Valter Hugo Mãe

Países de crianças

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Era suposto que, ao menos acima dos dez anos de idade, estivéssemos todos mais capazes de usar a consciência em prol da nossa e da saúde dos outros.

Não pode haver perplexidade nem protesto perante a subida das infecções e o iminente colapso dos hospitais. Nem precisávamos de ser avisados. Com dez meses de pandemia, ainda não entendeu o que se está a passar quem tem a cabeça metida na areia. A obstinação com conseguir de António Costa um número preciso de pessoas para a mesa de Natal ou para um encontro de qualquer natureza só pode ser do foro da ingenuidade. António Costa não pode decretar proibições ao vírus, o vírus vai passar por todas as oportunidades que lhe dermos. Que raio tem isto de complicado para entender? Se houver risco, juntar duas pessoas já é demasiado. A partir daí, ajuíze você mesmo a situação. Que é o mesmo que dizer: seja você mesmo responsável pelo que decide.

Tenho tido a impressão de que o mundo, afinal, se faz de países de crianças. As pessoas esperam ser conduzidas naquilo que o simples bom senso deveria conduzir. Não me admira que o discurso das autoridades por vezes seja redundante e quase sem calorias. Fico convencido de que qualquer formulação frásica mais consistente deixa de lado metade da humanidade que já não estará a entender nada. Sobra apenas a possibilidade de se explicarem as coisas como às crianças, com muitos cuidados para não ferir susceptibilidades, mas a fazê-lo porque parece que ainda falta ensinar quase tudo.

O Natal foi visto como inelutável. Subitamente, ninguém estava disponível para abdicar de sua normalidade, suas tradições, porque o menino Jesus nem haveria de nascer se o avô não estivesse à mesa com os netos e o bacalhau não levasse a batata e o ovo como sempre. Em janeiro e fevereiro estaremos a sepultar alguns daqueles que não puderam escapar à tradição e estaremos a internar muitos outros em agonia e incerteza. Sinceramente, não entendo. Custa-me a crer que as ganas de uma festa sejam tão grandes que se coloquem como império acima da saúde e da pura sobrevivência. O que isto faz não é apenas o agravamento da pandemia, é a vasta depauperação do inteiro acesso à saúde, porque aquilo que acontece aos hospitais periga os cuidados de uma infinidade de pessoas que, por outras patologias, se vêem ainda mais vulneráveis e mesmo ao abandono.

Governo nenhum é culpado disto. Era suposto que, ao menos acima dos dez anos de idade, estivéssemos todos mais capazes de usar a consciência em prol da nossa e da saúde dos outros.

Avança o frio, que aqui para o norte é de lascar. Temos um país incapaz de aquecer as suas casas, convencido de ser de clima moderado. Morrem pessoas por este tipo de miséria, sem fortuna para a electricidade que nos cobram. Em 2017 o frio inventou o dia com mais mortos de que há memória em Portugal. Em 2021, o frio, a pandemia e o colapso dos hospitais ameaçam fazer pior. Que triste, afinal, o Natal dos países de crianças.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)