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Os estranhos ataques das orcas

Fotos: DR

As orcas são golfinhos, uma das suas 37 espécies, são animais inteligentes, sociáveis, curiosos

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Os encontros não têm sido agradáveis. Pancadas nos cascos, lemes partidos, danos materiais. Desde o verão passado, contaram-se à volta de 50 contactos entre os cetáceos e embarcações nas costas portuguesa e espanhola. Os cientistas estão intrigados com o padrão e com a perseverança. Será por brincadeira? Será uma reação a uma má experiência? Que estranhas interações são estas?

Os alertas começaram a chegar em julho do ano passado. Do mar para terra. Orcas batiam nos barcos, partiam lemes, rachavam cascos, giravam embarcações. O mar num tumulto e longos minutos de desassossego e de medo, corações nas mãos, incompreensão do que estava a acontecer, preocupação pelo que poderia suceder. De repente, tal como haviam chegado, os animais partiam para longe da vista. Atrás de si, um rasto de destruição e várias interrogações. O que se passa no mar? Como explicar este comportamento das orcas em águas portuguesas e espanholas? O que está a acontecer, afinal?
Os relatos começaram no verão de 2020 em quase toda a costa atlântica ibérica, de Gibraltar à Corunha. Em julho, no Estreito de Gibraltar, um barco foi rodeado por orcas que durante uma hora bateram na embarcação que girou 180 graus. Em agosto, um veleiro com bandeira francesa enviou um alerta à guarda-costeira espanhola pelas investidas dos animais. Nesse mês, ao largo da Fonte da Telha, na margem sul do Tejo, um tripulante comunicava às autoridades marítimas que um grupo de orcas tinha batido no seu barco, um enorme susto sem qualquer dano. Uns dias depois, mais a norte, na zona das Rias Baixas, na parte sul da costa da Galiza, perto de Portugal, outro embate num barco, sem prejuízos, e um catamarã da Armada Espanhola ficou sem leme e não pôde participar na regata Príncipe das Astúrias. Em setembro, na costa norte de Espanha, junto à Corunha, um veleiro que ia para o Reino Unido foi rebocado com marcas na popa do barco. Os tripulantes contaram 15 batidas. Em novembro, ao largo de Sines, uma embarcação com três tripulantes foi rebocada pela polícia marítima com o leme danificado. Estava a cerca de 55 quilómetros da costa. Este ano, mais quatro alertas, dois na costa algarvia, mais dois no sul de Espanha, entre as Canárias e Marrocos, mais sustos, mais danos materiais.
Os cientistas marinhos andam intrigados com esta estranha e bizarra atitude das orcas. Tanto assim é que foi constituído um grupo de trabalho internacional informal composto por especialistas em cetáceos, portugueses e espanhóis, em contacto uns com os outros e com diversas entidades dos dois países, estruturas de salvamento marítimo, o ministério espanhol de Transição Ecológica, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), universidades e laboratórios. Os mais de 700 registos de orcas na costa ibérica, nos últimos 20 anos, são uma base de trabalho. Mesmo assim, este é um mistério com pontas por deslindar.

Ruth Esteban é bióloga marinha, trabalha no Museu da Baleia da Madeira, faz parte do grupo de trabalho internacional, estudou orcas durante seis anos em Gibraltar no seu doutoramento. Conhece-as bem e ficou surpreendida com as histórias que chegavam do mar, sobretudo com as repetições. “É um comportamento estranho, mas não pela interação em si, que já é conhecida nas orcas noutras latitudes, mas pela perseverança”, adianta. Os cientistas não usam a palavra ataque, mas sim interações por várias razões. “Conseguimos identificar três orcas, todas juvenis, que podem estar numa atitude de jogo. Os barcos atraem os animais, tocam-lhes, conseguindo reações e até mesmo mover a embarcação, o que é curioso para elas.” Uma brincadeira, um jogo, ou algo mais do que isso? Há várias hipóteses em cima da mesa. “A origem não tem uma clara explicação, bem pode ser um comportamento autoinduzido pela curiosidade ou mesmo por uma má experiência vivida”, adianta a bióloga.

Feridas e cicatrizes no corpo

Até ao momento, foram identificadas três orcas envolvidas nas interações com os barcos e que foram incluídas num grupo específico, designado de Gladis. Atribuiu-se uma cor a cada uma para as distinguir: a branca e a negra, que são as mais ativas, e a cinzenta que aparenta ser mais velha e que normalmente age como cúmplice. Serão fêmeas ou machos imaturos com cerca de cinco metros de comprimento e não pesarão mais de 2300 quilos.
As três orcas têm marcas de cabos e cicatrizes por todo o corpo. A negra tem um corte fundo na cabeça, provavelmente causado por uma hélice de veleiro, e várias marcas no dorso. Há esfoladelas na pele e feridas abertas. O grupo de trabalho mapeou e descreveu as lesões para tentar perceber as origens dos ferimentos e reunir pistas para entender as interações com os barcos. Há suposições, mas não conclusões taxativas para o que está a acontecer no mar.

Francisco Martinho, biólogo marinho, especialista em golfinhos, também integra o grupo de trabalho, e coloca de parte um comportamento predatório, de ataque puro e duro. “As orcas perceberam que conseguem manipular o barco atrás do leme, manipular uma coisa maior do que elas”, aponta. Dominam um barco e uma pancada de orca é suficiente para parar um leme. “Um comportamento de dominância”, especifica. O biólogo compara as orcas aos cães que perseguem os carros, ladram e correm atrás das viaturas, pensando que estão a fugir deles.

“Não é nada que não se conhecesse já. O que é novo é o padrão continuado e as repetições e alguns danos que essas interações provocam no leme das embarcações”, refere Marina Sequeira, bióloga, do ICNF, que integra o grupo de trabalho. O que terá motivado esses contactos das orcas com os barcos continua sem explicação. “As orcas interagem com os lemes e as partes móveis das embarcações. Umas vezes, a interação é mais violenta, poderá ser uma resposta a alguma interação que correu mal. Provavelmente, poderá ter origem nalgum contacto que possa ter resultado nalgum dano ou ferimento dos animais”, observa.

De julho a outubro, registaram-se 33 interações, cinco das quais na costa portuguesa. Danos nos lemes, marcas nos cascos, sinais do contacto com a estrutura das embarcações. No início de outubro, o grupo de trabalho informava que apenas 15% dos contactos com esses animais foram classificados como interações que resultaram em algum tipo de dano – e 20% dos casos tiveram consequências leves que não impediram a navegação. E salientava que, em qualquer uma das interações, as pessoas nunca foram ameaçadas pela atividade direta dos animais, embora tivesse havido algumas situações de risco durante a noite e investidas mais duradouras, devido ao movimento brusco do volante ou giros do barco.

O grupo de trabalho tem vídeos, fotografias, não nas melhores condições, relatos de tripulantes das embarcações, dos incidentes. “Nas 50 interações registadas, nunca a vida das pessoas esteve em risco”, garante a bióloga Marina Sequeira. Os cetáceos são, por natureza, curiosos. “Não é um ataque, é um comportamento estranho que poderá ser potencialmente perigoso porque podem se magoar”, sublinha. Magoar quem está no barco e os animais do mar.

O que fazer? Fugir ou ficar?

As orcas, durante a viagem do Estreito de Gibraltar até à Galiza, no verão e no outono, navegam relativamente perto da costa, essa presença, portanto, não tem nada de estranho. São observadas a passar ao longo da costa na Galiza, pelo litoral português, ao largo do Algarve. Por vezes, veem-se das praias. Esta subpopulação do Estreito de Gibraltar, catalogada como criticamente em perigo, acompanha a migração do atum do Atlântico, o seu alimento. Entram e saem do Estreito de Gibraltar atrás de comida.
As orcas são golfinhos, uma das suas 37 espécies, são animais inteligentes, sociáveis, curiosos. À nascença podem pesar 160 quilos, durante a vida podem atingir nove metros de comprimento, viver entre 50 e 90 anos – a esperança de vida é maior nas fêmeas do que nos machos.

“Os cetáceos, em geral, são animais muito curiosos e é conhecido o comportamento de muitas espécies de golfinhos que se aproximam das embarcações. A atração à parte traseira dos barcos e às estruturas móveis não será, por isso, um comportamento estranho”, refere Marisa Ferreira, bióloga da Sociedade Portuguesa de Vida Selvagem, especialista em mamíferos marinhos, uma das coordenadoras do Centro de Reabilitação de Animais Marinhos Ecomare – Laboratório para a Inovação e Sustentabilidade dos Recursos Biológicos Marinhos da Universidade de Aveiro, que também faz parte do grupo internacional de trabalho.

As suposições remam para o mesmo lado. O que é estranho é a repetição das interações. No caso destas orcas, há um fator adicional, ou seja, o contacto físico com a parte móvel, o leme.

“Não é bem claro qual terá sido o despoletar para o contacto físico com as embarcações e as partes móveis. O que se sabe é que as interações de orcas juvenis com embarcações são habituais no Estreito de Gibraltar. Este comportamento com contacto físico com o leme pode ser uma reação a um evento negativo ou apenas um comportamento induzido pelo interesse e curiosidade das partes móveis”, sublinha Marisa Ferreira.
De qualquer forma, os tripulantes das embarcações contam histórias de medo, pânico, de não saber o que fazer perante os embates das orcas. Ficar ou fugir? “O ideal é não responder”, sugere Francisco Martinho. Tentar fugir agrava a interação.

As recomendações espalharam-se pelas autoridades marítimas para que chegassem ao maior número possível de gente que ia para o mar seja em trabalho seja em lazer. “Parar o motor, parar o barco, não contrariar o girar da roda do leme”, aconselha Marina Sequeira. Reduzir a velocidade, desligar o motor e ficar parado. Desta forma, as interações devem parar. “As orcas perdem o interesse. Se os velejadores continuarem, se há uma reação, a interação continua até que parem o barco”, explica.
A velocidade do barco poderá ser um componente crítico para os animais se for o caso de uma má experiência. No entanto, até ao momento, não há evidências claras para o gatilho de tal reação, para os embates e investidas nos barcos. “Isto agora já não é uma brincadeira, é um comportamento estranho, sobretudo pela perseverança”, reforça Marina Sequeira.

Está tudo em aberto. “Sim, há probabilidade de que aconteça de novo”, diz Ruth Esteban. Marina Sequeira concorda. “Quando isto vai parar? Não sabemos. Não fazemos a mínima ideia de quando isto vai parar. Se o comportamento continuar, provavelmente haverá mais interações.” Por isso, os olhos continuam postos no mar para tentar compreender este enigma sem resposta. Uma brincadeira ou uma reação? Ainda ninguém sabe.