Valter Hugo Mãe

O Ramiro, a Maria José, as poupas e a bravura


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Eu acho que o Ramiro só poderia aceitar o amor do pássaro, aquele que sabe que a sua companheira tem a natureza do voo e ficará junto por liberdade. Um amor fiel entre os profundamente livres e sem medo.

Quando o Ramiro arranjava namorada nova nós comentávamos o medo. Claro que queríamos que fosse feliz, acompanhado e completo, mas as namoradas dele também significavam uma nova patroa no café e outras regras, os nervos de muitas vezes não entenderem o equilíbrio perfeito que ele, sozinho, soube criar entre os clientes.

Para nós, a lisura do Ramiro, o seu jeito sem grito, não teria muita correspondência. Já não se fazem pessoas como ele e já não se fazem pessoas para ele. Em tantos anos, nunca o vi meter-se na vida de ninguém, nunca apoucou ou moralizou o jeito dos outros. E é preciso entender que assistir à vida que há num café é como ver um certo filme absurdo, que vai do piegas ao terror, do policial à comédia, com actores convictos e obstinados que encarnam os papéis sem trégua e até à morte. Que o Ramiro consiga manter a calma entre nós é um mistério que nem a ciência mais esperta vai algum dia explicar.

Eu acho que o Ramiro só poderia aceitar o amor do pássaro, aquele que sabe que a sua companheira tem a natureza do voo e ficará junto por liberdade. Um amor fiel entre os profundamente livres e sem medo. Quando vimos a Maria José, comentámos por meses a sua beleza, o seu jeito elegante, o corpo de menina, e como lhe chamava Mimi. O Ramiro dos adultos era o Mimi da Maria José e não podia ser mais justo.

Depois, a Maria José falou connosco, que estávamos num frenesi para a conhecer como se fôssemos outros filhos do Ramiro, e em segundos se explicava a maravilha. A sua transparência, o jeito honesto de gostar, a alegria de gostar, era exactamente à medida da grandeza do Ramiro. Se já não se faziam pessoas para o Ramiro, também não se faziam para a Maria José. Estavam, pois, feitos um para o outro. Ficámos felizes.

Esvoaçou uma poupa diante de mim. São comuns pelo Minho e a minha comadre mais o Paulo dizem que pelo jardim deles anda uma todos os dias. De crista no ar como uma coroa, exuberantes, as poupas são amores à primeira vista. Com a natureza do voo, são monogâmicas. A cada estação, fidelizam o acasalamento. Que maravilha. Haveria de me esvoaçar diante dos olhos uma ave destas exactamente agora. Pareceu-me nobre, uma pequena mas pura alma nobre.

Ando há dias à procura de ver um serra-da-estrela. Perguntei ao pastor, que me respondeu cuidar das ovelhas com um rafeiro. Chega muito bem, disse. Depois, riu-se. Confessou que, com os anos, até as aves velhas pastam os rebanhos. Pelos campos, as aves aprendem que é bom o pasto do gado e fazem o que podem para orientar os bichos. Até as poupas. Perguntei. Ele disse: até as poupas. Os bichos livres também gostam de pertencer.

O Ramiro e a Maria José pertencem-se. Andam nisto há dez anos. Haverão de andar nisto para sempre. Nem que tenha de mandar as aves de Coura a Vila do Conde para os orientar pelos caminhos, no desafio dos dias. As aves e um serra-da-estrela, que não saio daqui sem rever um animal desses.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)