Valter Hugo Mãe

Os bichos


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Este cão olhou-nos com ar de quem poderia falar. Houvesse maneira de organizar aquelas cordas vocais, este cão saberia o suficiente acerca da gratidão no simples instante em que lhe fiz uma festa na cabeça e, por tristíssima esperança, sorriu.

Apareceu o mais gentil dos cães no nosso jardim, abeirando-se muito manso, a pedir um carinho. Enquanto eu passeava o Crisóstomo, o meu rafeiro sempre preocupado com fazer chichi, o outro veio alegre a cheirar tudo. Julguei que o dono estivesse por perto. Era claramente um animal educado, cheio de hábitos domésticos. Depois, veio o rapaz vizinho dizer-me que estava a sangrar das patas. À pouca luz da noite, eu não havia reparado. Deixava o sangue nos passeios ao caminhar.

Foi a Rosinha e o filho quem lhe lavaram as patas, e ele esteve paciente e grato. Eu comecei a fazer telefonemas. Àquela hora de domingo, quem haveria de acolher o cão mais gentil do Mundo, ferido daquele jeito? O Hospital Veterinário de Vila do Conde informou que a competência, em horário laboral, seria do canil municipal. Naquele caso, deveria ser solicitada ajuda à GNR. A GNR informou que ajudavam quando podiam, o que não fazia o assunto da sua competência. E perguntou onde estava o bicho. Eu disse que nas Caxinas. Respondeu-me que, então, era coisa da competência da PSP. A PSP informou que ajudavam quando podiam, o que não implicava terem competência para o fazer. E eu perguntei: e quando ajudam fazem o quê? O agente explicou que levavam os bichos para o Hospital Veterinário, que é privado, onde entrei uma vez a meio da noite com o meu cão, por 15 minutos e um comprimido paguei 90 euros.

A PSP disse que eu poderia esperar que aparecesse alguém à minha responsabilidade. O mais certo era não aparecer ninguém. No dia seguinte, se o cão continuasse por aqui, melhor seria ligar para o canil.

O veterinário diz que os cães que aparecem a sangrar das quatro patas correram atrás dos carros dos donos que os abandonaram. São animais que correram desesperados para não se perderem do caminho para casa, cientes de que vão ser deixados para trás mas suplicando que os levem de volta. Infeliz e horrendamente, são mais e mais à chegada do verão.

Eu queria muito dizer à pessoa que abandonou o cão mais gentil do Mundo que aqui ela é o animal. Se alguma coisa na sua vida, certamente na vontade de ir fazer umas férias, impede que tenha um cão, há modos civilizados de o hospedar ou ceder para sempre. Obrigar um bicho a rebentar as patas em sangue, penalizando-o fisicamente quando já lhe oferecem o desamparo absoluto, é desumano.

Este cão olhou-nos com ar de quem poderia falar. Houvesse maneira de organizar aquelas cordas vocais, este cão saberia o suficiente acerca da gratidão no simples instante em que lhe fiz uma festa na cabeça e, por tristíssima esperança, sorriu.

Espanta-me que o mundo dos adultos precise de educação para as coisas mais simples, como se fosse apenas uma multidão de crianças com empregos e praias adiadas. Espanta-me que não se saiba a diferença entre o razoável e a pura crueldade. Em toda a parte existem canis e gatis para acolher animais de que não se pode mais cuidar. Se no verão odeiam animais, não os magoem, não os matem. Entreguem-nos. Mantenham-se humanos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)