Berardo, o homem de quem se fala, indiciado por vários crimes, detido e libertado. Luís Filipe Vieira detido por suspeita de burla em negócios de cem milhões. Ricardo Salgado tem a justiça à perna, perdeu o estatuto de “dono disto tudo.” Vale e Azevedo esteve preso, mudou-se para Londres, passeia entre os pingos da chuva. Como outros. Empresas, offshores, bancos, esquemas, sacos azuis. E, depois disto tudo, como fica o país?
Aquela gargalhada na comissão parlamentar de inquérito aos negócios ruinosos da Caixa Geral de Depósitos (CGD) estremeceu o país. Joe Berardo, empresário madeirense, 77 anos feitos há uma semana e dois dias depois de pagar uma caução de cinco milhões de euros e de entregar o passaporte para sair em liberdade, garantia que não tinha património e que não tinha dívidas – pessoalmente, não tinha dívidas, o detalhe não passou despercebido. Os portugueses não sabiam se deveriam rir ou chorar. As sucessivas injeções à banca, que saem dos bolsos dos contribuintes, não são operações que se esquecem da noite para o dia. A suposta burla milionária de Berardo, enredada em esquemas, é a que está, neste momento, debaixo de fogo. Mas há outras, várias outras.
A gargalhada ouvida no Parlamento foi em maio de 2019, não parece que passou tanto tempo. Na altura, Berardo queixou-se, por escrito, ao presidente da República pela maneira como havia sido tratado pelos deputados e pela divulgação e exposição na Comunicação Social. Terá mesmo referido violação dos direitos constitucionais. E os 350 milhões de euros que a Fundação Berardo deve à Caixa zoavam nos ouvidos dos portugueses.
A audição parlamentar a Bernardo Moniz da Maia ainda está fresca na memória nacional, aconteceu no final de abril deste ano. O empresário pediu uma fortuna à banca, deu como garantias ações de valor quase nulo, deve 550 milhões de euros ao Novo Banco, é um dos maiores devedores do BES. Não se lembra, não sabe, não responde, não sabe, não se lembra, consulta o advogado. O país assiste a um inexplicável ataque de amnésia entre perguntas sobre milhões e milhões de euros, fundações, empresas, offshores. Não sabe quantas empresas administra, nem sequer como se chamam. Quem não o conhecia, passou a saber. Família Moniz da Maia, uma das mais ricas do país, com uma dívida colossal à banca portuguesa. No Brasil, sabe-se, entretanto, é alvo de suspeitas de lavagem de dinheiro, corrupção e peculato que envolve o projeto de construção do Complexo Cidade das Águas, em Minas Gerais.
Salgado, Ricardo Salgado, o “dono disto tudo”. De banqueiro de fato e gravata, respeitado no país, a homem julgado na praça pública sem dó nem piedade por suspeitas que vão de corrupção ativa a fraude fiscal – ainda teve de convencer a Justiça que não corrompeu José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, para que beneficiasse o poderoso universo Espírito Santo.
Banca, mais banca. João Rendeiro, ex-presidente do Banco Privado Português (BPP), uma vida aparentemente normal apesar de condenado em tribunal, várias aparições na televisão, inspiração do livro “João Rendeiro – Testemunho de um banqueiro”, que conta, segundo a sinopse da obra, a história de “um filho de um casal proprietário de uma sapataria em Campo de Ourique, que do nada chegou ao topo no mundo das Finanças, com negócios em Portugal, Espanha, Brasil e África”. Sinopse que acrescenta: “João Rendeiro é um dos investidores mais ousados e respeitados no mercado financeiro português”. Um livro que transparece a defesa da honra.
Muita água passou por debaixo da ponte, desde então. Há dois meses, e após vários recursos da defesa, Rendeiro foi condenado a dez anos de prisão efetiva. Crimes de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado e branqueamento de capitais, apropriação de forma indevida de dinheiro do banco, entre 2003 e 2008, constam no seu currículo. O ex-banqueiro ficou com cerca de 13 mil milhões de euros do BPP. E a justiça dizia claramente, na leitura da sentença, que se as condenações não fossem exemplares, outros ex-administradores do BPP também foram considerados culpados, a comunidade não compreenderia. Neste momento, Rendeiro tem um recurso no Tribunal Constitucional.
Os calotes, os empréstimos, as garantias
Mais de uma mão cheia de crimes. Berardo está indiciado por burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais, falsidade informática, falsificação, abuso de confiança, destruição de objetos sob alçada do poder público. Os mesmos que pendem sobre o seu advogado André Luiz Gomes, suspeito de ter contornado credores e de fazer desaparecer património. E o país fica a saber que, só a três bancos, há uma dívida de perto de mil milhões de euros. A Associação Coleção Berardo, como entidade coletiva, que controla 19 empresas do madeirense, poderá sentar-se no banco dos réus.
A investigação que levou à detenção do suspeito para interrogatório, há poucos dias, começou em 2016. Berardo passou três dias na prisão, não abriu a boca, sentiu-se mal e teve de receber assistência médica. Sabe-se, entretanto, que declarava uma pensão mensal de cerca de 2500 euros, uma parte está penhorada, qualquer coisa como 1720 euros para viver todos os meses. Aguarda-se, agora, pelo desenrolar dos próximos acontecimentos.
Aos 76 anos, Salgado tem às costas várias acusações, entre elas, três crimes de abuso de confiança por transferências que perfazem mais de dez milhões de euros, no âmbito do processo Operação Marquês, que envolve contas na Suíça e offshores. Contestou tudo isso em 191 páginas e em 173 documentos. O julgamento foi adiado e tem datas marcadas, mas, tudo indica, que enquanto houver pandemia e justificações legais para não colocar o pé no tribunal, Salgado ficará por casa.
O copinho de água que pediu no interrogatório judicial, em janeiro de 2017, andou nas bocas do país. Sempre bem vestido, sempre educado, mostrou toda a sua consternação. “Senhor procurador, devo dizer que estou profundamente chocado, profundissimamente chocado com tudo isto. Nunca vi tanta mentira junta”, afirmou. O pedido não tardou. “O que lhe ia pedir era um copinho de água porque, de facto, este choque que sofri merece.”
Negócios com Benfica, dívidas à banca
Luís Filipe Vieira, detido esta semana no âmbito de uma investigação sobre suspeitas de burla, abuso de confiança e branqueamento de capitais – crimes relacionados com a compra de ações do Benfica, entre outras operações financeiras. Negócios de maisde cem milhões de euros que terão lesado o Estado e ouras instituições, segundo o o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Mas há dois meses o presidente do Benfica e da empresa imobiliária Promovalor desconcertava o país numa audição parlamentar devido às dívidas ao Novo Banco. “Do que eu vivo? Tenho outros negócios, tenho uma boa reforma. Vivo bem. Por acaso, ainda agora veio outra coisa curiosa. Ainda foi reforçada a conta com dois milhões e tal euros que eu recebi do Fisco”, revelou, na casa da democracia. Recorde-se que, em setembro de 2017, a dívida da Promovalor ao Novo Banco era de 227 milhões de euros. No ano passado, Vieira e o Benfica foram constituídos arguidos por suspeitas de fraude fiscal, no âmbito do processo Saco Azul. Em causa, fraudes no IVA e no IRC, milhões de euros de pagamentos de serviços que supostamente nunca foram feitos.
O Parlamento também ouviu Nuno Vasconcellos, ex-presidente da Ongoing, que deve 520 milhões de euros ao Novo Banco. Uma das audições mais curtas de sempre, menos de uma hora, que acabaria com o presidente da comissão parlamentar de inquérito a considerar não haver condições para prosseguir. Fernando Negrão colocou um ponto final. “Ficou claro, diria mesmo de uma forma pública e notória, que o senhor se recusa sistematicamente, e sem explicações plausíveis, a admitir que seja titular de qualquer dívida. Surge, igualmente, claro que não responde a nenhuma pergunta de forma construtiva. E, por último, resulta ainda clara que a sua única preocupação é construir a sua defesa. Nestes termos, em nome da dignidade dos trabalhos desta comissão, eu e todos os senhores deputados entendemos dar por terminada a mesma e, por isso, encerrada esta audição.”
Vasconcellos estava no Brasil, a audição foi feita à distância, deputados na Assembleia da República. Perguntas e respostas, respostas e perguntas. “Não tenho nada a esconder, não agi de má-fé e não posso ter o meu nome entre os responsáveis por levar Portugal à mais grave crise da sua história recente”, garantia Vasconcellos, durante a audição. E aproveitou para esclareceu a dúvida da mota de água: “Outra grande mentira que se conta é que eu só tinha uma mota de água, não é verdade. Eu tinha ativos imobiliários que ficaram no BES e foram avaliados na altura. Posso dizer que tinha 20% de um terreno na Expo, e também era acionista da Fundição de Oeiras, em meu nome pessoal. Nunca tive uma mota de água”. Mariana Mortágua, deputada do BE, acusou-o de ter ajudado “Ricardo Salgado a rebentar com o BES e com a economia portuguesa”. “Deixou um calote no Novo Banco de 600 milhões de euros e tem o desplante de vir aqui falar, do alto da sua moral, sobre a crise e os governos.” Há dias, chegaram novas do Brasil: Nuno Vasconcellos fez saber que quer voltar a Portugal e pagar as dívidas. Por cá, está envolto em suspeitas de corrupção ativa, do outro lado do Atlântico, no Brasil, foi homenageado pela Polícia Militar.
As fortunas, os abusos, as lavagens
Casos atrás de casos, histórias de construção de fortunas que são colocadas a nu. Em maio de 2012, o caso Monte Branco, rede de branqueamento de capitais com operações em Portugal e na Suíça, é tornado público. As notícias continuam, Álvaro Sobrinho, ex-líder do Banco Espírito Santo Angola, é constituído arguido. Neste caso, suspeita-se de lavagem de mais de três mil milhões de euros.
João Vale e Azevedo esteve preso quase quatro anos, somados os vários períodos, por burlas relacionadas com transferências de futebolistas. Acusado e condenado de crimes de branqueamento de capitais, falsificação de documentos, abuso de confiança, peculato. E aquele momento que o país teve dificuldade em perceber: estava preso, saiu em liberdade, voltou para a prisão em 14 segundos apenas. A PJ apareceu com um novo mandado de detenção.
Há pouco mais de três meses, mais novidades, a justiça inglesa desistia de cobrar 60 milhões de euros, o seu processo de insolvência era dado como concluído, 12 anos depois de ter sido declarado insolvente, execuções sem efeito pela incapacidade de recuperar tão elevada quantia. Credores de mãos a abanar, por cá, quase 39 milhões. Agora o advogado e antigo dirigente desportivo, ex-presidente do Benfica, pode comprar o que quiser em seu nome porque nada lhe pode ser tirado.
Vale e Azevedo continua a morar em Londres, para onde se mudou há alguns anos depois de, em Portugal, ter sido emitido um mandado de detenção. No ano passado, o Tribunal de Lisboa tentou notificá-lo através das autoridades inglesas. Em vão, ele não assina, e o julgamento por crimes relacionados com falsas garantias de três milhões de euros em processos judiciais, e de tentativa de burlar o BCP, para obtenção de um crédito de 25 milhões, foi adiado duas vezes. A estratégia não é difícil de perceber, a defesa tenta que o processo prescreva.
Em Inglaterra, é-lhe atribuída a autoria de uma fraude de compra de parte de um banco privado alemão. Pedia dinheiro a investidores, ficava com elevadas quantias, entregava documentos falsos para tentar demonstrar a sua credibilidade – a vida de luxo que ostenta alimenta essa imagem. E talvez ninguém se lembre que, em 2005, Vale e Azevedo foi suspenso da Ordem dos Advogados por, leia-se, “violação continuada, livre e consciente, com dolo direto” e oito anos depois, em 2013, expulso por, leia-se novamente, “falta de idoneidade moral”.
Burlas milionárias. Não são de hoje. Alves dos Reis é apresentado como o maior falsificador português, as primeiras décadas do século XX estão por sua conta. Depois de ter voltado de Angola, e lá foi diretor de caminhos de ferro, tendo falsificado o seu diploma, engendrou um plano e imprimiu mais de dois milhões de notas de 500 escudos de um banco que imaginou para tentar entrar pela porta grande do Banco de Portugal. Queria ser o dono daquilo tudo. Foi preso, passou 20 anos na cadeia, tornou-se pregador evangélico.
Dona Branca, a banqueira do povo, montou um esquema nos anos 80 do século passado. Guardava dinheiro de clientes em sua casa como se fosse um banco, com a promessa de juros elevados ao final do mês. O negócio ruiu, Dona Branca não conseguiu segurar o esquema, muitos perderam as suas fortunas. Acabou presa.
Burlas milionárias. As teias são complexas de deslindar, os novelos difíceis de desenrolar. Investigações, suspeitas, interrogações, audições, notícias. E tantas respostas por dar, tantos esquemas por esclarecer.