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O Natal dos anões

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Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Parece que foi há meia hora que arrumei o presépio na caixa onde repousam Maria, José, Gaspar, Baltazar, Melchior e o menino Jesus. Sempre que o monto e desmonto, dá-me saudades de um outro presépio típico, à antiga portuguesa, constituído por uma quase centena de pequenas figuras pintadas à mão, perdido numa mudança de casa, com pastores, ovelhas, vacas, uma ponte, um moinho, lavadeiras e mais um vasto número de figurantes, além do núcleo duro. O casting diminuiu, ficou reduzido aos personagens principais, o que me consola é serem todos bonacheirões e simpáticos, como figuras de Botero.

Quando os filhos crescem e saem de casa, ainda faz sentido montar a árvore de Natal? E quando estamos a meio de um divórcio, a viver num apartamento de transição, justifica-se o aparato natalício? Ou quando alguém muito próximo partiu?

Sempre que faço a ronda das visitas de Natal para distribuir presentes – só gosto de oferecer livros, perdoem-me a falta de imaginação, mas além de abraços, não me ocorre melhor oferta -, fico sem jeito quando me deparo com árvores de plástico do tamanho de pacotes de leite com micro luzes que piscam desesperadamente, entaladas em prateleiras entre livros e bibelots. O que vejo ali é um Natalzinho solitário, tímido e triste, à dimensão do reino de Lilliput. Percebo e respeito a intenção, só que para mim não dá, porque comigo é tudo ou nada. E o Natal é a celebração mais importante para os portugueses, mesmo sem renas nem neve e sabendo que o Pai Natal não existe, nem há criaturas que desçam pela chaminé, a não ser uns pardalitos tontos que caem no recuperador e que salvo da morte, abrindo a janela da sala.

O problema do Natal é desfocar-nos do significado do Natal: fé, celebração, família, paz e alegria. A pandemia e as crises atenuaram o espírito consumista, muitas famílias já praticam o inteligente jogo do amigo secreto para os presentes, mas há sempre alguém que fica cansado com os preparativos, que se esquece de fazer uma sobremesa para a ceia e todos ficam com medo de engordar. Antes dos dias 24 e 25, as famílias negoceiam em que dia vão para que casa, obrigando muitos a verdadeiras travessias no território nacional e internacional para passarem algumas horas perto de quem têm saudades o ano inteiro. Outra prática comum é acolher quem está longe dos seus, ou quem perdeu o único parente com quem passava a quadra. É o Natal dos amigos, um calor no coração que consola as almas mais solitárias, porque no Natal não podemos esquecer-nos dos outros, mesmo que durante o ano o tempo nos atropele com mil afazeres.

Gosto do Natal, mas não gosto do folclore associado: as músicas cheias de sinos, as iluminações de rua, os jantares das empresas e dos amigos, e sobretudo aquela atitude generalizada de ficarmos todos bonzinhos. Quem é bom, pratica o bem durante o ano. É claro que é melhor ser bom uma vez por ano do que nunca ser, mas a bondade e a generosidade não são suplementos vitamínicos que se tomam para prevenir gripes e constipações.

Olho para os meus rechonchudos mudos, sem burro nem vaca para compor o quadro, e sinto saudades de fazer a árvore com o meu filho quando ele era criança, com bolas, estrelas e uns pequenos bonecos de pano a quem ele carinhosamente se referia como os anões. Este ano vou pedir-lhe que venha fazer a árvore comigo. E quando a montarmos, acredito que tal gesto irá conseguir parar o tempo, esse grande ladrão que finge que passa por nós, quando na verdade somos nós que passamos por ele.