Porque culpamos as vítimas?

As explicações para o fenómeno de culpabilização da vítima começam, mas não terminam, nos nossos mecanismos de defesa

Queremos justiça. E quando algo de mau acontece, queremos também culpados. Mas, frequentemente, dirigimos a nossa atenção para a vítima, não para o agressor. A explicação reside num cocktail explosivo de dois ingredientes: os nossos mecanismos de defesa e os nossos preconceitos.

Uma mulher jovem é violada numa discoteca em Gaia e há quem pergunte qual o tamanho da saia que levava vestida. O ator Bruno Candé é assassinado a tiro na rua e surgem testemunhos nas redes sociais que garantem que ele era mal-educado. Uma atleta adolescente é atropelada numa passadeira no Campo Grande, em Lisboa, com o sinal verde para os peões, e escutam-se comentários que sugerem que os ciclistas deviam evitar artérias movimentadas. Estes três casos e respetivas observações, recentes e reais, traduzem a tendência profundamente enraizada de culpar a vítima. Importa perguntar: porque é que, quando alguém é vítima, são tantos aqueles que se focam em tentar descobrir o que terá feito ela de errado?

A chamada Teoria da Crença no Mundo Justo, que nos leva a rejeitar o caos e a arbitrariedade e a procurar justificações para tudo o que nos acontece, ajuda a deslindar este fenómeno. A psicóloga social Isabel Correia, professora do Instituto Universitário de Lisboa e de investigadora do Centro de Investigação e de Intervenção Social do ISCTE-IUL, tem estudado os mecanismos que explicam a legitimação da injustiça e da vitimização – entre os quais a culpabilização da vítima – recorrendo a esta teoria. “Somos confrontados quase diariamente com situações de doença, violência, pobreza, tragédias naturais e acidentes com consequências graves. Estas situações, quer nos afetem a nós, quer afetem outros, levam-nos quase sempre a procurar uma explicação para podermos compreender a causa e orientarmos o nosso comportamento futuro. Um dos aspetos mais importantes consiste em saber se esse acontecimento foi justo ou injusto”, esclarece a investigadora.

Formulada por Melvin J. Lerner, a Teoria da Crença no Mundo Justo alega que os nossos julgamentos sobre estes factos, longe de resultarem de uma análise objetiva e racional, são direcionados para mantermos a perceção tranquilizadora de que o Mundo é, de facto, justo. “Estamos motivados para percecionar que cada pessoa tem o que merece: ‘coisas’ boas acontecem a ‘pessoas boas’, e ‘coisas’ más acontecem a ‘pessoas más’. Perante o sofrimento de vítimas inocentes, esta motivação leva-nos a tentar restabelecer a justiça, ajudando efetivamente as vítimas e/ou punindo os culpados. No entanto, em muitos casos, a ajuda não é eficaz, ou não é possível punir os culpados. Nestas situações, uma maneira de preservar a perceção de que o Mundo é justo é achar que o sofrimento da vítima, afinal, é justo”, sintetiza Isabel Correia.

É por isso que nos empenhamos tanto em descobrir defeitos nas vítimas. Coisas que fizeram e não deviam ter feito, falhas que possam apontar para que, afinal, aquilo que lhes aconteceu tem uma razão de ser. A investigadora lembra, de resto, que são imensas as expressões populares que exprimem este tipo de ideia: “Cada um deita-se na cama que faz”, “Quem não deve não teme”, “Não há fumo sem fogo”, ou “Cá se fazem, cá se pagam”.

Na realidade, é mais sobre nós do que sobre os outros. É uma certa resistência à ideia de que tudo pode acontecer a qualquer um, nós incluídos. O grande objetivo é, afinal, considerarmo-nos a salvo, acreditar que não nos poderia acontecer a nós. “A perceção de acontecimentos objetivamente injustos como justos é um fenómeno funcional: permite a manutenção da invulnerabilidade pessoal a acontecimentos injustos. Só assim é possível viver com tranquilidade e fazer projetos a longo prazo”, prossegue a psicóloga social.

Diabolizar para descredibilizar

As explicações para o fenómeno de culpabilização da vítima começam, mas não terminam, nos nossos mecanismos de defesa. Os nossos vieses cognitivos, relativamente inatos, contam uma parte da história, mas a outra é socialmente construída. A psicóloga social Sofia Neves, professora e investigadora no Instituto Universitário da Maia (ISMAI) e membro integrado do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG – ISCSP/ULisboa), lembra que o fenómeno de culpabilização das vítimas encontra suporte em algumas teorias criminológicas desenvolvidas a partir da década de 1940, nomeadamente as de Von Hentig e Benjamin Mendelsohn, que entendiam que a vitimização era determinada pelos seus atributos físicos, características psicológicas e comportamentos provocatórios das vítimas.

“A apropriação desta conceção diabolizadora das vítimas teve e tem, como consequência, entre outras, a sua descredibilização”, explica a especialista que integra o grupo de trabalho da Violência Doméstica e de Género da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. “Apesar destas teorias terem sido amplamente refutadas, continuam a ser usadas, quer do ponto de vista institucional, quer do ponto de vista social, para desresponsabilizar as pessoas criminosas e penalizar as vítimas”, garante. A título de exemplo, Sofia Neves recorda que nos discursos mediáticos, não raras vezes, sublinham-se sobretudo as características individuais das vítimas. “O foco tende a ser mais o que as vítimas fizeram ou não fizeram para que o crime acontecesse e menos o que as pessoas agressoras fizeram ou não fizeram”, aponta.

Quando a vítima não encaixa no perfil

Predominam também os preconceitos sociais associados às características da vítima ideal. “Há a ideia da vítima como alguém fragilizado, sem recursos, de estatuto socioeconómico baixo e que se apresenta cabisbaixo e choroso.” Quando o perfil não é este, as pessoas tendem a duvidar que se trate de uma vítima. “É o caso de situações de violência doméstica denunciada por figuras públicas: como não encaixam neste perfil, as pessoas não acreditam que elas possam mesmo ter sido vítimas de alguma coisa.”

São também os preconceitos sociais associados às características individuais que fazem com que a culpabilização seja mais evidente em alguns casos. “Os crimes baseados no género, na pertença étnico-social, na orientação sexual, identidade de género e características sexuais são muito suscetíveis ao fenómeno de culpabilização das vítimas. Precisamente porque a representação social que está disponível sobre as vítimas as descredibiliza. Não é por acaso que muitos destes crimes são considerados crimes de ódio.”

Para Sofia Neves, o problema é estrutural e alimenta-se de outros problemas igualmente estruturais, “como o sexismo, a misoginia, o racismo, a xenofobia, a ciganofobia, a homofobia e a transfobia”. Entende, por isso, que só se resolve com um investimento sério em educação. A sensibilização, defende, não chega. “É uma perspetiva ingénua: só sensibilizamos quem já está sensível.”

Protejam-se, mulheres

É exatamente a propósito das campanhas de sensibilização que a socióloga Maria Isabel Dias faz a seguinte pergunta: “Porque é que não se fazem outdoors a dizer aos homens que não podem agredir as mulheres, mas antes, quase sempre, a dizer às mulheres que têm de se proteger?”. Para esta investigadora, que tem estudado sobretudo a violência doméstica e de género, a ideia de que é a vítima que tem de estar atenta para evitar o ataque reflete uma realidade preocupante: “As mulheres são ensinadas, desde muito cedo, a sentirem medo. É quase uma condição da sua socialização: ser-lhes incutido que há coisas que não podem fazer. As representações e discursos coletivos sustentam que, quanto mais for igual ao homem, mais provável será o homem ser violento em relação a ela”.

O fenómeno é especialmente visível no que toca à violência sexual. “Pôs-se a jeito”, “Estava a pedi-las” ou “De que é que estava à espera?” são expressões que continuam a ser ouvidas. Para a socióloga, estas narrativas que encontramos um pouco por todo o lado – das redes sociais aos acórdãos judiciais – mostram a presença da chamada cultura da violação. “Quando uma mulher é violada, seja na opinião pública, seja quando o caso chega à justiça, há de imediato uma narrativa de descredibilização. As primeiras questões com que estas mulheres são confrontadas são: ‘O que trazia vestido?’, ‘O que tinha bebido?’, ‘O que estava a fazer naquele sítio àquela hora?’. Há todo um questionamento que procura atenuantes para o comportamento do agressor”, realça a socióloga.

Esta busca de atenuantes para o comportamento do agressor é uma das muitas caras da responsabilização da vítima e um sintoma de tolerância perante a violação. “Mostra uma cultura que aceita que os desejos dos homens se sobreponham aos das mulheres e que aceita, inclusivamente, que os homens não consigam controlar os seus impulsos sexuais. Isto é uma ideia perigosa porque naturaliza a violência e desculpabiliza os comportamentos agressivos.” Uma ideia perigosa porque faz tanta gente perguntar aquilo que menos importa: o tamanho da saia da mulher.