Peste, guerra, fome e morte, mas calma…

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
De súbito, ou melhor, de forma insidiosa mas inesperada, comecei a ter pena do senhor. No depoimento, ouvindo-lhe a voz quebrada por tantas coisas deste anos que nos caíram em cima, o meu sarcasmo e ironia quebraram. Não estará este homem de fato largo e de gravata, o cabelo branco a caminho de pequeno para grande, a barba vivida, o nariz irrigado por afluentezinhos, a ser vítima de coisas maiores do que ele, do que nós?
Sofreu, está a sofrer, uma espécie de carambola do destino, a ser verdade tudo o que dizia. A sua formação era bacheralato em Gestão Hoteleira e o seu emprego era ser gerente de uma empresa de sucesso ramificada em braços aparentemente inesgotáveis: prestação de serviços e promoção de espectáculos, investimentos culturais, equipamentos nocturnos de diversão, transportes turísticos (de autocarros a tuk-tuks) por terra, navios por mar, cruzeiros fluviais subindo e descendo os rios, adaptação de transportes tradicionais para fins turísticos, hotelaria, restauração, multimédia, publicidade, etc.. De repente (agora posso dizer subitamente), contra este império caiu a acusação do Fisco por enorme fuga aos impostos. Durante vários meses a empresa não entregou o IVA ao Estado. Os valores anteriormente cobrados aos clientes bateram, em 2015 e 2016, a barra dos cem mil euros mensais, ou lá perto. Pagaram qualquer coisa “aos cofres do Estado”, mas longe do que deviam.
Portanto – ao apoderar-se de montantes “sabendo que não eram seus”, era assim que as coisas se mostravam – cá está mais um senhor empreendedor português que foge aos impostos. Então o homem falou e disse que vivia com os dois filhos, em casa arrendada.
– Devo dizer que esta situação se verificou porque fomos altamente lesados pelo Estado num investimento que fizemos.
– Tem de falar um pouco mais alto.
– No período em referência fomos alvos de uma situação em que fomos altamente lesados pelo Estado.
Estavam na fase final de um empreendimento de restauração na zona de Santos. A poucos meses da inauguração, foram apanhados em luta entre a Câmara Municipal e a Administração do Porto de Lisboa. A obra, que já lhe custara quase quatro milhões de euros (investidos em 2011, no pico da crise financeira internacional), foi embargada. Lutas em tribunal, vitórias, recursos… a obra continua parada dez anos depois.
Mas que dez anos para este homem (e para nós, se pensarmos bem).
– Uma perspectiva que tínhamos montado com a inauguração do espaço foi completamente gorada. Isto trouxe-nos gravíssimos problemas de tesouraria. Declarámos as quantias que eram devidas à entidade tributária, mas infelizmente, por ruptura de tesouraria, foi de todo impossível.
Houve planos de pagamento a prestações cumpridos dentro do possível, mas nada chegava, até porque vinham aí mais novidades da montanha russa que está a ser o século XXI.
No século I o apóstolo João, um cabeça quente que andou ao lado de Jesus Cristo, ao chegar a velho entrou em delírios sobre o fim do Mundo e descreveu o Apocalipse que estava mesmo ao virar da esquina. Dois mil anos mais tarde, um empresário lisboeta parecia contar uma versão minúscula e pessoal dos quatro cavaleiros, anunciando o fim de todas as coisas. A peste, a guerra, a fome e a morte (não necessariamente na ordem descrita por João).
Quando estava finalmente a pensar que ia pagar as dívidas geradas pela guerra com o Estado, veio a peste covid-19 que paralisou todas as actividades turísticas, animação nocturnas, culturais, o que sabemos. Sufoco, quase insolvência, disse o homem.
– Estamos há 18 meses parados, sem fontes de rendimento, por decreto governamental desde Março de 2020…
Se parece que já chega de azares, faltava um. Em 2018 foi o famoso, ou melhor, o infame encerramento por seis meses da discoteca Urban Beach, no rio Tejo, quando um segurança com fome de pancada espancou quase até à morte um jovem cliente. Sim, a discoteca tinha a ver com este homem que vi a ser julgado… Segundo ele, o segurança era de uma empresa externa, contratada, e que espancou não só fora do seu horário como num acto irresponsável e “totalmente alheio” à discoteca.
Mas, como se dizia (ainda se diz?), tudo vai acabar bem.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)