Orações a S. João e S. Pedro (e o alegado molestador)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Há 15 dias, no dia de Santo António, contei o caso de uma menina capturada entre os ódios e acusações da mãe e do pai*. Metade da manhã foi então passada com os esforços da juíza – incluíram videochamada WhatsApp para hotel de Madrid, onde o homem, R., estava retido em quarentena – para chegarem a acordo. Falhou e agora ali estava o homem no tribunal, desconfinado, na sua calma (qual calma, controlo da raiva…), mas a juíza continuou: em nome do superior interesse da criança, menina de seis anos, deviam chegar a acordo. Nada: na acusação estava escrito que a mulher e a mãe dela, avó da menina, tinham chamado “monstro violador” ao pai, num café. Em sentença anterior de violência doméstica, o homem ficara a dever 5 mil euros à mulher. Agora, era ele quem exigia pedido de desculpas e, no mínimo, 1 500 euros.
O julgamento começou com o dono do café, fossem todas as testemunhas pessoas deste bom senso. Disse que foi há quatro anos e ele preparava almoços na cozinha. A mulher chamou-o à sala.
– Vejo o R. com uma criança ao colo. E duas senhoras com papéis na mão. Percebi que era a mãe e a avó da menina. Estava tudo exaltado, os clientes meio molestados. Depois a dona R., a mãe, fez ali umas acusações que deixaram toda a gente… A gente vê tanta televisão, tanta coisa, que não sabemos o que se está a passar. Eu disse-lhe: só sais daqui quando vier a Polícia.
R. queria ir para casa. Os homens agarraram-no.
– Que palavras é que disse?, começou a procuradora.
– Eu tenho a custódia e este senhor já molestou a criança.
– Não usou outras palavras?
– A palavra foi molestou e por essas e por outras eu entendi que a Polícia é que tinha de tomar conta da ocorrência.
– Não disse mais expressões?
– Não, foi que ele já tinha molestado a criança.
– Não foi dita nenhuma palavra mais grave?
– Não, foi molestar.
Monstro violador é mais grave do que dizer molestar.
– A criança começou a chorar. Ficou nervosa. Eu, como tenho também uma criança de idade semelhante, disse-lhe que podia ficar com a criança noutra sala para ficarem as duas meninas a brincarem uma com a outra. Mas ele recusou.
– O R. disse alguma coisa?
– O R. estava branco. Mas, no fundo, não mostrou violência. Acho que ele até manteve bastante calma. Não me lembro de grandes respostas. Só me lembro da face branca.
Seis pessoas dentro do restaurante a ouvirem as acusações. Outras tantas que vieram da rua com os gritos e o seguraram à porta.
– Às vezes, no calor, as pessoas dizem coisas mais graves… Violou ou qualquer coisa mais grave…, disse a procuradora.
– Não, doutora, tenho a certeza de que a palavra foi molestar.
Quando R. entrou, deu-se uma novidade. Pediu para falar com a advogada. A seguir ela disse que ele estava disposto a aceitar as desculpas. Foi então que a advogada da acusada se convenceu de que ele só vinha com tanta boa vontade porque escutara o testemunho do dono café, ilegalmente, encostado à porta da sala, ou mesmo que a advogada lho enviara por SMS. Porque de “violador” passava a simples “molestador”. A advogada de R., ofendida, deu a sua palavra de honra que não. Começou um pingue-pongue ridículo. A defesa da mãe queria arriscar a sentença.
E, pela paz, a juíza voltou à guerra, atacando a defesa:
– Agora é uma birrinha? Olhando agora aqui para o que foi dito, não percebo como é que pensa que isto está encaminhado para uma absolvição. Eu não estou a ver isso.
– Aceitamos se baixar para 750 euros.
– Eu preocupei-me com a criança. Por isso é que estive aqui a picar pedra.
Por fim a juíza, falando também, creio, como cidadã, como mulher, como mãe, suspirou as miseráveis contas desta mercearia:
– Um dia a criança ficará a saber que por 750 euros não se chegou a acordo. Eu acho que a C. não vale só 750 euros!
E só isto permitiu à criança saltar por cima da fogueira. A mãe pediu desculpa – “declaro que nunca tive intenção de ofender o assistente” -, desistiu de o processar por outros incidentes até hoje e, meus ricos St. António dos casamentos e dos objectos perdidos, S. João que clama nos desertos, S. Pedro das chaves da felicidade, enterrou-se por agora este assunto. Paciência de santos.
* Ver crónica de 13 de Junho, “Responso de Santo António (ou o alegado monstro)”
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)