
A pandemia está novamente a fugir de controlo e retomar o trabalho presencial ainda gera receios e ansiedades. Que estratégias podem os trabalhadores e empresários adotar para um regresso sem sobressaltos?
A noite anterior ao regresso foi passada em branco. 14 de junho foi a data marcada pela empresa para retomar o trabalho presencial. “Será que vou estar segura? Como vou conseguir estar fechada naquele gabinete tantas horas?” Paula, 36 anos, trabalha nos escritórios de uma empresa têxtil do Norte e partilha o espaço de trabalho com mais quatro colegas. Naquela, noite virou-se e revirou-se na cama vezes sem conta. Estava em teletrabalho há mais de um ano, conseguiu adaptar-se às distâncias, a substituir o contacto direto pelo “chat” ou pelo telefone, aprendeu a conciliar tarefas, permitiu-se ligar o computador noites a fio para acabar o que ficara por fazer. Deu o litro porque pela primeira vez percebeu que o seu posto de trabalho estava ameaçado por um vírus que paralisou o Mundo, empurrando as exportações para mínimos nunca vistos. Em março passado, a pandemia começou a dar tréguas e, no início de junho, recebeu ordens para voltar ao regime presencial. “Será o momento certo?”, questionava. Sentia-se afogada em dúvidas e receios. Ainda não tinha tomado a vacina, fazia-lhe confusão ter de usar máscara durante todo o dia e saber que nem todos os colegas sentem os mesmos medos e tomam os cuidados devidos.
Numa altura em que muitas empresas recuperam o trabalho presencial, com a pandemia a oscilar entre o controlo e o descontrolo, crescem os receios e ansiedades. Como é que as empresas e os trabalhadores podem preparar-se para um regresso sem medos e com menos riscos? Qual o regime ideal de trabalho nesta fase? Que modelos estão a seguir as empresas nacionais e estrangeiras? Psicólogos especializados na área do trabalho e das organizações contam o que já se está a fazer e dão as estratégias para um regresso ao trabalho presencial sem sobressaltos.
O que aconteceu no último ano impõe, por ora, uma distinção entre trabalhadores que tiveram covid-19 e aqueles que não tiveram. Ambos necessitam de atenção e cuidados. Aqueles que estiveram doentes, em particular os que ficaram internados em Cuidados Intensivos, precisam de apoio especial. “Vão ter de adaptar-se e podem apresentar dificuldades respiratórias, fraqueza muscular, problemas de memória e concentração”, nota Gaspar Ferreira, membro do conselho de especialidade de Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Com base na experiência dos últimos meses, refere que as queixas nem sempre são imediatas, mas “há muitos trabalhadores que se sentem com menos capacidades cognitivas, menos memória”. Voltar ao posto de trabalho e “sentir que não se consegue lidar com desafios com os quais antes se lidava bem é ansiogénico” e, embora isso esteja a acontecer em várias áreas de atividade, “nem sempre é reconhecido pelo trabalhador ou pela empresa”. De resto, salienta, estudos da Agência Europeia para a Segurança no Trabalho mostram que um quarto das pessoas que estiveram em Cuidados Intensivos podem desenvolver problemas cognitivos, independentemente da idade. E ainda que metade destes doentes podem necessitar até um ano para retomar o trabalho e um terço pode nunca regressar.
Para os trabalhadores que não tiveram covid-19, “é importante as organizações garantirem ambientes seguros, do ponto de vista ergonómico e psicológico”, defende Gaspar Ferreira. Esta é uma oportunidade para se fazerem ajustamentos das cargas, das funções e das tarefas, rever procedimentos para se conseguirem melhorias, sintetiza o psicólogo, realçando que um dos problemas do teletrabalho foi o desequilíbrio de cargas: enquanto uns ficaram sem trabalho, outros ficaram sobrecarregados e com grandes dificuldades em conciliar a vida profissional e doméstica.
Opção pelo regime híbrido
Ana Veloso, diretora do mestrado de Psicologia do Trabalho e das Organizações da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, corrobora. “É uma boa oportunidade para o trabalhador pensar juntamente com a chefia a reorganização do seu trabalho.” A psicóloga integra um grupo de cinco investigadoras de várias faculdades de Psicologia do país que criaram o projeto “Power to People”, financiado pela Fundação da Ciência e da Tecnologia, para ajudar trabalhadores e organizações a lidar com a nova realidade imposta pela pandemia. A equipa inquiriu mais de 130 empresas de todas as áreas de atividade (exceto agricultura) sobre o que ia mudar nos pós-covid e “um dos pontos que as organizações mais referiram é que estavam a considerar o trabalho em regime híbrido”, uma mistura de teletrabalho e presencial. Esta é, alias, uma das opções que várias multinacionais estão a dar aos trabalhadores. Empresas como a Google, Ford e Citigroup já assinaram acordos para um modelo misto.
“Para as pessoas que estavam em teletrabalho – que correspondem a cerca 14% da população ativa -, é uma boa oportunidade para aproveitar o que de bom veio daqui e conseguir mais flexibilidade”, salienta Ana Veloso, notando que, quem tem condições para trabalhar em casa, pode evitar tantas deslocações e, por exemplo, escolher os dias da semana com menos trânsito.
O workmonitor 2021, uma espécie de barómetro global do mercado de trabalho publicado pela multinacional de recrutamento Randstad, revelou em meados de abril que mais de 77% dos trabalhadores portugueses que estão atualmente a trabalhar à distância querem regressar ao regime presencial. São números em linha com os europeus, ainda que os portugueses manifestem mais medo de ficar infetados do que os trabalhadores a nível europeu e mundial.
Funcionários devem questionar sobre as medidas tomadas
Para minimizar os receios, antes de regressarem ao trabalho presencial, os trabalhadores podem e devem questionar os serviços de recursos humanos das empresas sobre as medidas tomadas para reduzir os riscos de contágio do vírus. “As pessoas têm o direito de questionar e as organizações têm todo o interesse em comunicar.” Paula fê-lo três dias depois do regresso ao escritório. Preocupada com a falta de arejamento do espaço partilhado com as colegas e com a notícia de que uma delas teve um familiar positivo, perguntou à chefe de equipa quais as medidas adotadas para garantir a segurança dos trabalhadores e quais as regras em caso de contactos com positivos. A resposta foi “pouco consistente”. Está tudo de acordo com o delegado de saúde, disseram-lhe. Ficou sem perceber o que é “tudo”, quem é a figura citada e se alguma vez visitou a empresa.
Apesar de ainda haver maus exemplos, as organizações estão cada vez mais preocupadas com a segurança e a saúde mental dos seus trabalhadores, percebendo que a pandemia afetou negativamente o seu bem-estar, independentemente do cargo e posição hierárquica. “As empresas estão mais abertas do que nunca. Há um despertar para a área dos riscos psicossociais, que agora se orienta para uma intervenção mais séria”, assegura Gaspar Ferreira. E especifica: se antes havia abertura para o “coaching” ou formações breves, agora perceberam que é necessário um nível de cuidado mais apurado, que exige formação específica para lidar com depressões, com o burnout e para saber encaminhar para terapia. “Temos muitos pedidos de apoio de empresários, para os próprios, e para os trabalhadores, e também nesta dimensão de integração” para assegurar um regresso ao trabalho presencial com cuidado, explica o psicólogo, referindo-se a solicitações que chegam à OPP.
Empresas fazem consultas, inquéritos, formações
Já há grandes empresas de diversos setores (tecnologia, resíduos, logística, química) a implementar estratégias para ajudar os colaboradores nesta fase: aumentaram as consultas de Psicologia, apostaram na sensibilização das lideranças para o momento que se vive, através de formações e seminários; outras implementaram questionários diários, semanais ou mensais para monitorizarem o nível de bem-estar dos colaboradores. Querem saber se tem dores de cabeça, se sente cansaço ao final do dia, quais as suas preocupações, se tem dificuldades em dormir, entre outros indicadores.
Da parte dos trabalhadores também há estratégias e dicas que ajudam preparar um regresso ao trabalho presencial com menos ansiedade. “Em primeiro lugar, não devem preocupar-se muito com aspetos que não podem controlar”, arranca Gaspar Ferreira. Depois, “devem voltar com um ‘mindset’ flexível, aberto às mudanças porque o Mundo mudou”. No dia a dia, é importante saber aceitar com normalidade algumas emoções e sentimentos mais negativos. “É normal sentir ansiedade, é normal sentir stress”, explica o psicólogo, sugerindo, nestas situações, uma “respiração mais longa e profunda para reduzir a frequência cardíaca e melhorar os níveis de ansiedade”. Aceitar os pensamentos perturbadores, concentrar-se no momento presente e nas sensações, praticar algumas técnicas de relaxamento, ioga, meditação, são outras estratégias que ajudam. Nos momentos de maior pressão, o trabalhador deve recordar que já ultrapassou desafios semelhantes e lembrar-se do propósito do seu trabalho. “Isto ajuda a ser mais resiliente, a suportar os obstáculos nos momentos mais difíceis”, acrescenta.
São conselhos que servem também aos empresários: recordar os objetivos, os propósitos da empresa, o que se está a fazer e para onde se pretende ir. E também aceitar de forma empática os problemas e desafios pessoais e profissionais dos trabalhadores, acrescenta o psicólogo. No início de junho, o Governo decretou o fim do teletrabalho obrigatório, passando a ser apenas recomendado na generalidade do território (exceto nos concelhos de Lisboa, Odemira, Braga e Vale de Cambra). Grandes empresas, como a Sonae, começaram a enviar emails para os trabalhadores para assinalar o regresso ao trabalho presencial, mas em poucos dias a pandemia deu a volta ao texto. No final da semana passada, já havia 45 concelhos onde o regime de trabalho à distância passou a ser novamente obrigatório, incluindo o Porto. As perspetivas de agravamento da incidência de novos casos de covid-19 fazem crer que o teletrabalho se manterá obrigatório na generalidade dos concelhos nos próximos meses, com consequências para os trabalhadores.
“Este vaivém é perturbador para todos, achamos que se está a resolver e de repente estamos outra vez a discutir o confinamento e isto gera dificuldades”, conclui Gaspar Ferreira.
O concelho de Guimarães, onde Paula trabalha, ainda não estava na semana passada na lista dos obrigados a regressar ao teletrabalho. Mas, como a pandemia já ensinou, nada é garantido.