
A radiação ultravioleta deixa marcas no corpo, algumas graves. A cirurgia de Mohs é uma nova intervenção que, corte a corte, apenas remove o que interessa. Com elevada taxa de sucesso e pouco impacto estético.
Foi há três anos. João Moreira Rato tinha 73, reformado, percebeu que havia alguma coisa errada na sua cara. “O nariz tinha uma pequena ferida e não havia meio de cicatrizar.” Consulta com dermatologista, tratamento com pulverizações de azoto líquido. “A cicatriz sarou e desapareceu.” Dois anos depois, o nariz voltou a queixar-se. “Comecei a sentir um ligeiro latejar e uma pinguinha de sangue onde tinha sido pulverizado”, recorda. Novas consultas, uma biópsia. Diagnóstico de carcinoma, indicação de operação, várias dúvidas. “Os limites não estavam definidos, não havia a certeza de a operação ser bem-sucedida, resultar a 100%, podiam não retirar toda a pele e o problema voltar.”
Não estava satisfeito com as perspetivas. “A ideia não me agradou muito.” Decidiu procurar uma segunda opinião, percebeu que havia uma nova técnica para extrair o que não estava bem no seu nariz, a cirurgia de Mohs. João Rato ouviu com atenção. “Explicaram-me que só quando uma das análises desse negativo é que o carcinoma tinha sido removido.” A 27 de outubro do ano passado, entrou na sala de operações, anestesia local “Correu bem, foi um pouco demorado.” Nove horas depois, o seu nariz estava pronto a ser cosido. “Passado um mês, já não se notava nada. As costuras estão cá, mas são quase impercetíveis.”
Filipa Leitão, 63 anos, loura de pele branca, sempre esteve atenta aos sinais do seu corpo, tirou alguns com intervenções bastante simples. “De repente, passei o dedo junto ao ouvido e senti uma coisa estranha.” Conhecia os seus sinais, sentiu um alto por cima da orelha, na junção com o cabelo. “Ao princípio, era insignificante e depois foi crescendo.” Marcou consulta, pensou que seriam dois pontinhos, assunto arrumado. Mas não foi bem assim.

(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)
Análises, biópsia, carcinoma de pele, e nem era o mais simples. Ouviu falar de uma cirurgia especial, inovadora. A cirurgia de Mohs. A médica explicou-lhe com exemplos para simplificar, falou-lhe de uma piza cortada em quatro partes, bocadinho a bocadinho para analisar. Depois do resultado, percebia-se se era necessário tirar mais um pouco de pele. Assim sucessivamente até não haver sinal de células cancerígenas. “Marcam o tumor à volta e depois cortam um bocadinho. Depois da primeira análise, verificam se têm de tirar mais. No meu caso, tiveram de tirar mais”, revela. Foi como uma plástica feita naquela área, Filipa Leitão não vê a cicatriz. Correu bem, anda vigiada, todos os anos tem consulta.
Ambulatório, rápida recuperação
A cirurgia micrográfica de Mohs tem uma elevada taxa de cura, menor impacto funcional e estético, permite um rápido regresso à vida normal. É uma técnica inovadora e a mais precisa no tratamento de vários tipos de cancro da pele, sobretudo dos carcinomas basocelulares e espinocelulares. Está disponível em hospitais privados e do Serviço Nacional de Saúde.
Daniela Cunha, dermatologista na área de Oncologia no Hospital CUF Descobertas, Lisboa, investigadora no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, membro da direção da Associação Portuguesa de Cancro Cutâneo, resume o que acontece. O tumor é removido com uma pequena e profunda margem lateral e as partes retiradas são, de imediato, observadas na sua totalidade ao microscópio. “Quando se identifica persistência de células malignas num ponto destas margens, faz-se um pequeno alargamento, ou seja, remove-se um pouco mais de tecido, apenas onde se identificou a presença de tumor. Este procedimento é repetido até já não serem identificadas quaisquer células malignas.”
Uma intervenção feita em regime de ambulatório, com anestesia local, sem necessidade de internamento. “Esta cirurgia resulta por isso na mais elevada taxa de cura cirúrgica, nomeadamente quando comparada com as técnicas convencionais. Paralelamente, uma vez que extrai uma margem estreita e esta só é alargada nas áreas onde há persistência de tumor, permite a máxima conservação de pele sã e otimiza o resultado cosmético”, acrescenta a dermatologista e investigadora.

(Foto: DR)
Remove-se o tumor, procede-se à reconstrução cirúrgica para fechar a área, os retalhos ou enxertos locais requerem sete a 14 dias com pontos. O processo de regeneração dos tecidos, como em qualquer cirurgia, prolonga-se por meses. No entanto, o regresso à rotina pode acontecer no dia seguinte à operação ou após a remoção dos pontos, dependendo da localização anatómica e da complexidade da reconstrução.
Há vários cancros de pele. O mais conhecido, e o mais agressivo, é o melanoma maligno. O carcinoma basocelular e o carcinoma espinocelular são os mais frequentes. Lesões vermelhas, salientes, com uma superfície lustrosa ou áspera sobretudo na cara e áreas expostas ao sol. Habitualmente geram uma ferida que parece cicatrizar, mas não desaparece por completo. O melanoma é mais perigoso. “É tipicamente uma lesão de cor castanha, negra ou uma combinação de tons de castanho e vermelho, de contornos irregulares e assimétrica. Pode surgir sobre um sinal preexistente ou em áreas de pele sã, mais tipicamente nas expostas ao sol, mas também em áreas menos expostas”, especifica Daniela Cunha. Um novo sinal no corpo é um alerta.
O Sol, o Sol, o Sol. João Rato, pele branca, olhos azuis, sabe o que lhe aconteceu e reconhece a pouca preocupação no passado. Muito mar, muita praia, quase sem proteção. “Foi resultado de uma prolongada exposição ao Sol. Sempre fiz uma vida ligada à vela e ao mar e nunca tive o cuidado de pôr proteção para a pele.” Nem chapéu sequer e assim foi ao longo de quase toda a sua vida. “Fui bastante negligente”, confessa. Volta e meia, apareciam-lhe crostas no couro cabeludo, situação vigiada, havia perigo de células pré-cancerosas. Duas vezes por ano, ia ao dermatologista retirar essas crostas.
O que se vê e o que não se vê
A radiação ultravioleta é um dos principais fatores de risco para qualquer um dos cancros da pele. “A exposição solar excessiva, quer seja prolongada no tempo, quer seja pontual e intensa (“escaldão”), está diretamente relacionada com um aumento do risco de cancro da pele”, sublinha Daniela Cunha.
“Cá se fazem, cá se pagam.” Filipa Leitão repete o ditado que, admite, no seu caso, se encaixa que nem uma luva. Pele clara, família com tendência para ficar vermelha nos primeiros dias de praia. “Apanhava escaldões de morte. Na altura em que cresci, não se falava em cancro da pele.” Os anos passaram, as campanhas de proteção surgiram e intensificaram-se, sabe-se que um carcinoma detetado no início pode ter solução. “Já há bastante informação”, salienta. Hoje Filipa Leitão faz praia no horário das crianças, com máxima precaução, até porque a sua pele já não aguenta sol o dia inteiro.
Há muito que se sabe que o Sol é o principal inimigo da pele, que as medidas de proteção solar são essenciais, que os solários são desaconselhados. Os cancros da pele atingem tanto homens como mulheres e a incidência aumenta com a idade. A explicação é simples. A radiação ultravioleta produz alterações no DNA das células, ou seja, na sua memória. “No imediato, vemos apenas a vermelhidão da pele ou o bronzeado, que resulta da resposta da pele à agressão produzida pela radiação ultravioleta”, adianta a médica. O problema é o que não se vê. “As lesões no DNA persistem, vão-se somando e transmitindo sucessivamente às células-filhas.” Lesão após lesão até ao cancro.
Segundo a dermatologista, quando o diagnóstico é precoce, a maioria dos cancros da pele tem cura, contudo, se identificado em fases avançadas, pode tornar-se irreversível. “O tratamento inicial é habitualmente cirúrgico, sendo que a cirurgia micrográfica de Mohs é a técnica de eleição para vários dos tumores, pela sua elevada precisão.”

(Foto: DR)
Ana Afonso, especialista em Anatomia Patológica no Hospital CUF Descobertas, Lisboa, realça as virtudes da cirurgia de Mohs. É uma intervenção que pretende assegurar que “o tumor é completamente retirado com margens de segurança e impedir a recidiva ou recorrência tumoral.” “Alguns tumores malignos da pele têm um crescimento infiltrativo, invasivo dos tecidos adjacentes, dificilmente detetável”, adiciona. Com a técnica de Mohs, contém-se a área de pele a remover para evitar grandes deformações, sobretudo no rosto.
O diagnóstico está nas mãos da anatomia patológica. É aqui que tudo começa. Faz-se uma biópsia, a amostra da lesão vai para o laboratório, é observada ao microscópio, verifica-se se há ou não tumor. Se há, é preciso indicar a área a remover. “Todos estes passos pressupõem mapeamento da lesão, rigor, minúcia técnica e concertação de uma equipa constituída pelo dermatologista, pelo técnico da anatomia patológica e pelo patologista”, indica Ana Afonso. Seja como for, o mais importante é ter cuidado com o Sol. Todos os dias, toda a vida.