Publicidade Continue a leitura a seguir

Oh não, os meus filhos já querem sair à noite

Fotos: Martin Lopez/Pexels

A dificuldade agiganta-se face às mudanças colossais a que temos assistido nas últimas décadas

Publicidade Continue a leitura a seguir

Quando deixar, que regras impor, o que fazer para que o processo seja natural e saudável. Um guia para pais à beira de um ataque de nervos.

O aperto no estômago, a inquietude que fica a moer, o dar por si a olhar para o telemóvel vezes sem conta, os nervos em franja quando passa da hora e do outro lado ninguém atende, o súbito suspiro de tranquilidade quando por fim eles estão de novo debaixo do mesmo teto, seguros e em paz. Se tem filhos adolescentes que já começaram a sair à noite há de identificar-se, no mínimo, com alguns destes “sintomas”. Depois, são as múltiplas perguntas que emergem. Qual é a idade ideal para começar a deixar o meu filho sair? Será que devo impor horas de chegada à minha filha? E ir buscá-la, será melhor? O que posso fazer para que não se metam em problemas? A problemática é complexa. Implica tempo e treino. E claro, a capacidade de adaptar regras e conselhos em função da postura que lhes vamos reconhecendo.

“Ao contrário do que a maior parte das pessoas pensa, esta questão deve ser trabalhada ainda na primeira década de vida”, começa por dizer Cristina Valente, psicóloga e coach parental. A especialista, autora de livros como “O que se passa na cabeça do adolescente?” e “Coaching emocional para pais”, justifica esta necessidade com todas as competências envolvidas no processo. “Tem tudo a ver com comunicação, com a fé que temos no adolescente, com a responsabilidade e a autonomia, que são capacidades que devem começar a ser trabalhadas muito cedo. Se o fizermos, quando aos 16 houver a necessidade de combinar um novo tipo de rotinas, tudo será mais fácil.”

Também Ivone Patrão, psicóloga clínica, entende que o processo será tão mais saudável quanto mais gradual for. “É um cordão que vamos lassando, algo que não pode ser feito de forma abrupta.” Para isso, também importa que haja um “vínculo seguro” construído desde a infância. E compromissos que se podem ir assumindo. “Coisas pequenas que eles podem começar a fazer, como ir a uma loja comprar algo, fazer um recado, ir para a escola sozinhos. Pequenos passos que nos vão dando uma perceção da autonomia e da responsabilidade que eles vão tendo.”

Até porque a questão das saídas à noite, como outras que se colocam ao longo do percurso dos rebentos, tem muito mais que ver “com o nível de maturidade e o à-vontade que os pais têm” do que propriamente com uma lógica simplista que garante que a partir de um dado momento será seguro deixar os catraios sair à noite livremente. “A grande dúvida dos pais é sempre a idade”, reconhece Cristina Valente, que responde à pergunta… da forma possível. “Dependendo do nível de autonomia e de responsabilidade, pode ser aos 15, aos 16, aos 17 anos. Se me perguntam se um adolescente de 14 anos já pode sair à noite? Poder pode, mas é muito cedo. Claro que depois tudo dependerá também do sítio onde viva, do grupo de amigos, do facto de ser um ambiente rural ou urbano e da logística adotada para o regresso a casa.” Por exemplo, o facto de os pais irem buscar os filhos.

Ivone Patrão destaca as virtudes desta “supervisão”, até “para perceber a relação entre pares e o ambiente em que eles se movem”. De resto, considera que os meios rurais podem ser facilitadores do início do processo de autonomia. “Por haver um grupo de amigos da infância, por viverem próximos, os pais acabam por sentir-se mais seguros.” Mas também se pode gerar uma falsa sensação de segurança. “Por vezes, há a ideia de que, nestes locais, é mais difícil aceder a determinadas coisas. Mas hoje em dia, com a dark web, é possível comprar droga e pedir para a entregar em qualquer sítio, como se fosse um livro.”

Os pais influencers

Para Ana Valentim, 47 anos, mãe de dois filhos, com 18 e 14 anos, a supervisão é uma regra fundamental. Seja em jantares, em festas na casa dos amigos, ou eventualmente em saídas para as discotecas (“ainda só foi uma vez porque o grupo dele ainda não aderiu muito às discotecas”), prefere ser ela a motorista. “Acho que é mesmo muito importante os pais estarem sempre presentes e tentarem participar. O Vasco resmunga um bocadinho, mas como ainda não tem carta precisa de nós.”

O diálogo é outra das premissas. “Perguntamos sempre onde vai, com quem, o que acha que vai fazer. Ele, a princípio, rejeita, mas aos poucos vamos puxando e conseguindo saber. Também nunca o prendemos. Tentamos é ir controlando.” Ana orgulha-se do facto de o filho nunca lhe ter dado problemas. Mas não deixa de ter medo. “Sobretudo por causa das notícias que têm saído sobre os desacatos na noite.” E compraz-se por o grupo dele ainda não se ter virado muito para as discotecas. “Foi uma vez e, claro, fui buscá-lo, eram quatro da manhã. São mais de festas em casa uns dos outros.”

Ana, por exemplo, disponibilizou várias vezes a sua, para churrascos e festas do filho. “Gosto muito, porque vemos que se estão a divertir, perto de nós e em segurança.” Já os conselhos que dá ao rebento, são sempre os mesmos. “Que tente desviar-se dos conflitos, que tenha cuidado com o que experimenta, que não deixe o copo pousado em qualquer sítio.”

Admite, contudo, que continua a ser “assustador”. E sabe que será ainda mais quando a filha, também Ana, de 14 anos, seguir as pisadas do irmão. “Para já, ainda não sai, só vai às festas de anos das amigas.” À imagem do que aconteceu com Vasco, a política deverá manter-se assim até aos 16. “Quando vejo miúdas de 14 anos a sair à noite, fico muito espantada.” E se a filha começar a insistir porque as amigas “também já saem”? A resposta sai-lhe tão firme como acredita que deve ser com os filhos, nestas circunstâncias. “Direi que ainda não é a hora. Eles têm de saber que a nossa palavra é muito importante. Aconteceu o mesmo em relação aos telemóveis. Primeiro, não aceitam bem, mas, quando falamos e esclarecemos, acabam por aceitar.”

Ou, como realça Ivone Patrão, “negócio é a palavra-chave”. “Isto serve para tudo: para o número de vezes que se sai, para o tipo de saídas, para a hora a que se chega.” Até porque a clareza da comunicação é fundamental em todo o processo. Cristina Valente recorre a uma metáfora que vai ao encontro da terminologia usada pelos mais novos. “A capacidade de ser influencer sobre o meu próprio filho. Aquilo que eu disser vai ter um peso completamente diferente se eu tiver influência sobre o meu filho ou se simplesmente for uma pessoa autoritária.” Estamos, portanto, perante um puro exercício de liderança. “A linguagem emocional é importante. Os nossos filhos têm de perceber que o fazemos por amor, não porque só queremos controlar. É fundamental partilhar preocupações e expectativas. Quando isto é feito a correr, e nos limitamos a dar um sermão, muitas vezes temos o efeito contrário. Às vezes, basta dizer: ‘Eu percebo que queiras sair, mas temos de arranjar uma forma de eu não ficar tão preocupada’.”

Quase sempre, é também um difícil exercício de gerir necessidades e desejos. “Os adolescentes têm de perceber que os pais têm necessidades, como a de saberem sempre onde eles estão, tal como os pais têm de perceber que os adolescentes têm necessidades, como o processo de socialização, no qual também se incluem as saídas noturnas. E depois há que distinguir entre necessidades e desejos. Porque desejar, eu desejaria que o meu filho nunca saísse antes dos 30. E um adolescente se calhar desejaria sair todas as noites. É importante ter maturidade emocional para distinguir uma necessidade de um desejo e para conjugar as minhas necessidades com as do meu filho.”

Riscos de um tempo novo

A dificuldade agiganta-se face às mudanças colossais a que temos assistido nas últimas décadas. Paula Guerra, socióloga com trabalho feito no âmbito das culturas juvenis, aponta isso mesmo. “De facto, há uma diferença abissal, se remontarmos por exemplo aos anos 1980, que foi quando ‘começou a noite’ em Portugal. Na altura, era algo completamente novo, objeto de forte controlo parental, quase só saíam à noite os homens e os residentes nas metrópoles e era um evento, um acontecimento na vida pessoal.” De lá para cá, tudo mudou. No final da década, refere a docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, “a indústria da cultura e dos lazeres começa a implantar-se em Portugal” e o espetro alarga-se. Depois, a partir dos primeiros anos 2000, a noite abre-se a gente cada vez mais jovem, também graças à consolidação da oferta nesta área. “Acho que a cultura das saídas começa cada vez mais cedo porque também assistimos ao avanço de outros níveis da sociedade. Claro que isto traz questões do ponto de vista da segurança e da dinâmica familiar, uma transição que nem sempre é fácil de gerir.” Tanto mais quanto há hoje problemas que são agravados por novas realidades. Ivone Patrão lembra o exemplo do universo online. “Os pais preocupam-se muitas vezes com os riscos da sua geração [as companhias, o álcool, as drogas] e hoje em dia já há outros. Com as redes sociais, é fácil identificar estes jovens, saber onde eles estão, e muitas vezes são eles próprios a combinar encontros com desconhecidos.”

Há ainda as questões levantadas pela covid-19. “Tem sido um tema muito pertinente, com uma dupla preocupação para os pais, que querem proteger os filhos das questões relacionadas com a pandemia, mas também dar-lhes um desenvolvimento natural e saudável.” Além de que, em muitos casos, se perdeu a oportunidade de fazer uma transição mais suave. Até pela vontade incontrolável de estes jovens quererem aproveitar tudo o que não puderam aproveitar durante um largo período. “Se antes os adolescentes já tinham entrado neste processo de autonomia e ainda não se tinham definido bem as regras, ainda vai ser mais difícil. Claro que vão dizer: ‘Agora vou ter de falar de regras quando nunca falei?’.” Em todo o caso, os princípios a seguir serão sempre os mesmos: antecipar, comunicar, vigiar, negociar, influenciar, gerir. Lassar o cordão com prudência. Para que ele não nos fuja da mão.