Montam-se e desmontam-se estruturas todos os dias como num circo. São mais de 50 camiões TIR, mais de 700 pessoas na caravana, 60 furgões em terra e um helicóptero no ar. A organização tem tudo preparado, cada equipa sabe o que fazer, a máquina está oleada, há planos sanitários. A 82.ª Volta a Portugal em Bicicleta começa esta quarta-feira e anda na estrada até dia 15.
Por volta das cinco da manhã, a equipa de sinalização da Volta a Portugal em Bicicleta estará pronta a sair do hotel, levará o pequeno-almoço em caixas para ir afagando o estômago pelo caminho, porque à hora a que se levanta ainda não há serviço da primeira refeição a funcionar. Pouco depois, fará a etapa desse dia que já conhece de trás para a frente, da frente para trás. A tarefa é meticulosa, sinalizar o percurso, colocar a sinalética, setas, curvas à direita, curvas à esquerda, seguir em frente, avisos de perigo, metas volantes, prémios de montanha, zonas de abastecimento, e outros sinais feitos à medida. Assim será todos os dias da Volta. E, a cada noite, um novo hotel.
São cerca de três mil placas personalizadas da Volta, oito pessoas na equipa, dois furgões à frente, outro atrás do carro-vassoura para recolher os sinais depois de cada prova. No final, os oito encontrar-se-ão para preparar o dia seguinte, separar material, arrumar placas. O plano está traçado, o grupo a postos. A 82.ª edição da Volta a Portugal em Bicicleta arranca quarta-feira, 4 de agosto. São 1562,2 quilómetros, 19 equipas, nove das quais portuguesas, cerca de 140 ciclistas, um prólogo, dez etapas. E muito trabalho pela frente.
Uma etapa de 200 quilómetros pode demorar dez horas a sinalizar. “Para que a caravana passe e não se engane”, explica Nuno Alves, coordenador da equipa de sinalização que se fará à estrada ainda o Sol não terá nascido e que andará adiantada duas a três horas, à frente dos ciclistas. “Costumo dizer ao pessoal da sinalização que é preferível chegarmos três horas antes do que um minuto atrasados.” São muitas placas, muita informação. “Saímos cedo para que o serviço fique feito e, se houver algum percalço, temos margem para resolver.” Há menos trânsito na estrada, trabalha-se melhor. E nenhum sinal pode estar fora do lugar.
Vasco Empis, um dos administradores da Podium, entidade que organiza a Volta e que detém direitos exclusivos até pelo menos 2025, tem tudo na cabeça: números, logística, equipas, planos, passo a passo. “É uma coisa que não tem fim.” São mais de 50 camiões TIR, três deles cheios de garrafas de água, 60 furgões, mais de 700 pessoas na caravana, 25 pessoas a montar ferro e três eletricistas nas partidas, uma dúzia de geradores com várias potências, equipa médica com três ambulâncias e três carros ligeiros, entre cem a 150 pessoas na montagem das baias de publicidade das marcas, dez seguranças no final das provas, dez pessoas no gabinete de imprensa e secretariado que tratam dos conteúdos e alimentam em permanência redes sociais e várias plataformas, cerca de 25 mil acessos entre entradas e pulseiras, mais de 70 barris de cerveja de 50 litros cada, quase 15 mil latas de refrigerantes no total, 14 arcas frigoríficas nas chegadas, vários veículos das forças de segurança nas partidas e chegadas.
“É evento atrás de evento e o planeamento de cada sítio é fundamental”, adianta Vasco Empis. “São 22 plantas de implementação da Volta. Um trabalho colossal”, acrescenta.
Cada equipa tem a sua função, executa tarefas, resolve problemas, procura soluções. Paulo Quintino é responsável pelo planeamento e logística de montagem e desmontagem das partidas e chegadas da Volta. Há sempre muito trabalho para a equipa composta por eletricistas, serralheiros, carpinteiros, técnicos de som, informáticos, mecânicos, entre outros.
Amanhã, segunda-feira, Paulo Quintino andará pelas imediações do Centro Cultural de Belém e do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, a preparar o arranque da Volta. É preciso isolar a zona, colocar barreiras de proteção, tratar da segurança para a primeira partida. Terça-feira é dia de apresentação das equipas na Praça do Império.
“O circo é cada vez maior, hoje monta-se, amanhã desmonta-se, e vai-se para outra cidade. É andar com uma logística todos os dias de um lado para o outro”, realça. É necessário conhecer os lugares como a palma das mãos, saber o que se pode e não se pode montar, se há uma árvore aqui ou ali, se não há condições, então verifica-se outro local. Tem de estar tudo tratado. “Numa chegada, é necessário ter em atenção a segurança de corrida dos atletas, atenção às barreiras de proteção, com o mínimo de risco para o público”, observa Paulo Quintino.
Falta pouco mais de uma semana, Joaquim Gomes, nome maior do ciclismo, referência nacional e internacional, diretor desportivo da Volta, acaba de receber informação da logística e dos layouts por onde a Volta passará, seguem-se contactos com municípios, forças de segurança, proteções civis, bombeiros, uma série de entidades. Anda a pé 14 horas por dia e o telefone não pára de tocar.
Joaquim Gomes sabe de cor as entidades a contactar, informar, pedir pareceres, esperar pelas indicações, refazer se for preciso, garantir todos os requisitos. A lista é extensa. Comando da GNR, Direção Nacional da PSP, Infraestruturas de Portugal, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil. E muitas outras.
A Volta tem várias frentes, diversas componentes, detalhes que escapam à vista quando os ciclistas andarem na estrada. “O importante é que o evento exista e que seja colocado no terreno com a dignidade que merece”, salienta Joaquim Gomes. A burocracia inerente a uma iniciativa desta dimensão é uma enorme trabalheira. São conversas constantes com os municípios, e são 70. “Os municípios têm um peso fundamental no percurso da Volta.” Telefonemas diários com as forças de segurança, pois, como é um evento na via pública, é necessário garantir proteção máxima em toda a mancha territorial e são mais de 15 mil quilómetros. Tudo ao pormenor, tudo salvaguardado. E um enorme stresse que aumenta de intensidade à medida que a Volta se aproxima do início. Formalizar isto, formalizar aquilo, contacto para ali, contacto para acolá. Joaquim Gomes está habituado, mas, a cada Volta, tem os cuidados de sempre. Nada pode falhar. “Há sempre um estado de alerta, mesmo quando tudo está a correr bem”, confessa.
Louça de barro, guardanapos de pano
Os dias para a Volta começar contam-se pelos dedos das duas mãos e Nuno Alves está a caminho de Viseu, onde a Volta termina a 15 de agosto, para mais um reconhecimento do terreno. De manhã fez o caminho da prova de montanha da Senhora da Graça, marcada para o penúltimo dia. Tem de verificar se está tudo em ordem, se há troços em obras e se estarão concluídas a tempo, caso contrário, tem de pensar em alternativas. É a oitava Volta de Nuno Alves que prefere não fazer muitas mexidas na equipa de sinalização. Percebe-se porquê. “Para a equipa estar habituada, não rodamos muito.”
O percurso é passado para um papel, faz-se um rascunho, e Nuno Alves faz o trabalho de casa. “Temos de fazer o levantamento e fazemos o reconhecimento. Uma semana antes, faço novamente o reconhecimento do percurso.” O trabalho em equipa é fundamental.
A parte alimentar da Volta está nas mãos da chef Maria Fernandes Thomaz, responsável pelo projeto iCook, empresa de catering. Será ela a comandar à distância todas as operações com serviço requintado porque assim é a sua forma de trabalhar. Há seis anos que trata da alimentação da Volta. “É muito trabalho de logística, é um desafio giro.”
Os almoços da Volta são servidos em louça de barro ou de cerâmica branca, normal, nada de pratos e copos descartáveis. Os guardanapos são de pano, as toalhas ao estilo piquenique, copos de vidro. A decoração vai variando para não ser sempre igual. As refeições são cozinhadas em Lisboa, transportadas todos os dias numa carrinha de frio que normalmente se faz à estrada pelas cinco da manhã, os acabamentos são feitos em tendas amovíveis com os aparelhos necessários. O menu é composto por comida tradicional portuguesa. Pode ser um gaspacho ou um bacalhau com broa, coentros e batatinhas.
Todos os dias, nas partidas, há uma feira de animação com patrocinadores e brindes, o Clube da Volta para convidados, patrocinadores, autarcas, figuras públicas, com refeições e interações com ciclistas. O clube da corrida tem 12 carros com convidados que acompanham a prova em televisões nas viaturas e através das transmissões que são feitas via rádio da organização da Volta. No local da chegada, mais uma feira de animação, dois ecrãs de leds gigantes, outro Clube da Volta com serviço de catering e de bar, ventoinhas para arrefecer nos dias de calor. Na cerimónia do pódio, 18 hospedeiras para o momento sempre especial, entrega de prémios, transmissões em direto pela RTP que tem equipas constantes no terreno, motas em terra e um helicóptero no ar, e ainda uma grua de 30 toneladas para garantir sinal de satélite na reta da meta. Sempre a filmar. A 9 de agosto é dia de descanso, na véspera há concerto dos Capitão Fausto no centro da cidade da Guarda. Antes disso, um evento para amadores maiores de 16 anos que podem fazer a etapa da véspera, e ainda há almoço para convidados e comunicação social.
Três meses de preparação
A lufa-lufa começa três meses antes, a azáfama intensifica-se com o aproximar do arranque. São 14, 15 horas de trabalho por dia. “Come-se à pressa, dorme-se o que é possível”, diz Paulo Quintino. “Tem de estar tudo muito bem coordenado e preparado antecipadamente.” Do mais simples ao mais complicado. Reconhece-se o terreno e volta-se ao mesmo percurso as vezes que forem necessárias.
São cerca de três mil barreiras nas partidas e nas chegadas ao longo de cerca de quatro quilómetros. A publicidade de estrada, as baias de publicidade das marcas e patrocinadores são quase 900, há uma ordem a respeitar, contratos e compromissos assumidos, um excel com tudo direitinho, indicações ao milímetro. É preciso gerir expectativas, acautelar o maior retorno possível para os patrocinadores que investem na maior festa do ciclismo nacional. Cálculos de anos anteriores dão conta de mais de quatro mil notícias nos média, mais de sete mil publicações nas redes sociais, cerca de 107 milhões de retorno mediático em 2019.
Paulo Quintino avisa que é preciso a máxima atenção. “Temos pessoas, temos máquinas, temos materiais, e temos de estar com atenção a tudo.” Sempre aquela preocupação para que tudo corra bem. “Se as máquinas falham, temos sempre de ter uma solução.” Há sempre qualquer coisa a melhorar, a ajustar. O responsável pelo planeamento e logística de montagem e desmontagem tem a certeza de uma coisa: “Ninguém consegue fazer isto sozinho, tem de haver uma grande equipa por trás”. A comparação é incontornável. “Ninguém ganha uma Volta a Portugal ou uma prova sozinho, tem de ter uma equipa.” Essa é, na verdade, uma lição do ciclismo.
A Volta a Portugal é um popular e importante evento desportivo de verão. Não há dúvidas. “Há um conjunto de pessoas que atuam na sombra do espetáculo, são o sustentáculo de um evento muito complexo. Se tudo correr bem, ninguém vai ouvir falar deles”, afirma Joaquim Gomes, que sabe do que fala. Quem o acompanha, nestes dias, é uma extensão de si. “São o meu braço direito, o meu braço esquerdo. São tudo.” Pessoas focadas, dedicadas, que sabem o que têm de fazer. “É um molho de gente que me permite dizer com todo o orgulho que contactamos, direta ou indiretamente, com mais de 2500 pessoas.”
A Volta tem as suas características, acontece na via pública, só por isso, requer muitos cuidados. “Está sempre sujeita a imponderáveis.” É preciso reagir, resolver qualquer eventualidade. Veículos indevidamente estacionados, uma zona que pode estar a arder e é preciso fazer atualizações constantes por causa do percurso, um qualquer imprevisto que possa virar do avesso o que está traçado. A organização anda munida de uma pasta de contactos com toda a gente envolvida, todas as entidades, com todos os números e mais alguns. “Em três ou quatro minutos, pode-se fazer muita coisa.”
Joaquim Gomes tem 18 Voltas nas pernas, sabe o que é pedalar na estrada, sabe o que é estar do outro lado, na organização. A sua cabeça não pára, simulacros que lhe passam à frente dos olhos, preocupações, dias de cinco horas ao telemóvel, durante a Volta sempre ligado ao rádio por onde se circulam informações e indicações da organização, os olhos quase não pestanejam. “O stresse é o que nos faz correr nas veias a adrenalina.” Lá para o terceiro dia, começa-se a respirar melhor, a desfrutar da Volta, admite.
Os sobressaltos da Volta: os planos sanitários
No ano passado, não houve Volta tal como é conhecida, com a dimensão e magnitude do costume, por causa da pandemia. Este ano, muitas horas à volta dos planos sanitários e um pormenor fruto das circunstâncias: uma bolha sanitária para ciclistas. Álcool-gel para todo o lado, máscaras, zonas de máxima segurança, a tal bolha sanitária onde só determinadas pessoas, como os ciclistas, podem entrar, para testar, testar, testar. “Cuidados redobrados”, sublinha Paulo Quintino. Este ano, o Giro de Itália e a Volta à França mostraram que é possível eventos desta dimensão acontecerem, apesar do contexto. É preciso que todos se portem bem. “O dinamismo negativo da pandemia atrasa o trabalho preparativo da Volta”, comenta Joaquim Gomes. “Mas com uma certeza: havemos de estar prontos.”
Duas semanas antes de a Volta começar, está tudo definido, a equipa de logística anda pelo armazém instalado em Mafra a confirmar que está tudo tratado e no terreno a ver se está tudo e ordem, a receber os brindes deixados pelas marcas, está ainda a estudar a colocação de camisolas insufláveis gigantes de um dos patrocinadores nos últimos 40 quilómetros na prova de montanha, é preciso avisar a RTP por causa do plano de voo do helicóptero, e sucedem-se reuniões e reuniões com autoridades de saúde, com a Direção-Geral da Saúde por causa do contexto pandémico. “O que está a causar um enorme trabalho inglório”, vinca Vasco Empis. Proteger quem participa na prova em bolhas sanitárias, proteger a população como for possível, a organização sempre equipada como mandam as regras. “É um evento todo ao ar livre, temos esta questão que não é fácil. O que nós não dominamos é a parte mais chata.”
Quase uma semana antes, a organização estava a entregar três planos sanitários num dia, faziam-se contas aos gastos da equipa médica que poderiam passar de 40 mil para mais de cem mil euros. Vasco Empis tem tudo na cabeça, da preocupação com os pormenores à satisfação dos patrocinadores que se querem contentes e orgulhosos. O retorno de um evento que representa 3,5 milhões de euros é importante.
A Volta começa em Lisboa, termina em Viseu, tem cinco finais em montanha – Torre, Guarda, Santo Tirso, Montalegre, e a mítica Senhora da Graça no penúltimo dia. Maria Fernandes Thomaz tem uma equipa para assegurar os almoços nas chegadas e outra equipa para o mesmo trabalho nas partidas para convidados. Cada uma com uma carrinha de frio. São 13 funcionários, seis para um lado, sete para outro, andam em carros separados, ficam em sítios diferentes, cruzam-se apenas no dia do descanso e aí almoçam juntos. Em 2019, foram servidos entre 120 e 180 almoços por dia. Este ano, serão menos por força das restrições da pandemia.
Afinam-se pormenores, eliminam-se gorduras. O objetivo é evoluir, sempre. Maria Fernandes Thomaz não descuida detalhes. Há sempre um toque diferente e especial na apresentação do que serve à mesa. A Volta não podia ser exceção. Há que ter atenção que se trata de um evento ao ar livre, em espaços vedados, estruturas que se montam e desmontam todos os dias, acessos mais simples ou mais complexos. “A Volta é um evento desportivo único, é um orgulho poder participar, é diferente de tudo o resto que fazemos.” Apesar de todo o trabalho e canseira nas primeiras semanas de agosto, é um evento único, que dá um gosto especial organizar. E um certo brilho no olhar.