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Presos nas malhas das redes sociais

O impacto de um monopólio como o que foi construído pela Facebook Inc. ultrapassa em muito a esfera pessoal (Foto: AdobeStock)

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A quebra no funcionamento das plataformas sociais do universo Facebook gerou ansiedade, stresse, prejuízos avultados também. Mas a questão é mais profunda do que isso. É o dilema da nossa total dependência de monopólios privados que põem e dispõem sem sombra de regulação. E que será tão mais necessária quanto mais o futuro se perspetiva eminentemente mergulhado na realidade virtual.

Tarde de segunda-feira, 4 de outubro, as plataformas sociais da Facebook Inc. (Facebook, Instagram, WhatsApp, o próprio Messenger) a falharem em simultâneo, a notícia do apagão a correr mundo, Paulo Rossas, Chief Innovation Officer da Lisbon Digital School, em mais uma volta pelo LinkedIn, rede social de âmbito profissional, depara-se com uma torrente de publicações sobre o assunto, umas quantas de pendor catastrofista. “Vi várias pessoas a dizer coisas como: ‘Espero que não voltem.’ Curioso é que estavam a partilhar aquilo numa rede social.” E outra vez aquela pergunta, que lhe soava tão estranhamente familiar: será este o fim do Facebook? “Fiquei a pensar naquilo e fui ao Google fazer uma pesquisa sobre o assunto. Encontrei artigos deste cariz desde 2011. Basicamente, todos os anos fazemos a mesma pergunta.” E já lá vão dez, que serão bem mais se fixarmos como ponto de partida o ano da criação: 2004. De então para cá, a rede social gizada e dirigida pelo americano Mark Zuckerberg (37 anos) consolidou-se como rainha suprema deste universo. Segundo dados do portal Statista, a plataforma contava, no segundo trimestre deste ano, com quase três mil milhões de utilizadores ativos mensais. Um poder de influência que se acentua se se alargar a análise às restantes plataformas da empresa. Em conjunto, Facebook, Instagram e WhatsApp têm mais de seis mil milhões de utilizadores em todo o Mundo, sendo três das quatro plataformas mais utilizadas do Planeta (só o YouTube se imiscui nesta “short list”, com mais de dois mil milhões). Tudo dados que levam Paulo a concluir sem hesitar: “Não, o Facebook não vai acabar.” O especialista em redes sociais defende até que em cima da mesa está o cenário oposto. “O Facebook está já a tratar de um novo mundo virtual, o Facebook Horizon, e nós vamos todos lá parar. Provavelmente, vamos é passar mais tempo lá do que o que já passamos.” Luís António Santos, professor de Comunicação na Universidade do Minho e investigador em questões relacionadas com as redes sociais, não é tão otimista. “Creio que o apagão é uma espécie de indicador simbólico de que algo vai mal no império, que porventura já passou o seu momento de maior expansão.” Num ponto, estão em sintonia: as teorias que vaticinaram a falha como o princípio do fim foram manifestamente exageradas.

Dias nebulosos

Mas, afinal, que turbulência é esta que vai agitando uma das maiores empresas de tecnologia do Mundo? Percebê-lo implica recuar no tempo. Desde logo, até março de 2018, quando rebentou o escândalo da Cambridge Analytica. Ficámos então a saber que a empresa tinha recolhido dados de quase 90 milhões de utilizadores do Facebook, que foram posteriormente usados por políticos para influenciar a opinião de eleitores em vários países. A discussão sobre os riscos associados à utilização das redes, e a consequente necessidade de implementação de normas éticas que as regulem, começava então a ganhar força. No ano seguinte, o documento “The Great Hack”, lançado pela Netflix, agudizava a ferida. E a bola de neve foi crescendo. Luís António Santos aponta exemplos concretos. “Deparámo-nos, ao longo dos últimos tempos, com vários episódios em que percebemos que o Facebook falhou, não por ter tido um papel ativo nas situações, mas por ter tido um papel passivo. No caso das Filipinas, por exemplo, ou no massacre do povo rohingya em Myanmar, ou mesmo no caso do Brexit. O que percebemos nas Filipinas, que pode ser considerado o caso zero, é como esta plataforma pode ser utilizada para espalhar desinformação e mentiras e como isso pode ter um efeito quase imediato em termos de reação popular. Seja votando nestas ou naquelas pessoas ou, no caso dos rohingyas, colocando sobre um conjunto de pessoas um estigma tal que quase ‘normaliza’ a extinção de um povo. O mesmo aconteceu no Brexit, em que foi possível disseminar informação falsa e ativar campanhas de propaganda agressiva sem qualquer controlo. Ou nas eleições de vários países.”

E se desde então o anátema do efeito perverso destas redes tem andado sempre a pairar, voltou a agigantar-se recentemente. Culpa de Frances Haugen, antiga gestora de produtos da empresa, que, em entrevista ao programa “60 minutes”, da CBS, se autodesmascarou como a denunciante que esteve na origem da fuga recente de um sem-fim de documentos internos, de onde ressalta a ideia de a empresa ter plena consciência de quão prejudicial pode ser para os utilizadores. Tanto que os próprios funcionários constatam, em relatórios para consumo interno, que o Instagram agrava os problemas que uma em cada três raparigas tem com a sua imagem corporal. Os documentos revelados mostraram ainda que as mudanças de algoritmo feitas em 2018 sob o pretexto de melhorar a plataforma tiveram, na verdade, o efeito oposto: tornaram o ambiente mais hostil, promovendo conteúdos que incentivam o confronto e a discussão entre os utilizadores. Agora, no programa “60 minutes” (e depois no Senado, onde também prestou depoimento), Frances Haugen reforçou que a empresa privilegia o lucro a qualquer custo, mesmo com impactos gravosos sobre o utilizador. E assegurou que, quando a Facebook Inc. fala no progresso que foi feito para combater a desinformação e a violência que acontecem na plataforma, está simplesmente a enganar tudo e todos.

É no meio deste turbilhão de acusações e má publicidade que se dá o “apagão”. As teorias da conspiração não tardaram, por isso, a multiplicar-se. Houve quem defendesse que o bloqueio tinha servido para apagar as provas das denúncias feitas por Frances Haugen. Ou quem garantisse que o código base tinha sido apagado e que com isso as plataformas da Facebook Inc. se tinham perdido para sempre. Ou até quem jurasse que a falha tinha sido obra de hackers chineses. Entretanto, a versão oficial: tudo não teria passado, afinal, de uma “alteração de configuração defeituosa”. Explicação demasiado breve para ser 100% convincente. Certo é o impacto avultado da falha nas finanças de Zuckerberg: o senhor Facebook terá perdido cerca de cinco mil milhões de euros num só dia, com as ações da gigante tecnológica a descerem quase 5% naquela segunda-feira negra.

Ansiedade, depressão, adição

O “blackout” teve ainda o condão de nos fazer mais conscientes em relação ao peso que estas redes, e este monopólio em particular, têm nas nossas vidas. José Tribolet, especialista em engenharia de sistemas e telecomunicações, recorre a uma metáfora arrojada. “Se de repente não há energia, água, combustíveis, quando elementos vitais falham, temos perturbações na realidade social enormes. Quando de repente uma rede vital na estrutura do espaço virtual deixa de funcionar também temos perturbações muito graves. Estamos a falar de infraestruturas críticas da sociedade.”

Por um lado, porque, em maior ou menor escala, nos fomos tornando dependentes. A prova é que de todo o Mundo chegaram relatos de horas de ansiedade e stresse vividos pelos cibernautas. E que no espaço de horas milhões de utilizadores migraram em massa para outras plataformas. Só o Telegram, aplicação de mensagens escritas, conquistou mais de 70 milhões de novos utilizadores.

Ivone Patrão, psicóloga que se tem debruçado sobre a dependência da Internet e as implicações do uso das redes sociais, em particular entre os mais jovens, ajuda a explicar o fenómeno. “Entram aqui uma data de fatores psicológicos. Há pessoas que se sentiam acompanhadas graças às redes e que passaram a experimentar a sensação de solidão e isolamento. Há também aquelas pessoas mais ansiosas e deprimidas que utilizam as redes como escape. Não podendo recorrer a elas, a ansiedade e a depressão vão-se acentuar.” A especialista lembra alguns resultados já obtidos pelo estudo que tem conduzido a nível nacional, “Geração Cordão”, para reforçar isso mesmo. “Muitos jovens assumiram que quando se sentem mais ansiosos, mais deprimidos, utilizam as redes como escape, para deixarem de pensar nos seus problemas e preocupações, para não se sentirem sozinhos e melhorarem emocionalmente.” Ivone Patrão salienta ainda uma suposta sensação de bem-estar que deriva da utilização destas redes e um alegado reforço da autoestima, que deriva dos gostos. “Ficar sem isso naquele dia é não ter tido reforço da sua autoestima, não ter sentido que os outros querem estar próximos. Além das pessoas que são efetivamente dependentes das redes.” Nesse caso, garante, a sensação de abstinência será semelhante à sentida no caso de outras dependências. Isso mesmo provam vários estudos internacionais que se dedicaram a mapear a atividade cerebral em ambos os casos.

Mark Zuckerberg, o senhor Facebook, tem estado no olho do furacão por causa das políticas da empresa
(Foto: Andrew Caballero-Reynolds / AFP)

Mas o impacto de um monopólio como o que foi construído pela Facebook Inc. ultrapassa em muito a esfera pessoal. Pedro Brinca, professor de Macroeconomia na Nova SBE, da Universidade Nova de Lisboa, ajuda a pôr as coisas em perspetiva. “Se olharmos apenas para os EUA, o setor das redes sociais representa apenas 0,5% do PIB. Isto num ano. Tendo em conta que estamos a falar de meia dúzia de horas, não creio que o impacto direto tenha sido muito grande. Mas há muita gente que se socorre destas redes e meios como comunicação orgânica dentro das próprias empresas e isso pode ter um impacto multiplicador noutras áreas de atividade económica que se torna muito difícil de prever.” Quem diz comunicação orgânica, diz comunicação com o cliente. Muitas empresas têm hoje serviços de apoio ao cliente via WhatsApp, por exemplo. Já para não falar dos anúncios que assentam nestas redes. Ou dos negócios 100% implantados no Facebook. No Brasil, por exemplo, sabe-se que 70% dos pequenos negócios dependem das redes sociais. Pedro Brinca também chama a atenção para esta questão, usando até um exemplo pessoal. “A minha mulher quando esteve grávida fartou-se de comprar biberões, chuchas e roupinhas a uma pastora na Mongólia, através das redes sociais. Elas dão poder aos indivíduos para colocarem os seus produtos no mercado. Mas depois, claro, ficam numa posição de extrema vulnerabilidade, porque estão dependentes destas plataformas para conseguir vender. E ficam reféns dos seus termos de utilização.”

O “Grande Irmão”

E isso leva-nos a um outro ponto deste novelo. A forma como uma companhia privada tem total dominância sobre todas as esferas da nossa vida. E sobre os perigos que isso acarreta. Tanto mais quanto esta e outras empresas têm crescido livremente e monopolizado o mercado sem regulação que permita frear-lhes o raio de ação. José Tribolet, especialista em engenharia de sistemas e telecomunicações, sublinha isso mesmo. “A nossa capacidade de tomar decisões está cada vez mais dependente da nossa vivência no mundo virtual e neste momento a vivência coletiva na realidade virtual é dominada por um conjunto de atores importantíssimos, de grandes instituições, cuja atuação condiciona positiva e negativamente as nossas experiências e a nossa vida e que têm agido sem nenhum contexto de regulação. Isto levanta um conjunto de questões.” Luís António Santos faz neste ponto uma chamada de atenção pertinente. “Estamos a focar atenções no Facebook e creio que há o risco de pensarmos que se resolvermos esse problema temos tudo resolvido, mas não. Não podemos esquecer as outras redes sociais e os outros gigantes da Internet, como a Google, a Microsoft, a Amazon ou a Apple.”

Monopólios, ou “ecossistemas”, como lhes chama Pedro Brinca, especialista em economia, que parecem saber tudo sobre nós, ao jeito do “Grande Irmão” eternizado por George Orwell em 1984. Quem nunca recebeu um email da Google a dar conta de todos os locais onde estivemos no último mês? Quem nunca recebeu uma sugestão de pedido de amizade no Facebook de alguém com quem tinha acabado de falar? Ou quem é que se prepara para ser mãe e não vê de repente todas as plataformas inundadas de publicidade a artigos para bebé? Eis alguns dos nós que se atam nesta nossa existência 2.0, onde tudo parece escrutinado ao segundo. E é. Culpa, em parte, dos famosos algoritmos, que de forma simplista podem ser definidos como uma sequência de instruções que permite encontrar a solução para um problema num número finito de passos.

Culpa, também, destes monopólios que se foram agigantando quase sem controlo. Pedro Brinca deslinda a questão. “Isto é um fenómeno sobejamente conhecido, que se relaciona com o efeito de rede. Isto é: uma rede é tão mais valiosa quanto mais utilizadores tiver. Daí que, tipicamente, quando há muitas plataformas a competir por utilizadores num dado segmento, a tendência seja para que no longo prazo se forme uma que domine o mercado. E as que entram primeiro no mercado têm uma vantagem brutal, porque havendo uma rede de utilizadores instalada torna-se mais difícil que novos protagonistas possam entrar na competição.”

O professor de Macroeconomia aborda ainda a problemática dos algoritmos. “A grande questão é que tradicionalmente as pessoas sempre foram expostas ao contraditório. Agora, como os algoritmos estão formatados para maximizar o número de cliques, as pessoas são expostas de forma cada vez mais forte aos seus próprios gostos. Se eu gosto do Benfica, só vou ver o ângulo do Benfica. Isto leva a uma polarização de opiniões e a um aumento do conflito social, podendo-se mesmo gerar bolsas de alienação que se transformam em bolhas. Criam-se submundos na Internet onde se repetem este tipo de opiniões e onde as pessoas veem as suas opiniões confirmadas e reforçadas. Os movimentos negacionistas são um bom exemplo disso.”

Regulação urgente

E, afinal, qual é a solução? Regular, regular, regular. Como? Ainda ninguém sabe exatamente. Até porque, como realça José Tribolet, estão em causa realidades novas, com as quais ainda estamos a aprender a lidar. “São as dores de crescimento normais nestas coisas. Vamos aprendendo na prática com as consequências do que vamos fazendo.” O antigo docente do Instituto Superior Técnico indica, no entanto, alguns pontos-chave nesta equação. “Uma coisa muito importante que realça destas audições da denunciante [Frances Haugen] é que tem de haver transparência por parte das entidades que detêm e controlam estas redes. Têm de ser auditadas nas suas políticas, tal como são nas contas. Os algoritmos são muito complicados de controlar, mas é possível observar os efeitos destes. É preciso haver sensores que recolham dados que possam ser auditados por entidades independentes.” Tribolet advoga ainda a importância de assegurar a capacidade de interoperabilidade entre redes. “Se eu sou da MEO, consigo falar com quem é da Vodafone. O que defendo é que, se estou no Facebook e faço uma publicação, essa publicação deve poder ser recebida por contactos que estão noutras redes. Isso abre um espaço de competição saudável.”

Também Luís António Santos é apologista de medidas que aumentem a transparência, obrigando, por exemplo, estes gigantes a disponibilizar indicadores sobre todos os dados de tráfego e a forma como gerem os algoritmos em países diferentes. O investigador na área das redes sociais realça ainda a importância de “criar mecanismos que tornem estes gigantes fiscalmente mais responsáveis”. Já Paulo Rossas, Chief Innovation Officer da Lisbon Digital School, junta à questão da regulação um outro pilar, a seu ver fundamental: a formação e consequente promoção da literacia digital. “Se tivermos formação para distinguir o que são fake news do que não são, o facto de existirem fake news torna-se quase irrelevante. O problema é que a maioria das pessoas não as sabe identificar. O que eu acho é que da mesma maneira que é preciso uma carta de condução para conduzir, devia ser obrigatório ter uma espécie de certificado de literacia digital para andar nas redes.” Até porque, volta a realçar Paulo, o futuro não passa por um divórcio do mundo virtual. Pelo contrário. “Vamos ter o nosso próprio mundo lá, vamos viver lá, ter a nossa personagem digital, comprar roupas digitais para a nossa própria personagem, fazer o nosso próprio dinheiro no mundo digital. Não digo que isto vá acontecer nos próximos dez anos, mas esta é a revolução digital que nos espera. Este é o caminho.”

O que aconteceu

João Vilela, professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, especialista em segurança e privacidade, ajuda-nos a perceber o que pode estar em causa quando uma rede desta envergadura falha. “Uma hipótese é os sistemas onde os dados estão armazenados não terem capacidade para suportar uma carga anormalmente elevada. Outra é a possibilidade de haver problemas nas infraestruturas ou nas configurações.” Até porque em causa estão infraestruturas incrivelmente complexas. “Estas redes assentam num grande número de computadores ou servidores para que seja possível responder de forma rápida aos pedidos de utilizadores. Mas, se a proximidade física ajuda a que haja maior velocidade, também levanta desafios complexos de gestão de infraestruturas. Em particular, se houver alterações às configurações dos equipamentos que não sejam feitas de forma adequada, pode haver falhas no funcionamento dos mesmos.” A avaliar pela justificação oficial da empresa, o “apagão” terá resultado de uma destas situações. Um erro altamente incomum, defende o também investigador do INESC TEC, até porque, regra geral, estas configurações são antes utilizadas em sistemas de teste. Ainda assim “plausível”, sentencia. De notar que uma terceira hipótese seria um problema desencadeado por um ataque externo, mas esta opção foi liminarmente descartada pela empresa de Zuckerberg.