
Perder uma amizade de forma abrupta pode ser tão ou mais duro do que o fim de um relacionamento amoroso. Crescemos a acreditar que são para a vida toda e criamos expectativas irrealistas.
Já perdeu algumas amizades, os 58 anos de vida não carregam só histórias felizes. Isabel Costa encontrou uma explicação para tirar peso às agruras e desilusões: “O universo acaba sempre por nos retirar quem não interessa. E mesmo essas pessoas têm um papel importante na nossa vida, para aprendermos”. Tem o coração na boca, voz grave, fala acelerada, veio miúda para Portugal. Tinha 12 anos, acabada de chegar de Luanda, Angola, na altura da descolonização. “Como perdi todos os meus amigos de infância, sempre valorizei com muita ganância e dedicação as amizades. E sou ciumenta dos amigos.” Talvez por isso some desgostos.
Uma amiga, quatro décadas de relação a irem por água abaixo, “por uma estupidez, uma coisa de nada”. Sabe-o, mas não dá o braço a torcer. “Ela foi das primeiras amizades que fiz quando vim de África.” Isabel organizou a casa, preparou-lhe uma festa surpresa, a amiga fazia 60 anos. Convidou os amigos, a família, há anos que passavam o aniversário juntas. Desta vez, ia ser em grande. Mas a amiga faltou à festa, “para ir ter com outros amigos que estavam desavindos com ela”. “Expliquei a situação ao telefone e perguntei-lhe se tinha mesmo que ser naquele dia, ela disse que sim. O meu marido tinha feito direta do trabalho, o dia todo enfiado na cozinha, a receber os amigos e família dela, e depois um desfecho destes.” Isabel não conseguiu perdoar, chorou muito, há dois anos que não vê nem fala com a amiga de uma vida. O embate custou-lhe, mas arregaçou rápido as mangas. “A vida segue. Há quem venda lenços de papel e há quem chore. Eu prefiro vender lenços de papel. Faço a minha psicanálise caseira”, brinca.
Ficou de pé atrás, já não se entrega da mesma forma. E na mala traz desgostos mais antigos. Como quando abriu as portas de casa a uma recém-amiga que estava com dificuldades financeiras. “Tenho a mania que sou a Madre Teresa de Calcutá. Quis ajudar. Ela fazia tudo connosco, vivia, comia, ia às compras, íamos jantar fora, até de férias. Os meus filhos chamavam-lhe tia.” Mas a amiga acabou a assaltar-lhe o cofre e a sair de sua casa sem grandes explicações. Quando deu conta, Isabel sentiu-se defraudada. Muitos anos depois, já foi capaz de perdoar e enviar-lhe mensagem a desejar-lhe tudo de bom. “A vida ensina-nos.”
A reciprocidade, as expectativas e a desilusão
Os amigos são a família que escolhemos e quando uma amizade acaba pode ser tão ou mais duro do que o fim de uma relação amorosa. Rute Agulhas, psicóloga, defende que as relações de amizade “são um pilar muito importante para o nosso bem-estar psicológico”. “Muitas pessoas pensam nas relações amorosas como mais instáveis, começam e acabam, e namorados/as há muitos/as. Contrariamente, pensam nos amigos como mais estáveis e para a vida toda, pelo que o fim destas relações pode ser muito doloroso.”
Na idade adulta, “quando são, de facto, amizades, com proximidade afetiva, ajuda mútua, reciprocidade, compreensão e confiança, existem determinadas situações que podem ser muito difíceis de tolerar e que podem conduzir ao seu fim”. Casos de engano, deslealdade, traição da confiança. “Mas também sentir-se traído no sentido de ‘eu pensava que podia contar contigo para tudo e, afinal, não posso’.” É a desilusão, o defraudar de expectativas e, uma vez terminadas as amizades na fase adulta, dificilmente são retomadas. Certo é que não é comum bater-se à porta do psicólogo com um desgosto de amizade. “As pessoas não pedem ajuda por este motivo em concreto, mas pedem muitas vezes pelo impacto que este tipo de situações tem na sua vida, nomeadamente a sensação de solidão e a perda de apoio social, com quadros ansiosos e depressivos”, assegura a psicóloga.
Para a socióloga Emília Araújo, “o conceito de amizade é muito romantizado e espera-se demasiado dos outros”. Aliás, o italiano Francesco Alberoni, autor do livro “A amizade”, alerta precisamente para o facto de o conceito ser relativo e isso influenciar muito a forma como as pessoas vivem as relações. A professora de Sociologia na Universidade do Minho ainda traz para cima da mesa a sociedade moderna e ocidental, que se desenha em cima da “ligeireza e da liquidez”. “As pessoas estão demasiado absorvidas nas suas vidas, no seu dia a dia, no seu trabalho, com pouco tempo para falar sobre o que pensam e sentem com os outros. Por outro lado, é uma sociedade que tem muitas hipóteses de escolha, muitas alternativas, e muito móvel.” A confiança demora muito tempo a ser estabelecida e “em caso de rutura, de perda do outro, as pessoas vão sentir-se muito perdidas”.
É por isso que alerta para o papel que a escola e a família devem ter na preparação das crianças e dos jovens para aquilo que é, afinal, ser um bom amigo. E agora também no contexto das redes sociais, “para que não tenham um conceito completamente desviado e evitem desilusões”. E dá uma dica: “Na Sociologia, definimos amizade como relações em permanente construção, negociação. Há sempre reciprocidade, há um dar e um receber”.
As ruturas na turbulência da adolescência
Maria (nome fictício) conheceu Ana por volta dos 15 anos. Num ápice, tornou-se numa das suas melhores amigas. “Não era uma amiga de longa data mas a ligação era forte, éramos confidentes, frequentávamos a casa uma da outra, saíamos juntas, almoçávamos e jantávamos vezes sem conta.” Em pouco tempo, Ana tornou-se na pessoa que mais sabia da sua vida. Pelo caminho, Maria negligenciou outras amizades mais longas e sólidas. “Pelo encantamento de ter uma amiga nova e alguém para conhecer. Ajudei-a em diversas situações: ora com os pais, ora com namorados ou com amigos. Não éramos da mesma turma, mas passávamos os intervalos juntas.”
Ana foi o apoio de Maria, hoje com 30 anos, quando o namorado decidiu acabar a relação, tinha ela 16. “Foi o meu primeiro amor. A Ana sabia tudo sobre ele, sobre mim e sobre nós. E foi tantas vezes o meu ombro amigo. Era ela que estava ali, para me consolar.” Mas, poucas semanas depois do fim do namoro, Ana manteve contacto com o ex-namorado de Maria. “Notei uma aproximação estranha entre os dois, na altura, não me apercebi logo até onde ia aquilo. Vim a saber que se tinham envolvido e lembro-me que no pico da minha adolescência aquilo soube-me à pior traição de sempre. Ainda me recordo da dor que senti.” Esteve uns dias sem falar com os dois e ainda reatou uma amizade condenada ao fracasso. “Percebi, meses mais tarde, que nem ele gostava de mim nem ela era minha amiga. Cortei definitivamente os laços.”
A fase, que coincidiu com a turbulência da adolescência, foi dolorosa. Na verdade, naquela altura, eles pareciam-lhe as pessoas mais importantes da sua vida. Mas foram, afinal, os amigos de longa data que salvaram Maria. “O meu maior medo era tornar-me desconfiada, ciumenta, controladora ou não voltar a confiar em ninguém. Felizmente, não aconteceu, encarei como uma situação isolada. E fez-me perceber quão resistentes têm de ser os laços entre dois amigos para se chegar a uma situação de confiança plena.”
Segundo David Neto, psicólogo e psicoterapeuta, “é na adolescência e no início da idade adulta que as amizades adquirem um papel muito central na vida, em parte porque há um afastamento dos pais e porque não há uma relação amorosa permanente”. Só que as amizades, como tudo na vida, mudam e evoluem. “No caso dos jovens, acontece muito crescerem em sentidos diferentes e acabarem a seguir direções distintas.” Mas quando as ruturas são abruptas, o psicoterapeuta admite que se trata de “um processo de luto”. “No fundo, há uma tristeza, um sofrimento. Se não existirem sentimentos de culpa e desvalor exagerados, a tristeza é um sentimento natural associado a uma perda. Não há ligação sem dor.”
Mas a adolescência e a juventude também trazem um quê de flexibilidade à vida. “Quando as amizades acabam nesta fase, os motivos são mais superficiais, atendendo à menor maturidade. Um amigo que começa a sair com outras pessoas e que nos parece preterir é o suficiente”, exemplifica Rute Agulhas. Contudo, a impulsividade em cortar laços também entra na hora de os retomar. “Os adolescentes tomam decisões menos refletidas e, muitas vezes, percebem que terminaram uma amizade de forma precipitada e voltam atrás.”
Superar sem culpabilizar ou dramatizar
E quando o fim se aproxima, como superar? “Antes do fim definitivo da amizade, é sempre possível as pessoas reorganizarem as suas relações. Passar de um melhor amigo para um amigo menos próximo”, diz o psicoterapeuta David Neto. Só que, quando isso não é hipótese, há uma regra simples: não dá para substituir uma pessoa por outra. “No geral, o apoio social é uma coisa boa. O facto de falar, ter o apoio de outros amigos, sair, é algo positivo, bom para o bem-estar. Mas isso não deve ser visto como uma receita.” E é importante tentar mudar a perspetiva para evitar repetições. “Há pessoas que têm noções muito rígidas e absolutas de lealdade e amizade e isso acaba por ser uma vulnerabilidade, por tornar a pessoa propícia a este tipo de desilusões.”
A socióloga Emília Araújo subscreve: “as pessoas são insubstituíveis” e vamos ter sempre memória de quem passou pela nossa vida, para o bem e para o mal. “Está em causa a capacidade individual para superar a frustração e a perda. Temos de estar preparados para viver estas ruturas sem nos desestruturarmos.” E há dicas práticas? A psicóloga Rute Agulhas diz que sim. “É muito importante que as pessoas possam olhar para estas situações de forma realista, sem personalizarem (‘a culpa é toda minha’), dramatizarem (‘isto é horrível e não vou aguentar’), fazerem atribuição externa (‘a culpa é toda do outro’) ou pensarem que isto se deve a um defeito seu (‘eu não presto, ninguém gosta de mim e nunca ninguém irá gostar’).”
O segredo é combater formas distorcidas de ver a situação. “É preciso investir noutras relações que nem sempre são devidamente cuidadas e mimadas, tentar conhecer novas pessoas e envolver-se em atividades geradoras de prazer.” E porque errar é humano, a possibilidade de retomar a amizade, pedindo desculpas ou aceitando-as, não pode ser carta fora do baralho. “Por vezes, os fins também se devem a mal-entendidos, a dificuldades de comunicação que importam resolver.”