A culpa, os defeitos, os erros e as falhas não tornam os pais e as mães piores. Podem mesmo torná-los melhores. Os filhos não precisam de progenitores perfeitos, precisam apenas que sejam “suficientemente bons” - é isso que os prepara para a vida e lhes mostra que até o amor é imperfeito. Porque entre a idealização e a realidade, há toda uma vida que se impõe.
Foi há três anos. Não teve aparente importância, mas Ana lembra-se como se tivesse sido ontem. Sentou-se no centro comercial para beber um café e comer um pastel de nata. O filho Gonçalo, na altura com um ano e meio, estava inquieto. “Agora não estou para te aturar”, pensou, e deu-lhe o smartphone para ele ver uns vídeos. A senhora da mesa ao lado não perdeu tempo e atirou o seu comentário para o ar, em voz alta: “Estas mães, hoje, em vez de educarem os filhos, resolvem tudo com os telemóveis”.
“Ri-me porque tive capacidade de sair do meu corpo, ver a cena de fora e perceber que, anos antes, seria capaz de fazer o mesmo comentário”, conta Ana Amorim, de 33 anos. O seu protótipo de mãe idealizada – aquela que considerava exemplar e que julgava que viria a ser – também não usava telemóveis para calar crianças. Aquilo que a maternidade lhe trouxe foi a perceção aguçada de que entre a idealização e a realidade se interpõe a vida. “Em cada casa, há uma história e, quando estamos de fora, não sabemos qual é. Aquela senhora não sabia, mas eu não estava desinteressada, estava exausta, tinha passado a noite acordada a cuidar de outras duas crianças com poucos meses. E precisava mesmo daqueles cinco minutos para beber um café em paz.”
Quando se viu, aos 29 anos, com três bebés em casa (Duarte e Leonor, gémeos prematuros, e Gonçalo, na altura com apenas um ano e meio), entendeu que a maternidade é um gigante exercício de humildade. “Eu não faço a menor ideia de como é que isto se faz e vou aprendendo ao fazer”, explica a tradutora jurídica de Coimbra. “O grande ensinamento que tirei do primeiro ano de vida dos meus filhos foi não fazer julgamentos e não me ter em tão grande conta. Tinha muitas ideias preconcebidas e elas desapareceram quase todas.”
A Ana, mãe outrora imaginada, não os entreteria com ecrãs no restaurante, não lhes daria salsichas ao jantar por se ter esquecido de fazer sopa, não cederia a birras em público para os calar, não lhes responderia mal quando estivesse irritada. Já a Ana, mãe real, faz isso tudo às vezes. Posta de parte a mãe perfeita que nunca existiu, pôde, então, aceitar a mãe suficientemente boa que é. E isso, longe de ser opressivo, foi libertador.
O perfeccionismo e as expectativas irrealistas
O conceito inicial de “parentalidade suficientemente boa” data dos anos 50 e foi criado pelo pediatra e psicanalista britânico Donald Winnicott, num esforço para suportar aquilo que chamou de “os instintos sólidos de pais normais”. O médico tinha duas preocupações em mente quando desenvolveu o termo. Por um lado, a crescente intromissão na “família normal” de especialistas em puericultura, pediatria e psicologia. Por outro, ter percebido na sua prática clínica que muitos problemas, frustrações e medos desnecessários dos pais vinham do mesmo lugar: o perfeccionismo e as expectativas demasiado elevadas.
Nenhuma criança precisa de pais ideais, defendeu Winnicott, necessita apenas de pais razoáveis, pessoas mais ou menos decentes e bem-intencionadas, embora com defeitos, a que chamou “pais suficientemente bons”, com particular ênfase na mãe que, à época, pelos papéis de género que lhe eram atribuídos, era a figura central na vida das crianças.
Foi já em 1987, com a publicação do livro “A good enough parent” (Um progenitor suficientemente bom – tradução livre, sem edição em português), do psicanalista Bruno Bettelheim, que se generalizou o uso do termo para ambos os géneros e a expressão entrou definitivamente na cultura popular.
Como todas as boas ideias, a tese mantém-se válida até hoje, décadas depois. O Mundo mudou, os desafios da parentalidade são, por isso, diferentes, mas, no essencial, aquilo que é um pai ou mãe suficientemente bom é igual. “Será sempre suficientemente bom se ouvir os seus próprios instintos e der o melhor de si, investindo na relação e estando disponível, atento e sendo generoso nos afetos”, considera Mónica Pinto, pediatra de neurodesenvolvimento na Clínica Gerações e Centro Diferenças, em Lisboa. Um progenitor “será suficientemente bom se souber ser o porto seguro de que a criança precisa”.
A pediatra garante que a ansiedade de tentar ser perfeito, muitas vezes cria nos pais angústia, levando à necessidade de proteger e controlar excessivamente tudo o que se passa com a criança. “Nestas alturas, é importante ajudá-los a encontrar um equilíbrio, a evitarem ser demasiado formatados por livros de regras e instruções e ouvirem mais a voz interior, o seu instinto parental, o coração”, remata a pediatra. Os tais “instintos sólidos de pais normais” de que falava Donald Winnicott.
A perfeição versus diversão
Quando Ana Amorim começou a desmontar a sua ideia antiga de mãe perfeita, houve outra coisa que percebeu: ela até poderia tentar ser essa mãe, mas não se iria divertir nada. A perfeição é enfadonha. O prazer da maternidade ia ser substituído pela sensação de carregar um fardo. Além disso, seria muito pouco divertido para os filhos também. “Da minha infância, os momentos que recordo com mais carinho e saudade são aqueles em que as regras podiam ser quebradas e podia fazer coisas por norma proibidas, como jantar no sofá ou dormir na cama da mãe”, destaca.
Às vezes, apanha os filhos a comentarem entre eles que “a mãe hoje não está bem-disposta”. “Antes, isso tinha um peso brutal, agora encaro com naturalidade e eles também. Às vezes, não estou mesmo bem-disposta, irrito-me, perco a paciência com eles. Se necessário, peço-lhes desculpa.” Aquilo que pode parecer mau à primeira vista é, na realidade, bom porque os desejos de perfeição autodirigidos, quase sempre implicam uma expectativa de perfeição por parte dos outros – os pais que não tentam ser pais perfeitos também não esperam perfeição dos seus filhos.
“Um pai ou mãe suficientemente bom é aquele que responde da melhor forma às necessidades do filho, mas também falha com frequência, e que está continuadamente a corrigir essas falhas, numa base de amor incondicional e também de humanidade”, sintetiza a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva. Isto é importante e muito formativo para as crianças. “É esse exercício de melhoria contínua que molda o caráter dos seus filhos: dá oportunidades reais de treinarem a resiliência e capacidade de adaptação, ensina um amor real e não idealizado, mostra que não há prazer sem alguma dor. Mostra que podemos amar e respeitar alguém, mas que isso nunca será garantia de não falharmos. E, desde que continue a existir preocupação em cuidar do outro, há espaço para a falha.” A parentalidade suficientemente boa, mais do que aquela que se pauta pela sobreproteção ou pela sobre exigência, é, na verdade, a que mais bem prepara as crianças para a vida.
Os “pais-helicóptero” – pais tão empenhados na parentalidade que fazem girar tudo em torno dos filhos, sendo superprotetores e supercontroladores – podem até prejudicar o desenvolvimento da criança com a sua parentalidade excessiva, tornando-a mais dependente e insegura. Por exemplo, refere Filipa Jardim da Silva, “uma criança que cresce a ter de corresponder às expectativas dos adultos à sua volta, que tem de lhes obedecer e agradar acima de tudo, passa a viver mais em função dos outros do que de si, tornando-se mais vulnerável às circunstâncias exteriores e mais suscetível a pressões e comparações. Se não tem espaço para falhar, tenderá a ser mais ansiosa e exigente consigo mesma, encarando o erro como uma falha de caráter ou fraqueza, o que não poderia estar mais longe da verdade”.
Abandonar a culpa
Naquela que é provavelmente uma das mais marcantes frases de abertura de um livro, Liev Tolstoi escreve , em “Anna Karenina”, que “todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Mas hoje muitas famílias infelizes também se parecem umas com as outras: os pais, espremidos entre todas as responsabilidades e obrigações, sentem-se infelizes porque se deixam esmagar pela culpa. Sentem que estão em todo o lado e que não estão em lado nenhum.
“Costumo dizer que quando nasce uma mãe, nasce uma mulher culpada”, exemplifica a psicóloga Filipa Jardim da Silva, que também é mãe de Vicente, de três anos. “Não persiste tanto a ideia de renunciar a tudo em favor dos filhos, mas prevalece a ambição de conjugar tudo. As mães de hoje desejam sentir-se realizadas na carreira, a nível familiar, a nível pessoal e na dimensão social. Tudo isto gera pressão nas mulheres que, assim, se sentem permanentemente em falha de forma transversal.”
A psicóloga salienta que muitos pais sentem que ficam sempre aquém do que deveriam ser porque alimentam ideias idealizadas do que é ser progenitor. “Outros culpam-se por todo e qualquer comportamento menos ajustado da criança, seja porque dorme mal, come pouco, corre muito, faz birras ou tem resultados académicos menos bons”, acrescenta.
A esse propósito, Filipa Jardim da Silva deixa um exemplo pessoal: apesar de não ser habitual em si, nos primeiros seis meses de vida de Vicente, recorda que se culpava por pequenas coisas, desde dar suplemento além da amamentação, magoá-lo ligeiramente a primeira vez que lhe cortou as unhas, desejar sair de casa e ter o seu tempo ou até por o filho não ter dormido bem. “Com auto-observação, autocompaixão e conversa interior, fui gerindo tudo isto e recuperei o meu ‘mindset’ habitual alguns meses depois.” Nos últimos tempos, tem sentido também a culpa que os outros lhe tentam imputar. “Há uma expectativa alheia de que o meu filho se porte sempre impecavelmente bem, sendo eu psicóloga. Que não faça birras, chore ou esteja agitado, como se isso me retirasse algum valor ou legitimidade enquanto profissional. Mas, francamente, não posso dizer que compro esta culpa. Essa não é uma expectativa minha.”
Uma ideia final sobre o que é parentalidade suficientemente boa é trazida por Mónica Pinto, que lembra que os pais se modificam e adaptam à criança, tal como o filho também se adapta à família em que nasceu. “Os pais precisam de fazer as coisas que lhes dão prazer, que os fazem felizes, para poderem partilhar essa felicidade. Precisam sentir que a criança se encaixa nas suas vidas com naturalidade, sem gerar ansiedade extrema e sem se anularem como pessoas. Só serão pais felizes se forem pessoas felizes.”