Dão conselhos que os filhos não pedem, interferem-lhes nas relações, criticam-lhes as escolhas, telefonam todos os dias para saber o que é que “os miúdos” estão a fazer. Mas “os miúdos” já têm 40 anos.
A mãe ia atrás dela, de dedo levantado e a abanar no ar, ao mesmo tempo que lhe gritava “Estás na minha casa, fazes o que eu quero.” Clara (nome fictício), que ia em fuga à discussão, com passo acelerado, parou, virou-se e gritou-lhe: “Eu não tenho cinco anos. Não podes continuar a tratar-me como se tivesse.” Foi assim, este verão, aos 46 anos, de visita à casa de infância, numa aldeia da Beira Baixa de onde saiu para estudar na faculdade, que ela começou por fim a ser assertiva e a impor este tipo de limites à mãe.
Já em jovem, quando a visitava em Lisboa, a mãe dizia aquela frase que até hoje a irrita: “Anda cá, que eu vou ensinar-te a fazer isto”. Sendo que “isto”, podia ser estender a roupa “convenientemente” ou arrumar o frigorífico “da maneira certa”. “Sempre me tratou como se eu fosse uma incapaz”, resume Clara. E, continuando a recuar no tempo, recorda-se que em criança, não podia ter vontades nem querer. “Não podia dizer nada. Lembro-me que mordia os dedos para me controlar e não falar porque tinha medo”, confessa. Aliás, ainda hoje tem. Nos telefonemas que dia sim, dia não, faz à mãe, conta o menos que pode. “Tenho sempre medo do que ela me possa dizer.”
Talvez porque a mãe raramente lhe diz alguma coisa agradável. Nestas férias, uma das maiores discussões aconteceu quando Clara decidiu reservar um turismo rural para ir passar uns dias com o marido e os filhos. “A minha mãe fartou-se de ralhar: ‘Mas vais gastar esse dinheiro para quê?’ Como se o dinheiro fosse dela e não meu.” Para a mãe de Clara, qualquer decisão que tome e qualquer escolha que faça é uma afronta. E Clara ri a contar algumas das histórias, mas há um sofrimento por trás do seu riso. “Sofri muito, sim, e continuo a sofrer, com esta maneira de ser da minha mãe.”
Na origem desse tipo de comportamentos, como os da mãe de Clara, estão as próprias dificuldades dos pais. “Tentam criar uma relação de dependência dos filhos em relação a eles pelo medo de ‘já não serem mais necessários’ ou ‘ficarem sozinhos’, alimentando um tipo de amor imaturo”, explica a psicóloga e psicoterapeuta Sara Ferreira. “Para isso infantilizam os seus filhos, na busca de um objetivo: fazê-los continuar a precisar deles.” Para a psicóloga clínica, quem procura controlar os outros está sempre a tentar aliviar um sentimento de falta e um vazio crónico. “Esta excessiva proximidade e dominação dá-lhes a sensação de ‘estarem vivos’, serem valorizados e de ‘permanecerem úteis’, aliviando, assim, disfuncionalmente, o seu próprio stresse.”
Demasiado amor
“Há uns anos, após o divórcio, o meu filho era a única razão de eu existir, de eu viver, de acordar todos os dias. Mas ele ficou cada vez mais distante e eu não percebia porquê. Pensava que estava zangado comigo por me ter separado do pai”, conta Maria (nome fictício), de 54 anos, mãe de Pedro, de 24. Mas a zanga e o afastamento de Pedro estavam longe de ter relação com as decisões que a mãe tomava para a sua própria vida. O problema eram as decisões que ela queria tomar na vida dele.
Maria enumera a longa lista dos seus pecadilhos: ligava-lhe três ou quatro vezes por dia, aparecia na casa dele sem avisar, controlava-lhe os gastos, opinava sobre as relações, ligava à psicóloga do filho para tentar saber coisas sobre ele. “Eu só não queria que ele sofresse”, justifica. E demorou muito tempo a perceber o paradoxo: ele sofria exatamente por causa de todos os esforços que ela fazia para ele não sofrer.
Muitas vezes chamam a estas pessoas “pais tóxicos” ou manipuladores. Pode ser o caso. Mas a intenção da maioria não é mal-intencionada. “Estamos a falar muitas vezes de pais que, como todos os pais, querem dar o seu melhor, e que desejam que os seus filhos consigam vivenciar as melhores oportunidades. Por norma, nenhum pai ou mãe quer deliberadamente fazer um mau trabalho na educação dos seus filhos”, esclarece a psicóloga e terapeuta familiar Sílvia de Jesus Coutinho. E se na origem da necessidade de controlo podem estar muitos fatores – ansiedade, atitude crítica e exigente, sobreproteção e mesmo traços narcísicos -, já o resultado é sempre o mesmo: “São emocionalmente intrusivos, sem terem noção do nível de sofrimento que causam nos seus filhos”, refere a terapeuta familiar.
Essa forma de viver a relação tem consequências para os filhos. Numa ligação emocional saudável e segura, estamos atentos às necessidades do outro, e não apenas às nossas. Mas estes pais tentam dar o que querem dar e não aquilo que os filhos comunicam que precisam. Isso leva as crianças – depois adultos – a sentirem-se sozinhos e incompreendidos. “Crescer sem nos sentirmos aceites, amados, valorizados, realmente vistos ou escutados traz ao desenvolvimento de qualquer ser humano o sentimento de sentir-se abandonado, invisível, sozinho ou não merecedor – de amor, por exemplo”, realça Sílvia Coutinho.
Sara Ferreira alerta que o comportamento de controlo e manipulação emocional “anula e desestrutura o senso de identidade própria, de ‘Eu real’ destas pessoas, fragmentando partes das suas personalidades pela necessidade, cedo aprendida, de corresponder à autoimagem que os pais formaram para eles”. Garante ainda que, não raras vezes, isto cria terreno fértil para o desenvolvimento de perturbações depressivas e de ansiedade e gera um constante sentimento de culpa.
No caso de Maria, foi há cerca de ano e meio que houve uma tomada de consciência, quando o filho iniciou um processo de psicoterapia. “Ele começou a conversar comigo, explicando-me como os meus comportamentos o faziam sentir. Sentia-se deprimido, ansioso e sempre com medo de falhar.” Foi com choque e alguma incredulidade que percebeu como o seu amor claustrofóbico amputava e magoava o filho. “Era o meu menino, e eu pensava saber o que era melhor para ele. Eu controlava, sim, mas não tinha ideia de o estar a controlar. Agora vejo que sofreu e que nunca aprendeu a fazer escolhas, a tomar decisões ou a lidar com as coisas difíceis da vida.”
Um problema que nasce no berço
Há uma característica que todos estes pais que controlam os filhos já adultos têm em comum: começam cedo. Desde sempre. “Os pais constroem uma espécie de mapa da relação com os filhos desde a infância”, sublinha a terapeuta familiar Sílvia de Jesus Coutinho. “É ali, no começo da vida, que são, (in)conscientemente e de forma mais ou menos direta, transmitidas as regras, a conduta, o que é esperado ou não naquela relação e noutras relações.”
Mas depois, por vezes, o comportamento avança pela vida, “não lhes deixando espaço e tempo para que cresçam de forma autónoma e nem sempre permitindo uma independência gradual com o avançar da idade do filho”. Isso quer dizer que apesar de poder haver mais tentativas de controlo em momentos de stresse, como a saída dos filhos de casa, “essa forma de viver a relação sempre esteve lá”, conclui a terapeuta familiar.
No caso de Isabel (também nome fictício), isso era muito óbvio na infância – da qual não guarda memórias particularmente felizes. “Tinha os dias todos definidos e estruturados de acordo com os planos da minha mãe e, se quisesse inserir algo ligado ao que me apetecia fazer, era logo reprimida. Controlava com quem eu podia falar, onde tinha de estar, a fazer o quê. O que me deixava sempre com a sensação de não existir realmente enquanto pessoa”, assinala a arquiteta de 44 anos.
Já ia nos 40 anos, tinha dois filhos pequenos e ainda a mãe continuava a interferir na sua vida, agora usando os netos. “Fazia vários telefonemas diários para saber o que tinha feito para as refeições dos meus filhos, a que horas dormiram ou brincaram. Aparecia sem avisar, abria-me o frigorífico e dizia-me o que devia comprar.” Foi quando começou a fazer psicoterapia, há mais de três anos, que ganhou consciência de como estes comportamentos da mãe, que começaram na infância, lhe moldaram a personalidade e a saúde mental: “Os problemas de autoestima, amor-próprio, o facto de toda a vida me ter sentido ‘inútil’ e incapaz, o que me fez ser sempre uma pessoa muito deprimida e ansiosa.”
“A boa notícia que trago a estes filhos é que estes padrões, tal como foram feitos, também podem ser desfeitos, progressiva, estruturada e saudavelmente”, assegura a psicóloga Sara Ferreira. “Afinal, como adultos, eles agora podem e devem ter um papel ativo a respeito das escolhas e consequências que estão a gerar nas próprias vidas.”
Ou seja, os filhos podem fazer em adultos o que não tinham hipótese de fazer na infância: tomar consciência de que a relação não é saudável, estabelecer limites, não cederem a chantagens, serem assertivos sobre o que querem e o que não querem. Da mesma forma, os pais podem aprender a respeitar estes limites. Mais: como lembra Sara Ferreira, podem aprender que “união familiar não tem de equivaler a asfixia, imposição e desqualificação. Até porque quem ama, faz bem e respeita o espaço e o tempo do outro.”
Isabel aprendeu a fazer isso: impõe limites à mãe e ela respeita-os, ainda que contrariada. Por outro lado, mantém-se atenta para não perpetuar a história, ao repetir inadvertidamente o padrão com os seus próprios filhos. “Vigio a minha conduta e as mensagens que lhes passo. Não quero que eles sofram o que eu sofri.”