Pequeno cavaleiro do asfalto
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Sapatos de ténis pretos, calções pretos, camisola preta (de cavalinhos com asas estampados) vestindo a pele branca de leite e de açúcar, pele de bebé. Eu escutava o relato dos crimes do rapaz e perguntava-me: alguma vez este peso-pluma conseguirá erguer e pilotar uma mota pesada, verdadeira? Tem corpo de jóquei (leio-vos agora de um guia de profissões na internet): “Os jóqueis devem ser o mais leve possíveis. Deste modo, a nutrição é controlada com rigor, quer em termos de doses, quer quanto ao tipo de alimentos consumidos. O jóquei ideal tem, em média, entre 49 e 54 quilos e 1,47 e 1,68 metros de altura”. Assim era este homenzinho, António. Talvez ainda mais minúsculo, com ombros de pau de gelado. Outra imagem que me veio à cabeça foi a dos imberbes que mentiram na idade para se alistarem na guerra das trincheiras, alegremente estraçalhados em 1914-1918, ou os menores nazis que Hitler arregimentou para a chacina final do III Reich. No entanto, este rapaz que se levantava do banco dos réus, se só tinha cara de 15, já fizera 18 anos. António é maior de idade.
– Bom dia, senhora doutora juíza. Sim, vou responder com a mais sincera verdade.
A verdade é não se adaptava à sua história. A juíza leu que na manhã de 17 Outubro de 2019 ele entrou, com outro suspeito (Gabriel, que não apareceu em tribunal), numa loja de artigos para motards, um armazém de material motoqueiro na Caparica. Mexeram num capacete que valia 300 euros, um blusão de couro e um par de luvas. Espírito Easy Rider. Fugiram a correr.
À tarde, inacreditavelmente, regressaram à mesma loja. E Gabriel regressou ao seu método:
– Ele pegou em dois capacetes e começou a correr, a senhora fez ‘ei, ei, ei!’, ele a correr… eu não sabia o que fazer e corri também! É o que tenho a dizer, é a sincera verdade.
Que tentou demover o companheiro do seu impulso criminoso:
– Eu disse a ele para vir embora e deixar as coisas…
A juíza suspirou:
– Mas de manhã já sabia que estava a sair da loja com coisas que não eram suas.
– Eu estava em casa e ele convidou-me para ir com ele e eu disse para ele não fazer nada e ele disse que não ia embora com coisas. Eu fiquei lá fora.
A pele branca do rapaz ficara transparente, quase se viam os músculos finos e, por baixo, os ossinhos do pescoço.
– A minha pergunta é muito clara! Se não quiser responder, recusa-se e pronto: mas o que é que combinou com o senhor Gabriel antes de ir?
– Não combinei nada.
Mas quem é que combina ir a um sítio não fazer nada?, boa pergunta da juíza. A máscara anti-vírus do rapaz começou a escorregar-lhe da cara. O nariz branco, branco, translúcido.
– Posso fazer uma pergunta? Disse que posso não responder à pergunta?
– Pode.
– Então não quero dizer nada. Quero já pedir desculpas às sotôras pelo que fiz. Pelo que fiz… que não mexi em nada. Estava com ele!
– Mas o senhor não combinou?
– Eu não combinei nada, eu fiquei lá fora.
Aqui foi o próprio advogado de defesa que interveio, em favor do tino do seu cliente António e da lógica universal.
– Ouça, isso não é uma combinação, senhor António?! Combinou com o senhor Gabriel que ficava lá fora!
– E puxe a máscara para cima, nesta altura do campeonato toda a gente está farta de saber que tem de tapar o nariz!, resmungou a juíza.
– Peço desculpa.
Não se lembraram os dois jovens: havia câmaras. A polícia já sabia que andava à solta um dueto que assaltava lojas de artigos para motas: casacos, óculos, capacetes, luvas. Um raide de furtos que já valia cerca de quatro mil euros. Havia imagens da cara dos dois. Um investigador da PSP passou numa paragem de autocarro e reconheceu-os. Traziam um grande saco: lá dentro, um casaco de couro, um par de luvas e ainda duas etiquetas de capacete.
– Sinceramente, eu já os conhecia de outras situações.
Mas andavam de autocarro, é a mais sincera das verdades.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)