Luzia e Tiago andaram dez anos a tentar ter filhos. “Fátima” passou cinco com um companheiro que a espancava. Raffaello só se sentiu ele aos 39 anos. Mohamad e a família livraram-se, por fim, da guerra e da ostracização. Manuel é “um homem novo” agora que voltou ao conforto do lar. Histórias de agruras e recomeços felizes.
Há dez anos que, invariavelmente por esta altura, Luzia Maia ia à chaminé lá de casa deixar um pedido, repetido entre assomos de fé e dores de alma: que a vida lhe desse por fim o bebé que sempre quis. Ali, em Santo António das Areias, Marvão (distrito de Portalegre), o Natal nem lhes sabia a Natal.
Para Luzia, o encanto perdeu-se quando o avô morreu, tinha ela uns 15 anos. Para Tiago, o companheiro, de vida e de lutas, eram só dias a acrescentar aos dias. Tanto que nunca uma árvore de Natal tinha entrado lá em casa. Nunca até este ano. A 1 de dezembro, nem mais um dia, foram buscar um pinheiro e enfeitaram-no a preceito. “Não comprámos nada. Tudo o que temos na árvore foram decorações que nos enviaram as pessoas que nos têm acompanhado durante este tempo.”
Junto à árvore, até já têm duas prendas, embrulhadas em amor. Um Mickey em ponto grande e um elefante de peluche gigante. Tudo para o bebé de quatro meses que, ao fim de anos a fio de espera, lhes encheu a casa de amor. “O Manuel demorou dez anos a chegar cá.”
É um resumo doce de tempos amargos, de anos de esperança e desesperança, de golpes impossíveis de contar a fundo nestas linhas. Luzia e Tiago estão juntos há 11 anos, souberam logo que queriam ter filhos, começaram a tentar pouco tempo depois, sem pressas nem preocupações. Mesmo que as novidades tardassem. Ao fim de quatro anos, Luzia engravidou. Mas a boa nova durou pouco.
A gravidez era afinal anembrionária (sem desenvolvimento de embrião). Para piorar, o corpo não expulsou o “saquinho” e teve de ser submetida a cirurgia, duas semanas antes do casamento, marcado fazia tempo. “As pessoas diziam-me que nunca tinham visto uma noiva que chorasse tanto. Mas então não havia de chorar?”.

(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)
A mágoa perseguiu-a durante anos. Porque se aquela gravidez tardou, a partir daí “nada acontecia”. Começou então a ser acompanhada no Hospital Amato Lusitano, em Castelo Branco. Quatro inseminações intrauterinas, todas fracassadas. Depois esteve meses à espera de uma consulta em Coimbra. “Quando lá cheguei disseram-me que, por causa da minha doença [distrofia miotónica de Steinert], o único hospital público onde me poderiam fazer uma fertilização in vitro era o Hospital de São João, no Porto. Porque lá estudavam os embriões e selecionavam os genes que não tinham a doença.” Luzia desabou.
Já não lhe bastavam os anos de espera, e o aborto, e um casamento que foi mais tortura do que festa. Passou “três ou quatro dias” lavada em lágrimas. Até por saber que nos hospitais públicos a espera seria longa. E por não ter posses para recorrer a uma instituição privada. Mas não se ficou. “Comecei a escrever para todo o lado. Jornais, revistas, televisões. Até que me ligaram da TVI.” E lhe ofereceram os tratamentos numa clínica de Coimbra.
Foi um processo penoso, ainda assim. Oito fertilizações in vitro, o mesmo desfecho, um bebé que não chegava nem por nada. Até restar um único embrião. O nono. Luzia tremeu, Tiago desesperou, o desgaste dos tratamentos e da incerteza a vergá-los de tal forma que pensaram em separar-se. Andaram quase um ano a ganhar força para tentar uma última vez, perante um chorrilho de obstáculos que parecia querer dizer que tudo o que podia correr mal ia correr mal.
Primeiro um acidente de trabalho que levou a Luzia três falanges da mão esquerda, depois a morte da avó. A 15 de dezembro, o milagre a ganhar forma. “Tiago, estou grávida.” E o marido a dar-lhe uma resposta que a destroçou. “Olha que a alegria na casa dos pobres dura pouco tempo.” Luzia deu-lhe razão. Nem um mês depois, morreu-lhe o pai. Mas a cria sobreviveu ao desgosto. “Quando fui fazer a ecografia, lá estava o senhor Manuel, todo feliz e contente.”
Meses depois, a 17 de agosto, o bebé mais desejado vinha ao Mundo, o calvário todo a justificar-se subitamente. “Valeu tudo a pena. Quando ele acorda a sorrir temos a certeza disso”, derrete-se Tiago. “Quando engravidei do Manuel tive o pior mês da minha vida. E acho que foi assim por uma razão. Veio na altura em que me fazia mais falta”, acredita Luzia que, aos 32 anos, voltou a ver a magia desta época do ano: “Vai-me custar não ter a minha avó e o meu pai, mas com o Manuel vai ser o melhor Natal do Mundo.”
“Não podia usar uma saia curta que era logo puta”
A Fátima (nome fictício) nem o nascimento do filho lhe levou os dias de pesadelo. Já com ele nos braços, ainda viveu quatro meses de sufoco. Até que o pior dia da vida dela se fez o melhor dia da vida deles. Foi no verão do ano passado, ela a desesperar porque tinha de cuidar sozinha do menino – nesse dia, lembra-se, ele tinha chorado “mesmo muito” – e ainda tratar da roupa, e da comida, de tudo o resto, porque tudo tinha que estar “perfeito” para o companheiro.
O desespero andava há tempos a entranhar-se. Anos de maus-tratos, humilhações, violência verbal, física, sexual. E a pandemia a tornar tudo mais insuportável. Ela ficou desempregada primeiro, e com isso mais dependente, ele foi a seguir, a falta de trabalho deu-lhe para mergulhar (ainda mais) fundo no álcool.

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)
Até que Fátima se sentiu a chegar ao limite, e anunciou que se ia mudar. Ele respondeu secamente: “Vai, mas deixas-me o meu filho”. A discussão escalou até a um ponto que Fátima conhecia dolorosamente bem. Socos, a cabeça dela com estrondo contra a parede primeiro, depois contra o chão, várias vezes, com toda a força. E o menino a berrar desesperado.
Até que o companheiro saiu. E voltou com a Polícia. A princípio, ela nem percebeu o que estava a acontecer. Saberia depois que o companheiro (agora ex-companheiro) tinha ido à esquadra fazer queixa dela. O golpe fez ricochete. Notando as marcas das agressões, a Polícia prontamente lhe deu estatuto de vítima e uma ordem de restrição. Era o fim de anos a fio de assombro e tormentos.
O pesadelo começou em 2016, pouco depois de chegar a Portugal, proveniente de um país africano que pede para não identificar. Na altura, tinha um negócio, posses, vivia bem, sonhava formar família em Portugal. Entretanto, conheceu-o, perdeu-se de amores, juntaram os trapinhos, projetaram até abrir um alojamento local juntos. Ela avançou com mais de 13 mil euros para o contrato de compra e venda, ele garantiu que conseguiria o resto graças a um padrinho influente.
Mas o dinheiro dele nunca chegou e ela perdeu o valor do sinal. Depois, eram os ciúmes, as discussões, o controlo doentio. “Não podia usar uma saia mais curta que era logo uma puta.” Como “putas” eram as amigas, que só a “desencaminhavam” e ainda para mais eram “invejosas”. E ela sem ver que já tudo ali estava errado. “Na altura achava que era normal, que era sinal de que ele gostava de mim. Mas quanto mais cedia mais ele implicava.”
Mais tarde, avançaram mesmo com o alojamento local. Só que, apesar de ter passado meses a prometer-lhe que o negócio ficaria no nome dos dois, em cima da data roeu a corda. “Disse que tinha de jogar pelo seguro porque não sabia se íamos continuar juntos.” Pior foi quando ela aceitou mudar-se para o sótão da casa dos pais dele. Um dia, o companheiro, furioso com o facto de um amigo lhe ter enviado uma mensagem, bateu-lhe. Partiu-lhe um dente e apertou-lhe o pescoço. Foi a primeira agressão física. Depois pediu desculpa. Ela andou dias sem lhe falar. Mas acabou por ter pena dele.
A cena repetiu-se vezes sem conta, fosse por uma mensagem, por um “bom dia” a um vizinho ou pela comida fria. E sempre com a conivência da sogra, que de cada vez que se apercebia das agressões lhe dizia que uma mulher “tinha de aguentar”. “Porque em 50 anos ela também tinha ‘apanhado muito’.” Sem dinheiro, sem amigas, com a vida feita num abismo, Fátima foi absorvendo a “lavagem cerebral”. “Comecei a acreditar naquilo, a achar que não valia nada.”
O ciclo, percebe hoje, era sempre o mesmo. Discussões, agressões, ele “muito arrependido”, ela a dar o braço a torcer, ele a tratá-la “como uma rainha”. Numa das zangas chegou a deixá-lo. Mas a distância durou pouco. E assim as discussões continuaram. E as agressões. E os abusos. “Dizia-me que não valia a pena ter uma mulher se era para andar com os coisos cheios.” Ainda se mudaram para outra casa, mas tudo o resto ficou na mesma. Mesmo depois de “Fátima” engravidar. E de ter o bebé.
Até àquele dia de verão simultaneamente horrendo e libertador. Agora, numa casa-abrigo, acompanhada do filho, volta, por fim, a provar o sabor de um Natal em segurança. “Não queria que o primeiro Natal do meu filho fosse aqui, mas pelo menos vou voltar a passá-lo com muita gente, como quando estava em casa. Há cinco anos que era uma tristeza”, atira, de olhos postos no futuro: “Já está tudo traçado. Sair daqui, alugar uma casa, inscrever o menino na creche, trabalhar. Começar de novo.”
“Nasci novamente neste Mundo”
Também Raffaello Dante, psicólogo de 39 anos, se sentiu a começar de novo em 2021. Foi a 23 de março, sabe-o bem, a alegria foi tal que já de madrugada não resistiu a partilhá-la nas redes sociais. “Estou acordado até agora, com um sorriso imenso. Nasci novamente neste Mundo. Mas desta vez com o género que realmente é o meu. Finalmente o meu nome é Raffaello Dante na certidão de nascimento.”
Entender-lhe o júbilo implica recuar anos, décadas, virar do avesso os anos em que existiu sem nunca se sentir confortável na própria pele. Raffaello – o nome que lhe deram à nascença já não importa – foi sempre uma miúda em contraciclo. Jogava futebol com os rapazes, usava roupas masculinas, não se identificava com o nome que tinha, pegava num lápis e punha-se ao espelho a imaginar como seria ter um pénis.

(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)
Chegou a ter namorados, mas também lhe interessavam as raparigas. Então, no início da adolescência, fez o primeiro “coming out” (saiu do armário, diz-se na gíria), como bissexual. Mas depois percebeu que também não era bi e assumiu-se como homossexual, não por convicção férrea, simplesmente porque gostava de mulheres e não dispunha de “muita informação”.
Os tempos em que assumiu a homossexualidade foram particularmente duros. Ainda para mais era militar. Além de que nunca se sentiu integrado nas temáticas lésbicas. Nem confortável com o corpo que tinha. Na verdade, sempre se sentiu homem.
Passou anos às voltas com aquilo, numa viagem às profundezas que lhe permitisse perceber quem realmente era. Uma viagem que durou quase 20 anos. “Por volta dos meus 36, comecei a assumir-me como pessoa não-binária.” Hoje, acha que no fundo sempre soube. “Eu sou homem e sempre me senti como tal.” Um ano depois, mais coisa menos coisa, assumiu-se para os outros como pessoa trans. E em setembro de 2020, já com a pandemia a tomar conta do Mundo, começou por fim a ver o que precisava de fazer para mudar de nome.
Até que em março, a 23 de março, a notícia mais desejada chegou. “Foi espetacular. Fartei-me de chorar, ao telefone com a minha namorada. Nunca tinha tido aquela sensação. Vivi sempre a minha vida num determinado formato e foi como se me tivesse reconstruído perante tudo o que sinto no interior, como se finalmente tudo fizesse sentido.”
A mudança tão desejada não se tem feito, contudo, sem percalços. Além de não ter conseguido votar, porque o nome ainda não estava alterado no sistema, quando se dirigiu ao centro de saúde para marcar consulta com o médico de família foi “destratado”. Pior foi a administrativa que o atendeu ter-lhe atribuído um novo número de utente, sem que ele se apercebesse, o que lhe tem causado um sem-fim de engulhos.
“Por causa da mudança que houve no meu número de utente, o meu certificado digital da covid saiu com o meu nome anterior e assim ficou até hoje. Não posso viajar, não posso visitar a minha mãe, que está na Suíça, não posso ir a um hotel, mesmo para coisas mais banais tenho de mostrar a documentação e explicar a história toda. Além de que os médicos não têm acesso ao meu histórico de saúde.” Também por causa disso, garante, os tratamentos hormonais e a cirurgia de redesignação sexual têm sido sucessivamente adiados. “Mas se tudo correr bem no início do ano já começo a reposição hormonal”, anima-se Raffaello. O resto da vida dele já começou.
“Muita guerra, muita guerra”
Para a família Jehwani, natural da Síria, o resto da vida perspetiva-se em Portugal. Chegaram com o início do ano, a 28 de janeiro, pouca bagagem de mão e toneladas de bagagem na alma. Naturais de Homs, uma das principais cidades sírias, viram-se obrigados a fugir à pressa da terra de sempre em 2014, por culpa da guerra, que havia começado em 2011. “Muita guerra, muita guerra”, diz Mohamad, 33 anos, já a arriscar um tímido português.
Antes, enfiados em abrigos que não tinham mais do que dois, três metros quadrados, sentiram na pele o pavor dos bombardeamentos. Ele ainda tentou manter o negócio que tinha, uma loja de sapatos, mas a mercadoria era sucessivamente confiscada e até o passaporte lhe apreenderam. Por isso, quando em 2014 percebeu que a esperança já não morava ali, teve de fugir.
Pagou dez mil dólares (cerca de 8900 euros), ele e outras cem pessoas, por um transporte que nunca chegou. Acabou a fazer 200 quilómetros a pé. Hoje, recorda o episódio com graça, entre os postes de iluminação que alumiam a rua da Trofa onde se instalou com a família. “Chegávamos a esta luz e diziam: ‘É na outra luz’. Depois na outra. E na outra.”
Primeiro, foi para a Turquia, sozinho. A mulher e o filho (na altura tinha um, estava grávida de outro, mas perdeu-o, hoje são quatro: Assad, Saja, Duha, Meryem) juntaram-se depois. Estiveram lá cinco anos. Tinham uma boa casa e Mohamad fartava-se de trabalhar. O problema era a discriminação.

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)
Por ser sírio, não lhe davam certificado de residência, não tinha direito a um contrato, ganhava menos do que os outros, não podia sequer pôr dinheiro no banco porque tudo era “vigiado”. Já para não falar do desprezo a que estavam votados nos serviços públicos e mesmo na escola, no caso dos miúdos.
A vontade de se mudarem para Portugal desenhou-se então no horizonte. Culpa de Ricardo Quaresma (que “ajudava muito os refugiados”) e do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, pela tolerância que lhe reconheceu. Em janeiro, consumaram a mudança, com a ajuda do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e do Espaço T, associação que trabalha em parceria com o ACM nestas questões e que assume neste processo um duplo papel.
Por um lado, toda a preparação logística e a gestão da verba que lhes é atribuída pelo ACM, para com ela garantirem às famílias uma casa, o pagamento das despesas e ainda um “pocket money” atribuído diretamente aos migrantes, de 150 euros mensais por cada elemento do agregado familiar, durante 18 meses. Por outro, a parte mais importante, destaca Jorge Oliveira, presidente do Espaço T, “criar uma relação de humanização”.
“Não fazem nada sem acompanhamento, ajudámo-los com o emprego, levámo-los a conhecer os sítios, enchemos-lhes o frigorífico para 15 dias, decoramos a casa, garantimos-lhes tratamentos dentários. Tentamos mimá-los ao máximo.” A 23 de dezembro, vão até fazer “um lanche da amizade” – não lhe chamam lanche de Natal porque os árabes não o celebram -, com prendas incluídas para todos os catraios.
Neste momento, o Espaço T tem a seu cargo quatro famílias, todas da Síria, todas instaladas na Trofa. À casa da família Jewhani, um primeiro andar com três quartos, chamaram-lhe “casa dos afetos”. A tal humanização que não pode faltar. Entretanto, Mohamad arranjou trabalho, a contrato, numa empresa de materiais de construção da Trofa.
E, como conta Domingos Mendes, responsável pela delegação do Espaço T na Trofa e uma espécie de muleta da família, até já projeta planos ambiciosos: comprar uma casa velha numa pequena cidade, reconstruí-la, fazer dela o lar para toda a família. Longe da guerra e da ostracização.
“Chorava todos os dias”
Manuel Pinto, 43 anos, mecânico, não se queixa da sorte. Pelo contrário, acha até que fez por merecer os quase três anos de inferno que viveu na cadeia de Custóias. “O meu percalço? Olhe, foram vários. Posso-lhe dizer que andei cerca de 20 anos a jogar na roleta russa. Falsificava um documento, adulterava um chassis, ia sendo apanhado, tinha uma pena suspensa, mas não sei porquê nunca achei que podia ser preso.” Primeiro, ganhava uns trocos a mais, que ia gastando no jogo e no álcool. Depois, foi escalando. “Cheguei a um ponto em que tinha um nível de vida muito superior ao que poderia ter. Um carro de 50 mil euros, férias no Brasil, no Dubai, casinos atrás de casinos, álcool.”
Para pagar a vida de luxo, fazia créditos, que depois não conseguia pagar. E então metia-se em mais esquemas. Em 2016, começou a ficar afundado em dívidas. Em 2018, a aflição fê-lo vender dois jipes que era suposto consertar. “Não sei o que tinha na cabeça, sinceramente. Acho que foi o desespero. Claro que tinha que dar asneira. A Justiça deu-me todas as oportunidades durante 20 anos. Até ao dia em que não deu mais. E bem.”

(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens )
Em 2018, começou a ser julgado, por abuso de confiança, falsificação de documentos, contrafação de chassis, processos atrás de processos, mais de 20, seguramente. Chegou a estar condenado a nove anos de cadeia de pena efetiva. E a mulher com três empregos para aguentar a casa, o carro, para que nada faltasse ao filho de ambos, que, à custa de o pai ter sido preso, chegou a viver numa depressão profunda. Para cúmulo, Manuel teve um advogado que “foi um verdadeiro trafulha de fato e gravata”. “Roubou-me três mil euros”, assegura.
Foi algures por esta altura que Manuel baqueou. “Só pensava: mas o que é que eu fiz à minha vida?” E que decidiu dar a volta ao texto. Escreveu, ele próprio, uma carta a pedir clemência, a jurar arrependimento, desfez-se num pranto no tribunal. Acabou por ver a pena reduzida a quatro anos e dois meses de prisão efetiva. Mas depois veio o perdão de penas por causa da covid. E então acabou a cumprir dois anos e oito meses, até sair em agosto, com mais 19 meses de pulseira eletrónica.
Tempo mais do que suficiente para ficar com o horror da cadeia cravado na pele. “Foi muito mau. No primeiro mês meti-me logo em problemas porque na prisão ou se bate ou se leva, ou se rouba ou se é roubado.” O pior foi a falta da família, aquele som malévolo da chave a fechar a cela às 19 horas em ponto e o vazio medonho que se lhe seguia, os episódios impronunciáveis que lá viveu e que, jura, nunca vai contar a ninguém.
“Chorava todos os dias, sozinho na cela, só de me lembrar dá-me vontade de chorar outra vez.” Os Natais que lá viveu, então, foram um desespero. “Uma angústia, um sentimento de culpa, de revolta”, um sofrimento tal que, agora que se sente “um homem novo”, faz questão de repetir várias vezes a mesma mensagem: “Gostava que os jovens que lerem isto percebessem que o crime não compensa mesmo.” E este Natal? “Vai ser ótimo. Não terá muitos luxos, mas vou ter a minha família ao pé de mim. E isso é tudo.”