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Porque somos tão fáceis de enganar?

A história de Misha DeFonseca, uma judia que aos sete anos caminhou centenas de quilómetros na floresta, acompanhada de lobos, em busca dos pais, deportados para um campo de concentração na II Guerra Mundial, comoveu o Mundo. Dez anos, um livro e um filme mais tarde, descobriu-se que, afinal, ela era a belga Monique de Wael e nunca saíra de casa dos avós (Foto: DR)

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O Mundo está cheio de trapaceiros - alguns iludem apenas meia dúzia de pessoas, outros burlam milhões. Muitas das histórias falsas que nos defraudam roçam o incrível. No entanto, nós acreditamos nelas. Porquê?

Aos sete anos, durante a II Guerra Mundial, a judia Misha DeFonseca empreendeu centenas de quilómetros pela floresta, sozinha, durante três anos, acompanhada de lobos, para tentar encontrar os seus pais que foram deportados para um campo de concentração. Relatou a sua incrível história num livro, foi oradora em conferências, viu o livro adaptado a filme, fez uma tour de promoção pela Europa e deu inúmeras entrevistas. Milhões de pessoas leram o seu livro, viram o filme e assistiram às conferências, emocionadas com a experiência inacreditável. Foram precisos dez anos para se descobrir que era falsa: Misha DeFonseca chamava-se, afinal, Monique de Wael. Não era judia e nunca saiu da casa dos avós, na Bélgica, durante a guerra.

A mentira faz parte de nós. Estima-se que digamos dezenas por dia, mas quase todas são as chamadas “mentiras brancas” – inofensivas e circunstanciais – como responder “está tudo bem”, quando não está, ou comentar “esse corte de cabelo fica-te bem”, quando achamos que não fica. São mentiras condicionadas pelos nossos filtros sociais, essenciais à vida em sociedade. Fora desse contexto, o que nos leva habitualmente à mentira, defende Pamela Meyer, autora do célebre livro “Liespotting -proven techniques to detect deception” (Apanhar mentiras – técnicas comprovadas para detetar enganos, em tradução livre) e especialista em fraudes, é aquilo de que estamos sedentos, aquilo que sentimos que nos falta. “Mentir é uma tentativa de colmatar essa lacuna, para ligar os nossos desejos e as nossas fantasias acerca de quem desejamos ser com o que realmente somos. E estamos dispostos a preencher essas lacunas das nossas vidas com mentiras”, diz na sua Ted Talk “Como detetar um mentiroso”.

Esta é a leitura que permite um olhar diferente sobre a história de Monique de Wael e sua falsa caminhada pela floresta, com os lobos, à procura dos pais judeus. Ela era, afinal, filha de um membro da resistência belga que, quando foi preso, forneceu os nomes dos outros membros da resistência aos nazis, para que lhe fosse poupada a vida. Por isso, em criança, ela ficou conhecida como “a filha do traidor”, como revela o recente documentário da Netflix sobre o caso, “Misha e os lobos”.

Quando confrontada com as provas da sua mentira, ela fez uma declaração: “Chamo-me Monique De Wael, mas desde os quatro anos que o quero esquecer. Os meus pais foram presos quando eu tinha quatro anos. […] Este livro, esta história, era a minha. Ela não era a verdadeira realidade, mas era a minha realidade, a minha maneira de sobreviver”. Monique não queria ser filha de um traidor, então contou uma história. Uma história não sobre quem ela era, mas sobre quem gostaria de ser. Isso torna mais claros os motivos da mentira, mas diz pouco sobre outra questão central: como é que milhões acreditaram em algo tão inverosímil?

Programados para acreditar

Há muitos motivos para mentir, mas essencialmente um para acreditar: é tão fácil sermos enganados porque o nosso cérebro evoluiu biologicamente para acreditar nos outros. “A nossa natureza social, a nossa capacidade de interagir, de confiar e cooperar com o outro é uma das nossas características mais distintivas enquanto seres humanos”, refere Ana Seara Cardoso, investigadora do Laboratório de Neurociência Psicológica, do Centro de Investigação em Psicologia (CIPsi), da Universidade do Minho. “E isso está refletido na arquitetura do nosso cérebro, onde se encontra uma rede extensa de regiões que se dedica ao processamento e integração de informação social: informação sobre o aspeto, o comportamento, as emoções e as intenções dos outros.”

Quando alguém diz uma mentira – seja qual for o seu objetivo – tem do seu lado esta tendência natural do ser humano para confiar nos outros. Um dos mecanismos mais relevantes neste processo é a empatia, a capacidade de sentir o que julgamos que o outro está a sentir. “Identificarmos os estados emocionais dos outros, como alegria, tristeza, medo ou raiva, é crucial para conseguirmos inferir os seus estados mentais e, consequentemente, para sabermos se podemos ou não confiar neles naquele momento”, sublinha a investigadora.

A maioria de nós, exceção feita para indivíduos com traços elevados de psicopatia, apresenta uma resposta neural muito intensa nas regiões da amígdala, ínsula anterior ou o córtex cingulado quando vê alguém triste, com medo ou a magoar-se. E esta capacidade de compreender o que o outro está a sentir “é fundamental para um funcionamento social adequado”.

Eis um exemplo: o Ben tem dois anos e é feliz. Gosta de brincar com o pai. Mas, para o pai, nos últimos tempos, tem sido difícil brincar com ele e acompanhar a sua alegria porque sabe algo que o Ben não sabe: o filho tem um tumor cerebral incurável e vai estar morto em seis meses. Esta história – contada num vídeo de animação e testada de várias formas pelo grupo de investigação de Paul Zak, um neuroeconomista americano – mostra que a maioria das pessoas que a ouve sofre uma alteração neuroquímica no seu cérebro: sobem os níveis de cortisol (que demonstram atenção, foco e stress) e também de ocitocina (indiciador de empatia).

Quanto mais elevados os valores destas hormonas nos indivíduos, mais provável é que tenham um comportamento pró-social e cooperativo no fim de verem o vídeo, fazendo uma doação de dinheiro para uma instituição de apoio a crianças com cancro. O nosso cérebro não pergunta em nenhuma altura se Ben e pai existem mesmo. Há cerca de 400 mil casos de cancro infantil por ano e, no entanto, toca-nos mais um único caso, como o do Ben e do seu pai, mesmo sabendo que é inventado. Porquê? Porque gostamos de ouvir histórias e são elas que nos ativam a empatia.

Era uma vez um cérebro que gosta de histórias

Jens Eder, professor de dramaturgia e storytelling na Film University Babelsberg, na Alemanha, diz que “as histórias têm o poder de fazer as crianças dormir e os soldados ir para a guerra”. Contar histórias é uma das mais antigas atividades humanas, uma forma de comunicação e um instrumento privilegiado para transmitir informação.

“Uma mensagem difundida através de uma história tem maior probabilidade de ser entendida, compreendida, memorizada e recordada”, explica Luís Loureiro, docente da Universidade Católica Portuguesa e coordenador da formação avançada em Alta Performance em Técnicas de Comunicação Oral. “O seu destinatário está muito mais recetivo para se deixar envolver nas emoções que ela procura despertar. Em muitos casos, como consequência de todo este processo, o destinatário/recetor age em conformidade: admite a perceção sugerida; molda a sua matriz de escolha; altera o seu comportamento; condiciona a sua conduta social; deixa-se influenciar; reverencia o papel do emissor e ‘corre a comprar’ um produto, um serviço, uma ideologia, uma religião, uma nova tendência alimentar, desportiva ou espiritual.”

O docente realça que, quando somos confrontados com uma narrativa, somos “embalados” ou “emocionados pela história”, enfraquecendo a “capacidade de escrutiná-la rigorosamente, baixando a guarda e cedendo às interpretações que intencionalmente nos propõem”. Como na história de Ben e do pai ou na história de Misha e os lobos. A nossa empatia entra em ação e compadece-se do pai em sofrimento ou da criança sobrevivente do Holocausto. São as emoções – e não os factos – que nos guiam.

“Tudo isto dá a ideia de uma aparente manipulação ostensiva, mas do ponto de vista da comunicação é uma ode à forma de estabelecer relações eficazes e de concretizar plenamente o processo que une emissor e recetor em função da mensagem”, enfatiza Luís Loureiro. Ou seja, do ponto de vista comunicacional, é um sucesso. O especialista lembra que o storytelling, como atividade em si, não é questionável, “como não questionamos que a faca que permite a um chef famoso conceber uma deliciosa iguaria possa ser considerada um instrumento de violência”. Frisa que nos resta acreditar que “o crescente acesso à educação e à cultura possam dotar todos os cidadãos de filtros que lhes permitam identificar atempadamente ‘o conto do vigário’”.

Foram estes filtros – de quem procurou a verdade dos factos, para lá da emoção da história – que permitiram que, cerca de 15 anos depois de contar a mentira pela primeira vez, Misha DeFonseca fosse confrontada com a sua própria identidade.

Burlões famosos da história recente

Enric Marco Batlle

Apresentava-se como sobrevivente do campo de concentração nazi de Flossenburg. Durante três décadas, deu milhares de palestras, presidiu a uma associação de sobreviventes e recebeu o prémio catalão Creu de Sant Jordi, antes de ser desmascarado por um historiador espanhol.

Elizabeth Holmes

Criou a empresa de biotecnologia Theranos para revolucionar o diagnóstico de doenças, usando apenas duas ou três gotas de sangue. Foi capa da “Forbes”, conseguiu investimentos milionários de nomes como Henry Kissinger e Rupert Murdoch, mas os resultados prometedores que apresentava era falsos: estava a utilizar tecnologia de outras empresas, não da sua. Está a ser julgada e enfrenta 12 acusações de fraude, por tentar enganar investidores e clientes, arriscando 20 anos de prisão.

Andrew Wakefield

Publicou, em 1998, um artigo na prestigiada revista “The Lancet” que estabelecia uma relação entre a vacina do sarampo e o autismo. Os resultados do médico eram falsos e, em 2010, foi declarado inapto para o exercício da profissão. A revista retratou-se afirmando que as conclusões do estudo eram falsas.

Tania Head ou Alicia Hea

Contou e divulgou amplamente a sua história de sobrevivência aos ataques de 11 de setembro de 2001, no World Trade Center, em Nova Iorque. Guiou visitas ao Ground Zero, fez discursos em faculdades e em grupos de apoio até que, em 2007, começaram a ser descobertas as inconsistências na sua história, que se acredita agora ser falsa.