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Perder a vida nos videojogos

(Foto: Freepik)

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Chegam a passar mais de dez horas por dia colados aos videojogos, sem dormir, sem tomar banho, sem ir às aulas. O jogo virtual passa a ser a única prioridade. O fenómeno do vício em crianças e jovens traz a reboque famílias inteiras, conflitos entre pais e filhos, o desespero de quem já não vai a tempo de pôr travão. E há cada vez mais gente a pedir ajuda para voltar a trazer os miúdos para o mundo real.

Abel acabou de chegar a casa após um internamento. Foram quatro meses longe, na clínica de tratamento de dependências RAN, em Vila Real. As aulas do final do 9.º ano tiveram de esperar. Carregou no botão da “Pausa” na vida quando o desespero da família já parecia não ter alternativa. Tem 15 anos, os videojogos invadiram o dia a dia do adolescente num caminho sinuoso de vício. “Jogava dia e noite se fosse preciso. A certa altura, comecei a roubar dinheiro aos meus pais para pôr em jogos. E eles discutiam comigo, porque não tinha horários para as refeições, não saía do quarto, comia lá, não limpava. Chegava a passar três dias sem tomar banho.” E as notas, na escola, a cair a pique. Negativas atrás de negativas.

A dependência dos videojogos entre crianças e jovens tem vindo a aumentar, com conflitos familiares atrelados. E os confinamentos deram um empurrão. Um inquérito do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), de 2020, revelou o aumento do uso de videojogos na pandemia. Antes, o SICAD já tinha concluído que mais de metade dos jovens portugueses costumam jogar online. Se tiver que puxar a fita atrás, Abel lembra-se de começar a jogar aos oito anos. Minecraft no computador, FIFA na PlayStation. Mas foi quando o Fortnite e o Counter-Strike (CS) entraram no radar que se perdeu num mundo sem fim à vista. A semanada já tinha destino: comprar paysafecards em payshops para investir nos jogos, ter melhores armas, e crescer dentro do ecrã. Em torneios de CS, abriu a porta aos consumos. “Erva, canábis, comecei socialmente, mas quando já me estava a afundar, precisava sempre disso para me acalmar.”

Tornou-se agressivo. Com a mãe, professores, amigos. Só era feliz a jogar. “Comecei a isolar-me para poder jogar à vontade.” A mãe Fátima sabe bem o “terror” que passou. “Emagreci imenso. Eu e o pai trabalhávamos, quando chegávamos a casa, ele estava sentado ao computador. Foi-se arrastando no tempo. E no início do 9.º ano já estava completamente viciado. Passou de um menino dócil a um adolescente revoltado. Só não me batia porque eu fugia.” Abel largou as aulas de Inglês e de bateria para ganhar tempo para jogar. Os pais separaram-se há dois anos, vive com a mãe. Um psicólogo não deu resultado, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) entrou ao barulho, um duro golpe. “Ele não era nenhum vagabundo. Tinha pai, mãe, mas não tive outra opção, já não conseguia dar conta do recado. Ele estava descontrolado. Chegava a ter que chamar a polícia cá a casa”, desabafa Fátima.

Aos 15 anos, Abel já passou por um internamento por causa do vício
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Foi a CPCJ que acabou a sugerir a clínica de tratamento de dependências. Abel foi contrariado, “cheio de raiva”. Não tocou em jogos durante os últimos quatro meses. “Tínhamos terapias de grupo e aí comecei a perceber o quanto a minha vida estava a afundar-se. Não quero viver assim”, diz ele. Já reconhece o problema. Está de volta a casa, fala apressado, está atrasado para o treino de andebol – retomou. Ainda não tocou no computador que está em cima da mesa. A luta é diária. E no meio da euforia de ter o filho de volta, Fátima vive com um aperto no coração, o do medo da recaída.

Perturbação reconhecida pela OMS

O medo tem razão de ser. Pedro Hubert, psicólogo e coordenador do Instituto de Apoio ao Jogador, põe o fenómeno “preocupante” em perspetiva. Há duas décadas, eram os jogadores de casino a procurar ajuda, saltou-se para o jogo online e apostas desportivas e desde há dez anos começaram a aparecer-lhe no consultório jovens com problemas de adição nos videojogos. “Já 10 a 15% das consultas são de pessoas com gaming disorders.” De quem chega a jogar mais de dez horas por dia. A perturbação de jogo pela internet foi definida em 2013. E em 2018, a OMS incluiu o vício dos videojogos na lista de perturbações mentais. “É um problema que começa aos dez, 11, 12 anos, mas que só rebenta muitas vezes quando vão para a universidade. Com a mudança de cidade, deixam de acompanhar as aulas, a jogar cada vez mais e a estudar menos. É um círculo vicioso.”

E a família? “Quando crianças, os pais estão a trabalhar durante o dia e nem sempre têm noção. Mesmo quando percebem que os filhos passam muitas horas a jogar, ainda há aquela crença de que enquanto estão em casa não estão a vadiar nas ruas.” Só que os sintomas começam a vir à tona e é o início de uma luta inglória. Baixam as notas, desistem de outras atividades, como os escuteiros, o futebol e a música, para somarem tempo no ecrã. Jogam pela noite fora já com os pais a dormir, andam sempre com sono, chegam atrasados para a mesa, têm alterações de humor e tudo o que é programa que não contemple o jogo cria guerras. Afastam-se dos amigos e da família. A vida real deixa de estar no plano principal.

O fenómeno surge cada vez mais cedo. João (nome fictício) é o retrato perfeito. O miúdo de nove anos começou a ser acompanhado por uma psicóloga no verão. É a luta precoce de uns pais que não querem perder o rasto a um vício que se agiganta no tempo. Joga desde os cinco, começou no tablet, saltou para o computador e para a consola. Fortnite, Roblox, Brawl Stars. “Cheguei a estar desde que acordava até me deitar sempre a jogar. É a única coisa que gosto de fazer”, conta o pequeno. Os pais puseram-lhe travão. Só pode jogar duas a três horas por dia. “E eles querem que jogue ainda menos, mas não consigo.”

As zangas em casa viraram rotina. “Os meus pais chateiam-se comigo, gritam e querem que faça outras coisas, mas não quero. Quando eles me desligam as tecnologias a meio de um jogo grito e dou murros no sofá.” Não quer “ficar mau aluno” empurrado por uma adição, só que o caminho de consultas semanais ainda está no início. E leva tempo.

Criar regras na família

Na verdade, os videojogos não têm nada de mal, o problema está no excesso. A psicóloga Rute Agulhas até lhes reconhece benefícios. “Estimulam a atenção e a concentração, a capacidade de reação, a criatividade e os processos de tomada de decisão.” Só que tanto podem ser recreativos e educativos, como podem ser destrutivos e trazer a reboque “dificuldade na regulação dos impulsos, obesidade, quadros depressivos e ansiosos”. Isso e conflitos entre pais e filhos, que ganham contornos graves. Basta recuarmos a agosto quando uma mãe de 40 anos esfaqueou o filho adolescente por não parar de jogar videojogos, em Lisboa.

Certo é que o uso abusivo dos ecrãs é uma realidade cada vez mais frequente, em Portugal e lá fora, de tal forma que a China, num caso extremo, decidiu proibir as crianças de jogar online mais de três horas por semana, com o Estado a sobrepor-se aos pais. A proibição traz dúvidas, é a prevenção a primeira frente de batalha. Tanto que Rute Agulhas lançou, com Regina Pinto e Joana M. Gomes, o livro infantil “Game Over” da coleção “Vamos Prevenir” para ajudar a isso mesmo, a prevenir comportamentos problemáticos de jogo. É a história de um personagem viciado em videojogos que, com a ajuda dos amigos e da escola, juntos, criam um programa de intervenção. Mas a família também tem de entrar neste barco. Segundo a psicóloga, os pais devem estar atentos aos sinais de alerta e definir limites de tempo para o uso dos ecrãs, criar regras claras e explicar porquê. Dar o exemplo, falar sobre os riscos, instalar filtros parentais.

O desafio é bem mais difícil do que parece, em pais que chegam à frustração de negociações falhadas, e Pedro Hubert também é favorável a consequências quando não se cumpre: tirar o computador ou a consola até repor o equilíbrio.

Entre a Medicina e o monitor

Ricardo (também nome fictício) fugiu aos olhos dos pais quando entrou na universidade e saiu de casa. Um sonho na mira, o de ser médico, atropelado por um vício que tomou a dianteira. Antes disso, só jogava depois das aulas. Perdeu o controlo no verão depois do 1.º ano do curso, com League of Legends. “Passava os dias naquilo, fiquei tão viciado que quando começaram as aulas não mudei o chip. E aí tudo começou a descambar.”

“Ricardo” passava os dias a jogar e perdeu dois anos do curso de Medicina
(Foto: Ivan del Val/Global Imagens)

Chegou ao ponto de não ir às aulas, não tomar banho, comer uma vez por dia. Só parava para ir à casa de banho. Deixou as saídas com os amigos, de ir a casa aos fins de semana. “Chegava a ser ridículo. Quanto mais jogava, melhor me sentia. A vida deixa de ser importante, o meu único objetivo passou a ser subir no jogo. Parecia uma vida dupla, escondia, mentia, dizia que estava tudo bem.” Jogava 18 horas por dia. E o 2.º ano ficou para trás, reprovou. Um choque que apanhou os pais de surpresa e que o levou, forçado, a um psicólogo.

“O problema de deixar de jogar é começar a gostar de tudo o resto. E tudo o resto me parece aborrecido.” Não conseguiu deixar, mas recuperou alguma normalidade. Estabeleceu limites, pelo menos até a pandemia o enfiar em casa e voltar a entrar numa espiral que o reteve no 6.º ano do curso, no meio do stress do temido exame “Harrison”. “Os meus horários de dormir alteraram-se logo, o primeiro sinal de alerta.” Tem 28 anos, descobriu André Fialho, psicólogo especializado na dependência do jogo, os pais obrigaram-no a ir. Outra vez. As consultas semanais ajudam-no a focar-se em tarefas para lá do ecrã. Está em abstinência, vendeu todas as contas que tinha em jogos. “Estou numa fase mais equilibrada. Mas não estou completamente normal. Não sei se alguma vez vou estar. Por muito péssimo que pareça, sinto saudades do tempo em que jogava todo o dia.”

Tratamento ainda é sobretudo no privado

Se André Fialho pudesse pôr um rótulo no vício dos videojogos chamava-lhe pandemia que alastra à velocidade da luz. Apesar de a OMS já ter identificado como doença, o psicólogo que dá consultas no Porto continua a vê-la mais como um sintoma de que algo está mal, uma forma de se alienar de emoções negativas, um refúgio. É precisamente por aí que começa o tratamento, em consultas que visam o auto-conhecimento, “tentar perceber porque é que joga, que lacunas é que colmata com os videojogos”.

“Na verdade, estes jovens sempre jogaram, mas a dada altura, um desgosto de amor, uma mudança familiar, a ida para a universidade, e de três horas passam a jogar dez.” No jogo, são donos e senhores de autênticos pelotões. Bullying, ansiedade social, o divórcio dos pais, podem ser gatilhos. Tudo entra na equação. Só este ano já sete jovens com problema de uso abusivo de videojogos lhe pediram ajuda. Ou melhor, os pais. “Os gamers não sentem que têm um problema. E não encaram bem o tratamento.” Chegam sempre contrariados, empurrados pela família, quando já perderam amigos, reprovaram de ano, desarrumaram a vida familiar, quando trocaram prioridades e o ecrã passou a ser a primeira e, tantas vezes, a única. A terapia cognitivo-comportamental envolve os pais, em negociações, em controlo do tempo, objetivos semanais, “o problema afeta todos”. E dá estratégias aos jogadores. “Para que da próxima vez que a vida lhes fizer uma rasteira isso não os leve a um comportamento auto-destrutivo”, explica Fialho.

Miguel (mais um nome fictício) juntou dois. O ecrã e a comida. Tem 22 anos. Se ficava nervoso, tinha sempre os mesmos escapes: jogar e comer. Do Pokemon em miúdo saltou para o CS ou League of Legends em adolescente. Tem cravado na memória o ano em que os pais se separaram, estava no 5.º na escola. Foi o ponto de viragem. Refugiou-se no ecrã, sabe disso hoje porque procurou ajuda. Conseguiu passar sempre de ano, jogava depois das aulas. Horas a fio. Mas o ensino superior foi um embate duro, obrigava a mais estudo, não conseguia acompanhar. “Fiquei para trás e para não lidar com isso jogava cada vez mais.” Trocou de curso, duas vezes. Passou por engenharia informática, eletrotécnica e design de videojogos. Largou a universidade para se reorganizar, está a trabalhar.

Os pais queixavam-se que jogava muito, ele negava. Foi a mãe que o levou ao Instituto de Apoio ao Jogador, no ano passado. Miguel limitou os ecrãs a duas horas diárias, incluindo portátil, televisão e telemóvel. Tinha excesso de peso, começou a comer melhor e a fazer exercício. Ainda está na luta.

As consultas no privado custam à volta de 60 euros. Podem levar meses ou anos, nos casos em que já se instalou de tal maneira em que entra a depressão, a ansiedade, a baixa autoestima, outras adições. No SNS, é a Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (DICAD), das Administrações Regionais de Saúde, a dar resposta em ambulatório, em espaços de atendimento. É gratuito e as equipas contam com médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e técnicos psicossociais. Os hospitais também começam a mexer-se, é o caso da ala da Psiquiatria do Santa Maria, em Lisboa, que criou uma secção especializada de apoio para esta dependência.

Psiquiatra e investigador na área da saúde mental, Pedro Morgado reconhece que o fenómeno é crescente e que a doença não gera só sintomas emocionais, como “perturba o funcionamento social e o desenvolvimento psicomotor” e tem “consequências nefastas”. Exatamente por isso, alerta que é preciso estarmos cada vez mais preparados para “reconhecer cedo e tratar adequadamente”. Mas, quando o problema não parece ter fim à vista, é o internamento a solução. Só existe essa opção em algumas clínicas privadas e ainda não há comparticipação do Estado. Em quatro meses – tempo médio -, o custo ultrapassa os oito mil euros, um travão a fundo para a maioria das famílias.

Fome e orgulho: dez anos a esconder-se

Foi o internamento que salvou Luís Silva. Depois de dez anos de ziguezagues. De fome, de roubar a família. “Mudou a minha vida. Às vezes ainda tenho saudades da clínica.” Foi parar à Clínica Linha d’Água, em Leiria, porque a mãe lhe deu a mão. Não teria conseguido pagar. Aos 28 anos, faz “rewind” numa história de desespero, despe-se de tabus. Começou a jogar aos 12 anos de forma compulsiva, com amigos, jogos de espadas, de aumentar os níveis, melhorar as armaduras. “Tinha aquilo na cabeça o dia inteiro, só falava daquilo, estava nas aulas à espera que acabassem para ir jogar. Tudo o resto me passava ao lado. Fingia que ia dormir e depois de os meus pais se deitarem ia jogar.” Nas férias, era capaz de se deitar às 10 horas da manhã. Mas o vício escalou quando começou a trocar dinheiro virtual do jogo por dinheiro real. “A forma que tinha de o levantar era pôr num site de apostas. Fazia uma aposta mínima para poder levantar.” Foi o início do fim.

Na adolescência, tinha 15 anos, Portugal estava a vencer o Chipre, apostou no empate. Gritou eufórico na varanda golo do Chipre. Ganhou 900 euros, “uma fortuna para um miúdo daquela idade”. As apostas nunca mais pararam. Pelo caminho, os pais separaram-se, não sofreu, tinha no jogo a solução para todos os problemas. Apostava em futebol, basquetebol, ténis, “só não apostava em lutas de galinhas porque não havia”. Chegou a roubar dinheiro ao pai, à avó, à namorada, era sempre a última vez, prometia-se. Nunca acabou o secundário, foi trabalhar na área comercial e morar sozinho. Falhava rendas, escondia a verdade, inventava desculpas. “Tinha que continuar a jogar sem ninguém a estorvar.” Gastava o salário todo no início do mês, passava fome, “por vergonha, culpa”. “Passei três dias sem nada no estômago. Já nem sabia quem é que eu era.”

Uma ex-namorada ajudou-o. Levou-o até ao psicólogo Pedro Hubert, tinha 23 anos. Conseguiu estar cinco meses sem jogar, a namorada geria-lhe o dinheiro. Mas quando voltava a tomar as rédeas à vida, voltava a cair. Uma e outra vez. Num só dia, gastou cinco mil euros em apostas. O psicólogo sugeriu-lhe uma clínica de reabilitação. O preconceito levou-o a fechar logo a porta. Só que o desgaste emocional era tanto que quis voltar a abri-la. Era muito caro: quatro meses, mais de dois mil euros por mês. Foi aí que a mãe o salvou, quando lhe sugeriu o mesmo num Natal. Janeiro de 2019. Ligou para a Linha d’Água no dia 3, dia 4 foi internado. “Vou levar a experiência que passei ali para o resto da vida. Aprendi muito sobre mim, bloqueios do passado, arrumei muita coisa. Não há dinheiro nenhum que pague aquilo.” Nunca mais teve recaídas, por resiliência. Foi o “game over”. Ainda hoje, todas as semanas tem terapia e está num grupo de autoajuda. Sempre, não falha, nem de férias. “É a coisa mais importante que tenho. Ajuda-me a não esquecer que não posso fazer a primeira aposta.”

Segundo Alexandre Inverno, diretor-geral da Linha d’Água, o salto dos videojogos para o jogo a dinheiro é fácil, investem para terem melhores jogadores, melhores armas, subir de nível. “Estão em campeonatos em que no intervalo aparece publicidade sobre como ganhar dinheiro a jogar. Jogam jogos em que se chegarmos a um determinado patamar, somos recompensados com dinheiro virtual.” Recebe jovens para internamento por vício nos videojogos dos 18 aos vinte e muitos anos, sobretudo rapazes. “Os pais antes desvalorizavam, mas já começam a estar atentos, a partir do momento em que entram no descontrolo é uma adição nua e crua.” Ali, tratam outras dependências, mas todos os técnicos têm formação em jogo patológico. Porque tratar um toxicodependente não é o mesmo que tratar um jogador. E o pós-internamento, como no caso de Luís, é “tão ou mais importante”.

Quando o jogo é profissão

Se há quem caia no enredo de um vício entre os gráficos dos ecrãs e o mundo real à margem, também há quem faça dos videojogos profissão. Um fenómeno que tem vindo a crescer nos últimos cinco anos. Entre atletas portugueses a competir em equipas estrangeiras e atletas residentes em Portugal a competir em equipas nacionais, estima-se em cerca de uma centena de profissionais dos esports. Portugal ainda está longe de outros países no que toca à profissionalização, mas para lá caminha. Aliás, em 2020, a Federação Portuguesa de Desportos Eletrónicos associou-se à Universidade Europeia para o lançamento da primeira pós-graduação em gestão de Esports.

E a indústria já tem capacidade para suportar profissionais a full-time, de jogadores a treinadores. Segundo o presidente da Federação, Tiago Fernandes, “o League of Legends é sem dúvida o jogo em que os portugueses mais se têm realçado”. Ainda assim, o país já teve campeões mundiais e europeus em competições de Pro Evolution Soccer (PES) ou FIFA. E nesse campo Pedro Barbosa mexe-se bem. Tem 26 anos, é jogador profissional do clube inglês Arsenal em PES. Joga videojogos desde que se lembra de existir. Mas a paixão a sério surgiu quando lhe entrou em casa a primeira PlayStation e começou a jogar PES. De um torneio local entre jovens passou para voos mais altos: foi campeão europeu, em Londres, em 2013. “Nunca fui aquela criança que só jogava e não saía de casa. Sempre tive tempo para tudo. Até porque também praticava taekwondo.”

Pedro Barbosa admite que a vida de um atleta profissional de esports ainda é incerta
(Foto: Ivan del Val/Global Imagens)

E o hobby do ecrã haveria de virar trabalho, quando, em 2019, se tornou profissional. A história começou um ano antes. Entrou em contacto com o Boavista para participar numa competição internacional organizada pela produtora do PES. “Eu queria entrar na competição e o Boavista precisava de jogadores.” O segundo lugar na tabela de melhores marcadores e a melhor defesa da prova abriram-lhe as portas do estrangeiro. Uma proposta do Arsenal, em 2020, e um sonho que nunca tinha sonhado virava realidade.

Numa área a dar os primeiros passos, os contratos são de um ano – quando não são de prestação de serviços – e a instabilidade ainda não lhe permitiu largar o emprego na construção civil. Não joga o dia todo, longe disso. Começa já depois das 17 horas e acaba às 21. Treina e compete a partir do escritório em casa, em Vila Nova de Gaia. A pandemia empurrou tudo para o online. O campeonato arranca em dezembro, já está em treinos. Quer viver só disso, assinou contrato com um agente este ano. Consegue uma média de 25 mil euros anuais a jogar. “Exige um grande trabalho que não está à vista. É preciso muita dedicação.” Mesmo quando não quer jogar, tem de o fazer, e tem de jogar para ser eficaz, em prol da equipa, com metodologia, objetivos. Aos fins de semana, desliga a ficha.

No país, ainda não existem estruturas – como as escolinhas de futebol – que apoiam o desenvolvimento de um jogador de desportos eletrónicos desde tenra idade até à profissionalização. São as competições em pequenos torneios que vão dando visibilidade ao talento até às contratações. O mundo dos videojogos é um arco-íris de muitas cores. No descontrolo, entra o vício, na regra pode entrar a profissionalização. Assim o sonhem os apaixonados.