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O país que se agarra à rádio para fugir ao isolamento

Mário Brás, pastor, que ouve rádio nos montes, enquanto pasta as suas 83 cabras (Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)

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O papel comunitário é evidente (há um estudo que o comprova), o alcance ultrapassa sintonias e frequências, o impacto é tremendo. Os ouvintes contam como é. É uma companhia que preenche os dias, uma família que se constrói e consolida, uma terapia que contorna a tristeza e a solidão. Os alicerces são simples, mas robustos. E elas, mês após mês, resistem, sobrevivem, e fazem milagres.

Todos os dias, faça chuva ou faça sol, no verão é mais pela fresca, por volta das cinco e meia da manhã, no inverno, um bocadinho mais tarde, normalmente depois das nove, Mário Augusto Brás sai de casa em Passos, Mirandela, para levar o rebanho a pastar. São 83 cabras de várias cores, russas, brancas, castanhas, que andam pelos montes à procura do melhor pasto. “São as minhas meninas.”

O pastor, de 64 anos, leva sempre o rádio atrás. Há tempos, andava com dois telemóveis, um para ouvir a Onda Livre, rádio de Macedo de Cavaleiros, outro para ligar para a estação para pedir músicas e fazer dedicatórias. Um dos aparelhos avariou, agora leva um transístor que não precisa de pilhas, tem bateria, carrega com eletricidade. Volta e meia, no monte, a rede falha. Nada que o desestabilize. “A rádio, para mim, é fantástica, é mais do que uma família. Ouço todos os dias, quase sempre ligo e, quando calha, põe-nos a falar uns com os outros, apesar de não nos conhecermos. Estamos sempre em contacto, o que é muito interessante.”

Manuela Almeida, 57 anos, de Canelas, Vila Nova de Gaia, é costureira, trabalha sozinha em casa, tem o rádio sempre ligado na Rádio Sintonia, de Santa Maria da Feira, de manhã à noite, há noites que fica ligada, a televisão dá-lhe sono. Mora com o marido, a filha já foi à sua vida, a rádio é uma companhia, uma paixão, um bichinho que ficou do pai que tinha rádios espalhados por toda a casa. “A rádio é um complemento da minha felicidade, faz parte de mim, é tão importante como o ar que respiro.” Um amor tão intenso que, por vezes, confessa, não encontra palavras para o descrever, mas que vai descrevendo tão bem. “Estou a trabalhar e a ouvir rádio. Estou sozinha, mas não estou. Faz-me bem, é como ter um grupo de pessoas à minha volta”, compara.

A Rádio Sintonia é companhia diária de Manuela Almeida, costureira, que trabalha sozinha em casa
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

O cantante, como chama ao seu rádio, não tem descanso. Todas as semanas, Manuela envia mensagem a pedir uma música, um fadinho ou Roberto Carlos, para o programa da manhã, muitas vezes como forma de agradecimento à locutora Paulinha, por estar do outro lado, outras vezes, com dedicatórias ao grupo da rádio, a todos os ouvintes. “Ganho tanta coisa com a rádio que não consigo explicar, encontrei um porto de abrigo tão bom, fico com uma paz de espírito tão boa, sinto-me tão acompanhada, mesmo estando sozinha. A rádio ajuda-me a ter um dia bom, estou acompanhada por pessoas de que gosto.” O dia corre-lhe melhor entre os tecidos com a telefonia ligada. “Eu não ouço rádio, eu escuto, ouvir e escutar são coisas diferentes. E entre ir ao médico ou escutar rádio, não sei o que me faz melhor.”

Mais a sul, no Alentejo, Encarnação Costa, 79 anos, tem um caderno com as músicas que quer pedir anotadas e uma cábula com as dedicatórias. O marido, Luís Custódio, de 84 anos, também. Das 7.30 às 8 horas, a Rádio Castrense, de Castro Verde, tem um programa para desejar bom dia. Encarnação sabe que não deve demorar muito tempo, há gente à espera para entrar em antena, dá os bons dias a todos os amigos da estação, a quem está doente, a quem faz anos, aos bombeiros, aos emigrantes. Às 10 horas, começa o programa de discos pedidos e o casal tem tudo preparado. Encarnação liga do telemóvel, Luís Custódio do telefone fixo. Todos os dias, sábados e domingos incluídos. “As rádios locais são muito importantes na vida da gente, ajudam-nos a viver. São uma distração e são uma família”, refere Encarnação. “Ouvimos coisas da nossa região que não sabemos”, acrescenta.

O casal mora em Santiago do Cacém, a 45 minutos de Castro Verde, a filha está em Lisboa. Encarnação já visitou os estúdios, conhece a Fernandinha dos discos pedidos. “É uma querida para toda a gente, quando não ligo para o programa dos bons dias, liga-me para saber se eu e o meu marido estamos bem.” O casal dedica músicas a várias pessoas que não conhece pessoalmente, mas que considera suas amigas. “Se não ouço falar sicrano e beltrano, fico logo com as antenas no ar.” E liga para a rádio para saber o que se passa.

Logo que acorda, Inês Tavares, de 21 anos, está em pulgas para ligar a rádio, pede ao pai para mandar a mensagem a pedir uma música, quase sempre de Tony Carreira de quem é fã, para a Rádio Sintonia, de Santa Maria da Feira, com dedicatória à mãe, ao pai, ao mano, às amigas da rádio, à locutora. “Gosto muito da Paulinha, é amiga.” Todas as manhãs, cola-se à rádio em casa, no carro, nos fones quando vai caminhar ou com os pais às compras. “Faz-me muito bem, gosto das músicas dos amigos que conheço”, conta.

Há cerca de dois anos, João Paulo, o pai, que trabalha com a rádio ligada numa loja de conveniência num posto de abastecimento de combustível, decidiu pegar no telemóvel e enviar uma mensagem para as “Manhãs da Sintonia” para dedicar uma canção do Tony à sua princesa, à sua menina especial. “Naquela manhã, deu-me o clique”, lembra. Telefonou para casa, pediu para ligarem a Sintonia, que haveria uma surpresa. Foi uma festa, uma explosão de alegria. Algum tempo depois, houve coisas que não voltaram a ser como antes e ainda bem. “A Inês tinha muitos ataques epiléticos, cinco a sete por dia. A partir de uma certa altura, de todos os dias ouvir o nome dela na rádio, os ataques reduziram drasticamente, agora só tem um, à noite”, adianta João Paulo. As crises de ansiedade diminuíram também. “É um facto e para nós tem lógica.” A verdade é que Inês acorda bem-disposta, não larga a Sintonia, e lá vai mostrando as fotografias que tirou com a Paulinha no estúdio.

Mário Narciso, de Mombeja, canta fados e cante alentejano às quintas à noite, num programa da Rádio Castrense
(Foto: Pedro Rocha/Global Imagens)

Mário Narciso partiu um braço, escorregou no quintal, não conseguiu segurar-se, desequilibrou-se, caiu, andou pelo centro de saúde e pelo hospital, tirou o gesso há pouco mais de uma semana. Os amigos da rádio, os que conhece e os que não conhece, mandaram-lhe mensagens, ligaram-lhe, queriam saber de si. Mário não esquece esses gestos que lhe amaciaram as dores. Tem 68 anos, vive sozinho com o seu cão na pequena aldeia de Mombeja, que nem 400 habitantes tem, a mais de uma hora de camioneta de Beja. Está reformado por invalidez da construção civil, era canalizador, agora ocupa-se a fazer miniaturas em latão de regadores e cântaros, baldes e caldeirões, ferramentas de outros tempos. O transístor anda consigo para todo o lado. Sintoniza-o na Rádio Castrense e é um ouvinte participante. Às quintas à noite, no programa “Património”, de cultura popular, no ar há 31 anos, canta fados e cante alentejano. “Todos os dias, participo, participo em todos os concursos, nos discos pedidos, estou em contacto com eles, lá na rádio”, diz. Até já esteve em estúdio a falar da sua arte em latoaria e a explicar, com detalhe, a função de cada ferramenta das lides de antigamente. “Ligo todos os dias, vivo sozinho e gosto de participar, e assim se vai passando o tempo.”

Discos pedidos, dedicatórias, aliviar o peso dos dias

A rádio entrou na vida do pastor Mário há bastante tempo. Um dia, depois de várias tentativas, lá conseguiu entrar no ar. “Ouvia o Rui todos os dias, gostava de participar, não conseguia entrar em linha e pensava ‘se calhar sou eu que não consigo atinar com o número’”, recorda. Numa bela tarde, já lá vão dois anos, tentou e conseguiu. “Foi uma maravilha, podia conversar, mas não estava à-vontade, era a primeira vez, como não estava dentro do assunto, pedi uma musiquinha à escolha.” Apanhou-lhe o jeito e, desde então, liga com frequência a pedir músicas românticas, sobretudo de Júlio Iglésias, para dedicar à família, a quem faz anos, aos vizinhos, a toda a gente. “Passo os dias sozinho com elas, as minhas meninas [as cabras], e a rádio faz-nos companhia, distrai-nos, há programas simpáticos, passa-se o tempo com mais alegria e o dia passa mais rápido.”

Não é só nos montes que o rádio toca. Mário vive com a mulher e o filho mais novo e, lá em casa, a telefonia vai estando ligada. Há uns tempos, esteve doente, quase não conseguia caminhar, a telefonia deu-lhe ânimo. “É tão bom falarmos com as pessoas do lado, conseguir um bocadinho de conversa, percebemos que não estamos sozinhos, que temos alguém que nos apoia. Uma pessoa não está bem e fica logo com o espírito mais leve, sente-se mais aliviada.” Fala por experiência própria. “Sinto-me melhor a ouvir rádio, ando mais à vontade, estou em contacto com as pessoas como se estivessem ao pé de mim. É como uma família, estamos em contacto uns com os outros, é muito bom.”

Mário Augusto leva as cabras para os pastos de Mirandela e não dispensa o transístor e o telemóvel para ligar para a Onda Livre
(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)

Há quase 30 anos, Manuela Almeida conseguiu que na fábrica onde trabalhava, como costureira, deixassem ter o rádio ligado na linha de produção. “Começaram a aparecer as rádios locais e essas sim, essas são a minha paixão, são essas que chegam a nós, dão-nos voz, são a nossa voz.” Ligava, ganhava CD e bilhetes para concertos, entrava em debates, fez questão de conhecer um ou outro locutor. Há uns anos, deu um jeitinho no botão, apanhou a Rádio Sintonia, lá ficou, agora não quer outra coisa, quis conhecer a locutora que lhe faz companhia todas as manhãs, apareceu sem avisar, foi recebida de braços abertos por Paula Albuquerque. “A sensibilidade, o amor com que se entrega à rádio,… isto é fazer rádio e não conheço ninguém a fazer rádio assim. Ela sabe como nos tocar nessa caixinha que se chama coração.”

Inês e João Paulo também ouvem a Rádio Sintonia. A música de Inês, do Tony Carreira, passou pelas 9.30 horas, ficou feliz, amanhã voltará a pedir ao pai para mandar uma mensagem à Paulinha. “É muito amiga, sempre animada.” O pai acrescenta. “A Paulinha tem o dom da palavra, tudo o que ela diz faz sentido, a forma como interage dá ânimo às pessoas, entra-nos no coração. A prova está aqui: a nossa Inês.”

João Paulo lembra-se do primeiro encontro. A locutora comentou que gostava de chocolate de menta, João decidiu comprar para lhe oferecer. Bateu à porta da estação, Paula Albuquerque abriu, João Paulo entregou-lhe o presente, disse que era o pai da Inês, Paula perguntou por ela, ela estava no carro, saiu e foi conhecer a voz das suas manhãs e o estúdio. A partir daí, mensagens, pedidos de amizade no Facebook, dedicatórias para a Inês de gente que nunca viu – quando esteve com o joelho inchado, choveram mensagens com desejos de melhoras. “Se quiser saber notícias do meu país ou do Mundo, vejo televisão ou leio jornais. Se quiser saber notícias da minha terra, ouço a rádio”, realça João Paulo.

Inês e João Paulo pedem músicas, fazem dedicatórias, passam as manhãs de ouvidos colados à telefonia
(Foto: Tony Dias/Global Imagens)

É segunda-feira, Paula Albuquerque chega à Rádio Sintonia para mais uma emissão de “Manhãs na Sintonia”, programa de discos pedidos, em 92.0 FM. Os ouvintes enviam mensagens à noite, na véspera, ou de manhã cedo, com as músicas e dedicatórias que se irão ouvir em fábricas, hospitais, lares e centros de dia, no trânsito, em estabelecimentos comerciais, em casas da região. São nove da manhã, uns minutos de noticiário local, dali a pouco a nova antena da rádio começará a ser instalada, investimento de peso para a estação que tem cinco pessoas a tempo inteiro e alguns colaboradores, e que chega além do Porto e até Aveiro.

Paula tem mais de 50 mensagens no telemóvel e está a postos, sorriso aberto, boa disposição, gargalhadas, cantorias pelo meio. “Bom dia, bom dia, bom dia, meu povo.” É uma mulher de sorrisos. Começou a fazer rádio aos 15, a meio tempo, não demorou a perceber que era ali que devia estar. Neste momento, é responsável pela programação da Sintonia que está no ar há 32 anos. “Faço as coisas de coração e com o coração”, garante.

Paula Albuquerque, Paulinha para muitos ouvintes, anima as manhãs de coração cheio
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Paula Albuquerque, Paulinha para muitos ouvintes, lê mensagens e dedicatórias até ao meio-dia, atende pedidos de músicas portuguesas e estrangeiras, sobretudo canções animadas, e fala para a audiência. “Ninguém nos consegue tirar o sorriso. Quando o sapato começa a magoar, devemos deitá-lo fora.” A locutora vai falando da vida, das dificuldades, de erguer a cabeça e seguir em frente, do rio que contorna obstáculos até chegar ao mar, de saúde emocional, dos girassóis que quando não têm luz se viram uns para os outros para ganhar energias. “Não nascemos para sermos tapete de ninguém, nascemos para sermos comandantes da nossa própria vida.” A emissão prossegue, a locutora anima as três horas da manhã, a dedicação é total. “É este o papel da rádio, falar para as pessoas, com as pessoas, ouvi-las, escutá-las.” É essa proximidade. “Há muitos programas, mas, desta forma, com esta emanação de amor, é difícil encontrar.”

A música é um pretexto para conversar

A espinha dorsal das rádios locais assenta no noticiário local, informação de proximidade, discos pedidos, conversas, concursos, relatos da bola, divulgação das atividades dos clubes da terra e da agenda cultural, e o que andam a fazer as associações e os políticos dali e das redondezas. Nas frequências certas, mas também em emissões online e nas redes sociais, até porque há muitos emigrantes espalhados por este Mundo fora.

“As rádios locais têm como missão dar voz a quem não tem voz e não devem, na minha ótica, seguir o caminho das rádios nacionais, isso é um erro crasso, porque têm uma personalidade muito própria”, diz Nelson Medeiros que faz rádio desde os 13 anos, são 27 nesta profissão, já passou por várias antenas, agora está na Rádio Castrense, a terceira mais antiga do distrito de Beja e líder de audiências no Baixo Alentejo. É diretor da estação e de programas. Às 7.30 horas, de segunda a sexta, há um programa para quem quer desejar bons dias e há discos pedidos a várias horas. “A participação é muito intensa e a música é uma muleta, um pretexto, as pessoas querem conversar, desejar as melhoras a quem está doente.” A Castrense vai para as ruas, para as praças, tenta quebrar as barreiras do isolamento. “O Alentejo é uma região muito dispersa e de baixa densidade populacional e as pessoas agarram-se mais à rádio para saber do vizinho e do que acontece na sua aldeia”, sublinha Nelson Medeiros.

Encarnação Costa e Luís Custódio escutam a Castrense. A rádio trouxe-lhes novos amigos, uns que conhecem, outros não, telefonemas e mensagens. Quando o marido foi operado, muitos contactos para saber como estava. “São coisas de que não nos esquecemos. Estimo essas pessoas como se fossem da minha família. Tenho o número de telefone de muita gente.”

Encarnação Costa e Luís Custódio ligam todos os dias para a Castrense
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

O aparelho está na sala ao pé da cozinha, às 7.30 horas já está ligado e segue o dia, muitas vezes, até ao final da tarde. Às quintas-feiras, é sagrado, das 21 às 23 horas, Encarnação e Luís escutam o programa “Património”. “É muita gente a participar, as pessoas cantam, contam anedotas e adivinhas, dizem poemas.” Mais duas horas bem passadas. “É um entusiasmo que nós temos e a rádio é muito importante, na televisão é só desgraças.”

A Onda Livre, de Macedo de Cavaleiros, há 33 anos em 87.7 – 106 FM, chega praticamente a toda a região de Trás-os-Montes e Alto Douro, à Galiza também. Neste momento, tem uma campanha para ajudar voluntários que cuidam de animais abandonados, há quilos e quilos de ração que não param de chegar e que serão distribuídos no final do mês.

A rádio transmite missas em direto, acompanha as assembleias municipais, alguns concertos, faz reportagens no exterior, noticiário local, e espera retomar o programa de animação “Feiras e festas”, suspenso por causa da pandemia, aos domingos à tarde, em que monta um palco gigante por aldeias e vilas com música e vários convidados. Seis pessoas a tempo inteiro, alguns colaboradores, que se desdobram para chegar a todo o lado. “Temos de fazer milagres para estarmos em todo o lado. O mais complicado é que vivemos de publicidade”, comenta Rui Costa, responsável pela programação e animador da Onda Livre. Das 7 às 9 horas, de segunda a sexta, está no programa “Despertar” com música popular. “É um pouco mais rural para as pessoas que estão mais isoladas e que acordam muito cedo. As pessoas podem telefonar, cantar, dizer uma oração. É um programa mais familiar, um ponto de encontro.” De segunda a sexta, há discos pedidos com telefonemas em direto. “Há uma imensa participação, até de estrangeiros. Uma coisa muito importante são os estrangeiros, é a mãe, é o pai, é a tia, é ouvir falar da sua aldeia, é outra emoção para quem acompanha a rádio no estrangeiro.”

Problemas pessoais, solidão, tristeza

Os números falam por si: 87,2% das rádios locais têm uma interação regular com os ouvintes, principalmente em programas de música; 98,5% dos ouvintes comunicam regularmente e 55,9% conhecem os colaboradores da rádio; 76,5% falam de problemas pessoais e 41% manifestam estados de solidão; 70% apontam a possibilidade de conversar com os apresentadores como uma das razões para sintonizar uma rádio local; 84,6% dos protagonistas das emissões dão conselhos quando é oportuno; 87,2% das rádios mantêm ligação via net com comunidades emigradas. Estas são algumas das conclusões do estudo “O papel comunitário das rádios locais e o fenómeno da solidão na sociedade portuguesa contemporânea” do Observatório da Solidão do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, no Porto, realizado entre março e abril deste ano, num universo de cerca de 200 rádios locais identificadas no país (há uma década eram cerca de 300), com 77 respostas recebidas.

A voz de Rui Costa, da Onda Livre, de Macedo de Cavaleiros, chega a muita gente que vive sozinha
(Foto: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens)

Com a pandemia, 51,3% das rádios locais confirmam um aumento dos contactos dos ouvintes que são, na sua maioria, adultos de meia-idade e idosos, com o género feminino a prevalecer sobre o masculino. A principal conclusão do estudo é reveladora: as rádios locais, num contexto de solidão e isolamento social, “emergem como um meio de contacto e partilha solidária.” Um papel comunitário e de proximidade que, no entanto, “é com frequência injustamente ignorado ou subalternizado.”

A investigação não surge por acaso, a solidão é um assunto de primeira linha para o ISCET que, noutras pesquisas, ouvia referências a rádios locais. Daí a aprofundar o seu papel, as especificidades e a interatividade, cruzando com o isolamento, o anonimato da vida urbana, a perda de laços familiares, foi um passo. Adalberto Dias de Carvalho, professor e investigador, diretor do ISCET, destaca a singularidade das rádios locais, a sua proximidade à comunidade onde se inserem, as relações que se criam, os problemas que se partilham, as chamadas de atenção para questões pessoais. “A interatividade que existe entre os ouvintes e os responsáveis e protagonistas das rádios é tão grande que as conversas tocam problemas da comunidade ou mesmo problemas pessoais, que atingem esse nível de proximidade que é a intimidade.”

A solidão, a depressão e a tristeza aparecem nas conversas. “Há ouvintes que falam tanto tempo, e tantas vezes, porque precisam de conversar, de se relacionar com outras pessoas, e encontram nos locutores verdadeiros amigos, frequentemente tratam-se pelo nome, conhecem-se, são do mesmo meio, sabem quem está doente, quem está a recuperar.” A partilha é natural. “Falam dos netos, dos filhos, de problemas de abastecimento, de acessos, de uma rua que não está asfaltada.” Fala-se de política, de desporto, da bola, transmitem-se cerimónias religiosas, os agentes económicos promovem produtos e serviços, os ouvintes pedem músicas para quem está perto e para quem está longe, como forma de comunicar com um agregado geograficamente distante.

Com a pandemia, a Onda Livre, de Macedo de Cavaleiros, alargou as horas para os ouvintes falarem e conversarem. “As rádios têm um papel muito importante para uma região como a nossa em que há muita gente a viver sozinha”, sustenta Rui Costa. Há ouvintes que querem ver a cara de quem está do outro lado. “Fazem muita questão de nos conhecer, quando vêm à cidade passam pelo estúdio, trazem um miminho. A rádio é um meio muito mais direto e mais rápido de chegar às populações.” Rui Costa está satisfeito com o reconhecimento que a Onda Livre tem tido.

É um elo de ligação. “A rádio tem a obrigação de retratar sonoramente o que se passa”, define Nelson Medeiros, que tem um programa de discos pedidos ao fim de semana, que começou como uma brincadeira na pandemia, tornou-se sério, agora o telefone não pára de tocar. “Há um carinho muito grande pelo público que tem um grande respeito por nós”, assegura.

Nelson Medeiros destaca as virtudes das rádios próximas do povo
(Foto: Carlos Vidigal/Global Imagens)

Adalberto Dias de Carvalho chama a atenção para a necessidade de valorizar estes meios de comunicação. “As rádios locais desempenham um papel relevante junto das comunidades, mas nem sempre esse papel é reconhecido, mas quem escuta atentamente muitas das suas emissões, rapidamente se apercebe da constante interação que mantêm com os ouvintes”, observa.

E a solidão não é um pormenor. A solidão dói, provoca sofrimento. O ser humano não foi desenhado para estar sozinho, procura interação, procura companhia. E a proximidade aos apresentadores das rádios locais gera intimidade, familiaridade, pertença, contorna tristezas. “Uma casa silenciosa torna-se ruidosa quando temos apenas a nossa voz interna por companhia. A tagarelice dos apresentadores de rádio faz parecer a casa menos vazia, enchendo os diferentes espaços com som de música e vozes. Eles conversam sobre temas que são conhecidos e reconhecidos de tal forma que quem ouve sente que quase faz parte dessa conversa”, afirma Cristina Sousa Ferreira, psicóloga clínica. “De uma forma geral, as pessoas preferem permanecer nas suas casas e viver de forma independente à medida que envelhecem. Querem envelhecer na sua terra, no seu bairro, na sua casa. E na sua terra ficam muitas vezes isoladas.” A rádio torna-se mais do que uma companhia. “Um bom comunicador parece que está a falar diretamente com quem o ouve e consegue assim criar proximidade e conexão”, adiciona a psicóloga.

Há mais de uma década que Mário Narciso, de Mombeja, não dispensa o rádio ligado. “É uma companhia, ainda gosto de ver filmes antigos na televisão, mas o resto é sempre a mesma história. Quando me aborreço da televisão, vou para o quarto e canto fado e cante alentejano no ‘Património’ às quintas-feiras à noite.” É uma maneira de encher o tempo com mais gente em sintonia e unida por uma emissora. “Volta e meia, falamos uns com os outros, dedico músicas a muita gente, e, para dizer a verdade, não conheço muita gente.” Mário Narciso conta como é que é. “Já não consigo viver sem rádio.” A rádio dá-lhe voz e é a sua voz.