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Portugueses de coração à conquista do ouro nos Jogos Olímpicos

O triplista Pedro Pichardo que se refugiou em Portugal, fugido de Cuba, é agora uma das grandes esperanças olímpicas do nosso país (Foto: Gustavo Bom/Global Imagens)

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Chegam de todos os cantos do Mundo, da Europa, Ásia, África, América. E vão aos Jogos Olímpicos de quinas ao peito e orgulho estampado no rosto. Os atletas naturalizados vieram correr atrás do sonho neste pedaço de terra à beira-mar plantado e têm conquistado cada vez mais pódios para Portugal, até em modalidades em que o país não tinha grande tradição. São 16 os que conseguiram um passaporte para Tóquio e muitos são sérios candidatos a medalhas.

Estava na adolescência, com um pé na idade adulta, quando cortou o cabelo curto. Não foi rebeldia. No treino de judo, apareceu com um coque. Bárbara Timo não disse a ninguém, mesmo quando as amigas a provocaram com o óbvio, “mas claro que estava a imitar a Telma”. Ainda ela morava no Rio de Janeiro, onde nasceu e cresceu, e já a judoca Telma Monteiro, que nos deu o bronze no Rio2016, a levava a sonhar alto. “A forma como é tática, como faz os golpes, a vontade dela, sempre a admirei.”

Julho de 2021, rabo de cavalo, camisola de Portugal vestida, o sorriso capaz de encher uma sala. Bárbara leva as mãos à cara, finta a excitação, é mais a histeria do que a ansiedade. Tóquio é o destino, os primeiros Jogos Olímpicos. Aos 30 anos, o sonho a ficar palpável. A judoca carregou as malas de uma vida, cruzou o Atlântico, agora treina ao lado do ídolo e não luta só pelas cores do mesmo clube, o Benfica, mas da mesma pátria. É uma dos 16 atletas naturalizados portugueses que vão levar a bandeira verde e vermelha às costas até ao Japão. Vice-campeã do Mundo em 2019 por Portugal, 14.ª no ranking mundial. Nos Europeus de Judo, em abril, Lisboa, ganhou o bronze, mesmo depois de uma pandemia e duas lesões: foi operada ao cotovelo esquerdo em agosto de 2019, ao direito em fevereiro. Dois embates em poucos meses não a travaram.

Mas o caminho até aqui não se conta em meia dúzia de linhas. Foi o padrasto quem a levou a um ginásio na cidade do Cristo Redentor para experimentar judo. Tinha oito anos. A mãe não achou muita graça. “Apaixonei-me logo no primeiro dia e já lá vão 22 anos”, comenta. Em catraia, cresceu rápido, era alta, das que ficam na última fila da turma para as fotografias. Tinha vergonha disso, mas foi o que a levou aos nove anos a lutar contra rapazes, num torneio que venceu. “Senti-me incrível. Ganhei a todos, vi o quanto era capaz.” Parou de crescer nos 1,68 metros, pesa 70 quilogramas (kg). Agora, só cresce na força.

Chegou à seleção principal do Brasil aos 22 anos. Seis anos a defender as cores do país que a viu nascer. Para aí chegar, muito contou o momento de viragem, aos 16, quando se agarrou ao judo com unhas e dentes. Os olhos abrilhantam. Perdeu a mãe para um cancro, depois de três anos de luta, quimioterapia, cirurgias. Com o pai não tem contacto, a irmã mais velha vestiu as saias de mãe. “Foi muito duro, numa fase da vida em que temos de tomar decisões. Chegou a hora em que o judo passou a ser por sobrevivência. Decidi que era a minha única saída, e ajudou-me muito. Criou valores em mim, permitiu-me ganhar uma bolsa para a faculdade.” Tem um diploma de Marketing, mora no fundo da gaveta. Já está a fazer o curso de treinadora, para quando o futuro e a idade lhe tirarem o palco dos ringues. É esse, afinal, o plano B.

Um plano que se desenhou já em Portugal, quando veio, com a mala cheia de dúvidas e receios. Era 2018, faltavam dois anos para os Jogos Olímpicos – adiados devido à pandemia -, cruzou-se com Telma Monteiro num estágio e ficou no ar a ideia de vir a Portugal de férias. Daí até começar a pensar vir competir, com Tóquio no radar dos sonhos, foi um passo. “Em Portugal, não havia ninguém na categoria sénior -70 kg…” Veio para o Benfica, Telma abriu-lhe caminho. Não veio só pelo judo, mas pela qualidade de vida. “Era muito além do judo. Quando cá cheguei, ainda demorei a perder o medo, era estranho mexer no telemóvel na rua, ir dar um mergulho ao mar e deixar a bolsa na areia. Como assim?”, atira ela a rir sobre o abismo de diferenças entre Brasil e Portugal. Não veio testar a sorte. Era terceiro sargento na Marinha brasileira, fazia parte da seleção, tinha a vida estabelecida. “Não dava para deixar tudo e vir cá ver o que ia dar, tinha de dar certo.” Muitas noites mal dormidas, muita ansiedade. Despistou os medos, naturalizou-se, conquistou medalhas para Portugal. No ano passado, a pandemia deu-lhe tempo, comprou um apartamento em Lisboa.

Bárbara Timo estava na seleção do Brasil quando arriscou atravessar o Atlântico em 2018 e tornar-se portuguesa
(Foto: Fernando Fontes/Global Imagens)

Já está no Japão, embarcou dia 15, os últimos treinos foram duros. Vivia com dores, sempre a querer tocar o céu, passar o limite. Tem o samba no sotaque, pontualidade britânica, e no coração já se sente portuguesa. Só o facto de haver Jogos Olímpicos, depois do vai-não-vai da covid, já a faz feliz. “Vou ter a oportunidade de viver isto. E sonho em grande, com uma final em Tóquio. Quando digo isto, dá-me um frio na barriga, é algo grandioso, mas sei que é possível.” Talvez o facto de já ter sido vice-campeã mundial na capital nipónica seja bom prenúncio.

“Os atletas naturalizados vieram acrescentar qualidade”

A poucos dias do arranque, na sexta-feira, do maior espetáculo desportivo do Mundo, os nervos saltam à vista. José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal, não consegue disfarçar, sabe que será sui generis. Portugal leva 92 atletas, de 17 modalidades, e a maior comitiva feminina de sempre. Como diz Marcelo Rebelo de Sousa, “uma revolução”. Mas o contexto será duro, as rotinas, os treino, acompanhamento dos atletas, os testes diários para afugentar o vírus malfeitor que já fez adiar o evento um ano. E, desta vez, não haverá público. A fazer fé nos indicadores de opinião, a maioria dos japoneses não queria que os Jogos se realizassem. “Vamos para um país que não nos quer lá, uma situação completamente distinta, o inverso daquilo a que estamos habituados”, sublinha Constantino. Na comitiva lusa, estão atletas que têm conquistado as mais altas posições lá fora. Nem sempre as medalhas nas competições internacionais se traduzem em conquistas nos Jogos. Mas a sabedoria popular diz que a esperança é a última a morrer.

Certo é que os naturalizados têm ajudado a trazer cada vez mais pódios para este pedaço de terra à beira-mar plantado, até em modalidades em que Portugal tinha pouca tradição. Numa época em que os migrantes, o racismo, as minorias enchem manchetes e a ordem do dia, o presidente do Comité Olímpico fica “satisfeito, sobretudo quando se constituem como bons exemplos e boas referências”. No Rio2016, Portugal levou 18 atletas naturalizados. Para o Japão, vão 16, nascidos em Cuba, Brasil, São Tomé e Príncipe, Congo, Camarões, Costa do Marfim, Geórgia, Ucrânia, China ou Cabo Verde. Do atletismo ao ténis de mesa, judo, andebol, natação, destacam-se em tantas modalidades. Cerca de 40% vieram pequenos para Portugal e começaram cá a formação desportiva. Como Nelson Évora, que entrou nas contas para Tóqui já na reta final e será porta-estandarte a par de Telma Monteiro.

Mas mais de metade já competiam nos seus países de origem, representavam as seleções do berço quando escolheram mudar-se e defender a bandeira portuguesa. Por opção, porque cá encontraram terreno fértil para crescerem, de quinas ao peito. “Os atletas naturalizados vieram acrescentar qualidade. No caso do andebol, isso é evidente, no atletismo também. E estes exemplos ajudam muito. Porque conquistam fatores de integração na comunidade e, de algum modo, muitos reveem-se neles”, defende José Manuel Constantino. Provam que é possível, e as últimas décadas têm sido de grandes feitos nos Jogos Olímpicos à boleia de naturalizados. Como foi a prata de Francis Obikwelu, nascido na Nigéria, nos Jogos de Atenas, em 2004, ou o ouro de Nelson Évora, nascido na Costa do Marfim, nos Jogos de Pequim, em 2008.

Não é preciso recuar assim tanto, na Guerra Fria, os Jogos Olímpicos já eram forma de afirmação política das nações. Nesse aspeto, pouco mudou desde que o muro de Berlim caiu. Não há fenómeno desportivo mais importante. E o presidente da República fez questão de lembrar isso mesmo, na despedida dos desportistas. “Vós sois os melhores dos nossos embaixadores. Temos uma magnífica diplomacia no Mundo, mas não há dúvida de que os Jogos Olímpicos são um momento especial.” E estes, diz Marcelo, até são mais do que isso, são “uma afirmação de esperança no futuro, porque há mais vida além da pandemia”.

Quintana no coração e quinas ao peito

Naqueles últimos minutos da final do torneio pré-olímpico, em Montpellier, a seleção nacional de andebol estava a perder e acabou a vencer França, qual milagre, com um golo no último segundo. Fez-se história num jogo de loucos, Portugal nunca tinha sido apurado para os Jogos Olímpicos em andebol. É uma das três novas modalidades que a equipa das quinas vai levar a Tóquio, além do skate e do surf. E Daymaro Salina só tem pena que a vitória lhe tenha sabido tão amarga. O amigo e colega de equipa no F. C. Porto e na seleção, Alfredo Quintana, tinha acabado de falecer e o pivô que trocou Cuba por Portugal quase nem se atreveu a mostrar a alegria e o orgulho. Está em casa, na Invicta, barba por fazer, camisola dos dragões vestida, é de parcas palavras. O português misturado com castelhano caribenho, numa miscelânea em que se dá bem. “Sou um bocado preguiçoso, já levo dez anos cá e ainda não falo muito bem.”

Contagiado pelo amigo Quintana, Daymaro Salina largou Cuba e ajudou a levar, pela primeira vez, o andebol português aos Jogos Olímpicos
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Daymaro faz parte da que é talvez a melhor geração de andebolistas portugueses, que conta com outros cubanos naturalizados. O 10.º lugar no Mundial do Egito, no início do ano, a melhor classificação de sempre de Portugal, e o 6.º no Europeu 2020, o melhor feito português na história da prova, subscrevem a tese. Daymaro não se enche de vaidades, longe disso. “Vim para cá para jogar, fazer o máximo que posso e fico feliz por saber que está um grãozinho de areia meu nestas vitórias do andebol português.” Aos 33 anos, faz “rewind” na vida para contar como cá veio parar. Em Cuba, testou muitas modalidades, o pai queria que praticasse desporto. “O andebol não é muito conhecido lá, nem sabia o que era quando fui experimentar.” Tinha 15 anos, era “muito grande” e “as coisas começaram a correr bem”, dava nas vistas por ser muito branco “num país latino, em que todos são mais morenos”. Estava no lugar certo, soube no imediato.

Ainda jogou, ao lado do também luso-cubano Quintana, na seleção de Cuba, mas em setembro de 2011 celebrou os 24 anos dentro do avião num voo para Portugal, contagiado pelo amigo que já cá estava desde março. A primeira viagem que fez sozinho, ainda se perdeu em Madrid, os pontos cardeais acabaram a alinhar-se. As saudades custaram-lhe, só que o Porto abraçou-o com tanto amor que agora é “apaixonado”. Com a namorada portuguesa, tem dois filhos gémeos, de seis anos. Só em 2015 é que viria a naturalizar-se, o selecionador nacional à época desafiou-o. “Porque não? Portugal deu-me tudo, não é verdade?”

Pelo caminho, um Dragão de Ouro de Alta Competição em 2019, uma pandemia fundida com uma lesão e ainda se fez bicampeão nacional pelo F. C. Porto. A alegria da vitória portuguesa no jogo de apuramento para Tóquio guarda-a, espartilhada num carrossel de emoções. “Eram equipas muito fortes. Foi um milagre, não é?”, pergunta ele. Só que Quintana não estava lá, “e devia estar, não há homenagens que compensem”. Não há, mas chegar aos Jogos Olímpicos pode bem ser a melhor de todas. O selecionador, Paulo Jorge Pereira, diz que o objetivo é lutar por medalhas. Daymaro não põe a fasquia tão alta. “Primeiro, passar a fase de grupos. A partir daí, é tentar ir o mais longe possível. Uma medalha seria o melhor do Mundo.” Sobretudo sendo o andebol a estreia de Portugal em competição oficial nas modalidades coletivas de pavilhão, embora a equipa de hóquei em patins tenha participado num torneio de demonstração em Barcelona1992 .

O Mundo que cabe no atletismo

Os feitos recentes de Auriol Dongmo, nascida nos Camarões, e de Pedro Pichardo, de Cuba, no atletismo puseram o país a olhar para os desportistas naturalizados, quando os dois, juntamente com Patrícia Mamona, trouxeram para casa o ouro nos Europeus de Atletismo em Pista Coberta, na Polónia, este ano. E atingiram o estrelato. Auriol na modalidade do lançamento do peso, Pichardo no triplo salto. A poucos dias dos Olímpicos, o luso-cubano ainda deu a Portugal a melhor marca mundial do ano, com um salto de 17,92 metros. Já apontou baterias para os 18 metros em Tóquio, quer agradecer a Portugal o acolhimento com uma medalha.

O triplista é, aliás, uma das grandes esperanças olímpicas do país. A história já é sabida. Chegou a Portugal em 2017, aos 23 anos, depois de ter desertado do estágio da seleção cubana, na Alemanha, em busca da estabilidade que o seu país não lhe dava. Ficou cá a viver como refugiado, dias depois assinava contrato com o Benfica e no final desse ano naturalizava-se português. E tem somado conquistas.

O motivo que trouxe Auriol Dongmo para Portugal foi bem diferente, foi a fé em Nossa Senhora de Fátima, uma devoção quase inexplicável desta “força da Natureza” – palavras do seu treinador – que estreou Portugal nas medalhas do lançamento do peso. Já tinha sido campeã de África, ser também da Europa teve outro sabor. Aterrou em Portugal há quatro anos, tinha propostas para rumar a França, mas, mesmo sendo avessa a redes sociais, criou um perfil no Facebook para tentar a sorte. Enviou mensagem ao Sporting a ver se precisavam de uma lançadora de peso. Desde então, naturalizou-se e foi mãe em terras lusas. Bateu por mais do que uma vez o recorde nacional, é caso sério para medalhas em Tóquio. Talvez o terço que anda sempre consigo dê sorte.

A devota de Fátima Auriol Dongmo, natural dos Camarões, estreou Portugal nas medalhas do lançamento do peso
(Foto: Nuno Brites/Global Imagens)

Apesar de tudo e de tanto, as naturalizações de atletas nem sempre foram pacíficas, com muitas vozes a erguerem-se contra a rapidez de alguns processos. Polémicas à parte, o presidente do Comité Olímpico simplifica: “Passa-se com os desportistas aquilo que se passa com cidadãos em geral, procuram no nosso país aquilo que o país de origem não lhes consegue garantir. Migram para concretizarem os seus sonhos”.

Nos Jogos aos 38 anos

Como Lorene Bazolo, a mulher que Portugal terá a correr os 100 e 200 metros na capital nipónica, depois de já ter participado nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, pelo Congo. Os 38 anos podem enganar, está na sua melhor forma. Há poucas semanas, em Castellón, bateu o próprio recorde nacional nos 100 metros, ao conseguir a marca de 11,15 segundos. E correu os 200 metros em 22,93 segundos. Apurou-se. A bandeira portuguesa pendurada sobre as costas, o cabelo carregado de tranças estreitas, lábios carnudos e uma estrutura óssea a marcar na perfeição as linhas do rosto.

Desfiar o novelo da sua história não é coisa pouca. O pai, do Congo, era diretor de uma universidade de desporto e a mãe, de Benin, trabalhava no Ministério do Desporto do Congo. Não admira a vocação. Lorene praticou judo desde os cinco anos. Só lhe faltava um ano para o cinturão preto quando a mãe faleceu, um duro golpe aos 13 anos. Largou o desporto, as tias com quem passou a morar não concordavam. “Durante oito, nove anos, não pratiquei modalidade nenhuma”, diz desgostosa. Só quando entrou na universidade, ao encontrar um antigo professor de Educação Física, se convenceu a regressar. A idade, 25 anos, achava ela, já não lhe permitiria chegar ao sonho longínquo dos Jogos Olímpicos. Enganou-se, tanto. Virou-se para o atletismo e num ano fez-se campeã nacional, nos 100 e 200 metros. Foi porta-estandarte do Congo, nos Jogos de Londres. Era a melhor atleta feminina do país.

“Queria tanto chegar longe e quando acabei os estudos, em 2011, não encontrava trabalho na área da contabilidade, decidi focar-me só no atletismo.” Daí até procurar um país que lhe permitia abrir os horizontes foi um salto. Tentou França e, mal lá chegou, recebeu o convite de um treinador para vir para Portugal. Não falava português, só francês, as dúvidas a matutar na cabeça não foram maiores do que a vontade e arriscou. Chegou em setembro de 2013, tinha já 29 anos. Deu os primeiros passos no clube JOMA e um ano depois já estava no Sporting. “Não conhecia o país, não falava a língua. Só queria melhorar, sabia que tinha talento. Nunca pensei na naturalização.” Mas em 2016, aos 33 anos, bateu o recorde nacional e tornou-se portuguesa, no coração e no papel. “Gosto de viver cá, da forma como me receberam, como me ajudaram, encontrei aqui as condições que sempre procurei e que nunca tive no meu país. Só quero treinar, competir e representar o país que me aceitou de braços abertos. É tão simples como isso.”

Já fala português – e bem -, aprendeu sozinha, depois de comprar um dicionário de Francês-Português. “Foi muito difícil, comecei a praticar em casa e nos treinos dizia algumas palavras e corrigiam-me.” Há muito que esperava e sonhava com Tóquio2020. “Continuo a bater muitos recordes pessoais e isso mostra que a idade não me bloqueia. Que tenho mais para dar. Sabia que conseguia, mas o desporto não é preto e branco, tornei-me paciente e chegar aqui é maravilhoso, gratificante.” A espera acabou. Estes são os terceiros Jogos de Lorene, depois de Londres2012 pelo Congo e do Rio2016 por Portugal. Não vai cismada em conseguir uma marca. “Só quero aproveitar o momento. Talvez consiga chegar à meia-final, ou mais longe, mas não quero focar-me nisso.”

A prova é ingrata, esgota em poucos segundos anos de trabalho, agarra-se à fé. Acredita em Deus, que foi Ele quem planeou tudo isto para si. Faltam-lhe duas voltas ao sol para os 40, quer estudar Desporto, mal regresse de Tóquio, já pôs isso na cabeça. “Olho para o meu percurso e percebo que nada é impossível.”

Lorene Bazolo foi aos Olímpicos de Londres pelo Congo. Mudou-se para Portugal e vai correr os 100 metros em Tóquio de quinas ao peito
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Curiosamente, também nos 100 metros e também natural do Congo, um jovem refugiado de 22 anos que vive em Lisboa vai competir pela Equipa Olímpica de Refugiados de Tóquio. São 29 os atletas refugiados que estarão no Japão, em 12 modalidades. Dorian Keletela, que nasceu, tal e qual Lorene, na capital e maior cidade da República do Congo é um deles. Ficou órfão na adolescência e fugiu para Portugal aos 17 anos.

Nessa altura, já contava dois anos no atletismo. Por cá, é orientado por Francis Obikwelu, dono do recorde europeu de 100 metros. Dorian e todos os outros refugiados que vão aos Jogos – é a segunda vez que há uma equipa de refugiados a competir nas Olimpíadas -, de acordo com o alto comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, “representam as esperanças e aspirações de mais de 80 milhões de pessoas deslocadas dos seus países pela guerra e perseguição”, são “um lembrete de que todos merecem a oportunidade de ter sucesso na vida”.

Da China para a ilha da Madeira

Entre os atletas que nasceram noutras latitudes e que escolheram Portugal como pátria – e há tantos exemplos, basta olhar para o futebol ou para o hóquei em patins que na década de 60 já se enchiam de jogadores vindos do continente africano, desde o mítico Eusébio a Mário Coluna -, há muito que o fenómeno deixou de se resumir às antigas colónias. Há desportistas que chegaram de muitos outros cantos do globo. Nas costas da camisola preta, em letras douradas, lê-se “Portugal”. Fu Yu tem o cabelo escuro apanhado num puxo e uma bandolete verde a segurar os fios mais teimosos. Está em estágio, no Centro de Alto Rendimento de Vila Nova de Gaia, rodeada, em jeito labiríntico, por dezenas de mesas. Aquece os braços e as pernas definidas, de pele lívida. Os olhos rasgados deixam poucas dúvidas, nasceu na China e aos sete anos já andava de raquete na mão. É uma dos 92 atletas portugueses a caminho de Tóquio.

Quando chegou à Madeira em 2001 vinda da China, a mesa-tenista Fu Yu estava longe de pensar que viria a naturalizar-se portuguesa
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

“Quando era pequenina, era muito fraca, qualquer coisa ficava com gripe, febre. E a minha mãe achou que era bom praticar algum desporto para ficar mais forte”, conta ela num português que guarda resquícios de mandarim e ares de pronúncia madeirense. Na China, o ténis de mesa é rei e aos 13 anos Fu Yu já competia. Acabaria por vir parar a uma ilha, na Europa, em pleno Atlântico já a caminho das Américas, depois de ter jogado um ano em Espanha em 1997.

Estávamos em 2001, tinha 23 anos quando aterrou na Madeira, a milhas de pensar que por cá ficaria até aos dias de hoje, com 42 e uma filha de nove. “Não vinha com a ideia de ficar, nunca pensei nisso. Mas as pessoas são muito simpáticas e também conheci cá o meu marido.” O marido também joga ténis de mesa, foi assim que se conheceram. Deram o nó em 2011, dois anos antes de Fu Yu se naturalizar. Foi a resposta a um desafio da Federação, o sonho dos Jogos na mira. “Acho que já me sinto portuguesa, mais madeirense até.”

Começa o treino, afasta-se da mesa, ganha fôlego, põe a bola a girar na mesa, a uma velocidade de perder de vista. Fu Yu acumula três medalhas em Europeus, trouxe o ouro em 2019, de Minsk. Bateu uma chinesa naturalizada alemã a quem só tinha vencido uma vez. Ainda se espanta. “Não estava nada à espera. Mesmo antes da final, nunca pensei que conseguisse vencê-la.” Tem pena de não haver mais raparigas a treinar ténis de mesa em Portugal, “não é como na China, que tem muita, muita gente”.

Talvez a paixão seja genética. A mãe, depois dos 70 anos, ainda treina, num clube a cinco minutos de casa, em São Roque, no Funchal. Desde o início da pandemia que a mãe está a morar com ela, há de voltar à China quando tudo passar. Fu Yu ia lá amiúde, pelo menos no verão, visitar a família. A covid-19 até nisso lhe trocou as voltas. Parou de treinar no confinamento, o regresso foi mais duro do que imaginava. “Senti uma diferença grande. No corpo, ficava logo cansada, e, na cabeça, parecia que não me conseguia concentrar como antes.” Está de volta à forma, embarcou ontem para Tóquio. São os segundos Jogos da carreira. Esteve no Rio2016. “Vou orgulhosa a representar o país. Agradeço muito a Portugal que me deu a oportunidade de vestir a camisola.”

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Ainda não pensa na retirada, nem tem plano B. Há de jogar até que o corpo a deixe. É uma das mais velhas mesa-tenistas do Mundo a jogar profissionalmente. Pelo menos pelas suas contas. “Só há uma chinesa mais velha do que eu, que joga pelo Luxemburgo.”

A festa dos Jogos Olímpicos de Tóquio arranca na sexta-feira e só acaba a 8 de agosto. Até lá, é fazer figas por todos os atletas que carregam o vermelho e verde no coração e que levam Portugal mais longe.

Portugal nos Jogos Olímpicos em números

#UnidosPorPortugal é o lema do Comité Olímpico de Portugal

DATAS: 23 de julho a 8 de agosto

92 atletas vão representar Portugal nos Jogos Olímpicos de Tóquio2020 (adiados para 2021 devido à pandemia), igualando a comitiva do Rio2016

16 naturalizados, de dez países: Brasil, Cabo-Verde, Camarões, China, Congo, Costa do Marfim, Cuba, Geórgia, São Tomé e Príncipe e Ucrânia

36 mulheres: a maior comitiva feminina de sempre, batendo em quatro o número de Londres 2012

17 modalidades: Andebol (14 atletas); Atletismo (20); Canoagem (8); Ciclismo (4); Equestre (4); Ginástica (2); Judo (8); Natação (9); Remo (2); Skate (1); Surf (3); Taekwondo (1); Ténis (2); Ténis de Mesa (5); Tiro com Armas de Caça (1); Triatlo (3); Vela (5)

3 estreias portuguesas: Andebol, Skate e Surf

2 porta-estandartes: Numa edição que visa promover a igualdade de género, o saltador e campeão olímpico Nelson Évora (Pequim2008) e a judoca e medalha de bronze Telma Monteiro (Rio2016) vão encabeçar o desfile da comitiva lusa