstetras, médicos de família e enfermeiros estarem vigilantes e questionarem a grávida acerca do seu estado emocional ou da capacidade de a mulher identificar os sintomas e pedir ajuda profissional”, sublinha Ana Fonseca, acrescentando que um estudo de 2015, feito pela sua equipa, mostrou que só 14% das mulheres com sintomas de depressão clinicamente relevantes no período perinatal solicitaram ajuda.

Recorrer a auxílio profissional é essencial para prevenir a depressão pós-parto. “Mulheres que tenham experimentado uma depressão numa gravidez anterior, ou que tenham antecedentes de doença mental, têm uma probabilidade muito significativa de desenvolverem depressão numa gravidez seguinte, na ordem dos 50%, e cerca de 40% das mulheres que desenvolverem depressão na gravidez acabam por mantê-la no pós-parto”, evidencia Ana Vale, enfermeira especialista em Saúde Mental de Lisboa.

Um estudo de Ana Telma Pereira revela que 15% das mulheres têm pensamentos relacionados com obsessões no pós-parto. Segundo a investigadora, alguns estão ligados ao medo de o bebé morrer durante o sono ou ser levado por alguém. “A maioria das pessoas não valoriza e os pensamentos acabam por passar.” Nos casos mais extremos, a mãe tem medo de estar com o bebé ou há prejuízo das rotinas devido à necessidade de verificação constante do filho.

“Diziam que poderia fazer mal ao bebé, inclusive matar”

Raquel recorda, com muito sofrimento, o parto de Leandro, “com ataques de pânico e constantemente a chamar as enfermeiras”. “Após o nascimento, os médicos disseram ao meu marido para ter muita atenção. No estado em que estava, diziam que poderia fazer mal ao bebé, inclusive matar”, suspira. Nos cinco anos que se seguiram, “vivia fechada em casa” com depressão, ataques de pânico e ansiedade. “Os meus filhos pediam para ir ao parque ou passear e eu não conseguia. Andava todo o dia de pijama, não cozinhava nem fazia as tarefas domésticas.” Neste período, foi mãe pela terceira vez de Letícia, hoje com sete anos.

Os especialistas são unânimes: existem mais recursos do que há uns anos para apoiar grávidas e puérperas, mas ainda insuficientes. Ana Vale integra o grupo de profissionais que criou a Associação Umbilical com o intuito de “promover o bem-estar emocional”, por exemplo através da linha de apoio “Mãe, Nós Ajudamos!”. Nos próximos dois anos Ana Fonseca estará envolvida num estudo, em parceria com a Universidade de Oslo, Noruega, para conhecer o processo de decisão das mulheres, na gravidez e no pós-parto, nos tratamentos para ansiedade e depressão e, desse modo, promover a saúde mental materna.

Andreia retomou a medicação para a depressão depois do nascimento do filho sob orientação médica, mas decidiu parar de amamentar porque o fármaco não era recomendável. “Se não estivesse bem, não teria condições para cuidar do Rafael e do Miguel.”

O percurso de Raquel até à diminuição da posologia foi longo. Teve vários psiquiatras, consultas de psicologia e fez reiki até encontrar o médico que a ajudou a superar, com “força de vontade e caminhadas ao ar livre”, a depressão, realça esta mulher que há três anos foi mãe pela quarta vez de Santiago. “Gostaria de fazer o desmame dos comprimidos, mas a ansiedade está a voltar por causa das restrições da pandemia.” Também Andreia sente um agravamento e diz que quando sai à rua tem “crises de desrealização ao olhar para as pessoas” e pensa que “este não é o nosso mundo”.