Quando a inteligência sobressai e as capacidades ultrapassam a idade, o desafio agiganta-se. Para pais, professores, amigos. Não há respostas que cheguem para tanta fome de saber. E a escola é muitas vezes pouco no mundo das crianças sobredotadas, que se pinta de todas as cores - da música à ciência, das artes ao desporto. E que há muito deixou de morar na imagem afunilada de pequenos Einstein.
As dezenas de caracóis no cabelo escuro que nem carvão pendem para cima do telescópio que guarda no quarto para espreitar a Lua. Vestiu-se a rigor, camisa e laço, para mostrar tudo o que sabe sobre o sistema solar, a paixão assolapada de Marco António. “Foi nos livros que aprendi tudo o que sei. Sou muito curioso e peço à minha mãe para mos comprar.” Uma prateleira inteira, numa estante encostada à parede laranja da casa em Águas Santas, na Maia, com autênticas enciclopédias, da história às ciências, é o retrato fiel de uma criança que não consegue acalmar a ânsia de saber mais e mais. “Quando descubro um tema novo, pesquiso sobre ele até saber tudinho.” Esmiúça ao mais ínfimo pormenor. Não é de admirar que já queira acelerar o tempo para poder vir a cumprir o sonho de ser cientista.
Entre as experiências com o microscópio, o esqueleto para explorar a anatomia humana, o nome de todas as células sanguíneas na ponta da língua, as preocupações com a poluição atmosférica, com os oceanos e com a desflorestação, difícil é adivinhar-lhe a idade. Marco tem nove anos e já pensa ser ativista com receios de um Planeta em contagem decrescente que poderá não sobreviver. Num diário, vai escrevendo as preocupações de um miúdo sobredotado. E para um primeiro filho – agora tem um irmão de seis -, sem termo de comparação, a mãe Marta Vieira sabe bem o que passou até lhe descobrir o talento. Faz “rewind” no filme da vida. Aos seis meses, Marco disse as primeiras palavras, aos três anos começou a ler, sozinho. Um ano depois, não era capaz de identificar o frigorífico em casa, mas já sabia tudo sobre planetas. Para o parque infantil, Marco levava livros, kits de ciência, brincadeiras sobre o sistema imunitário. Baloiços, saltar à corda, jogar à bola não entravam num mundo que parecia só pertencer a ele.
“Além da socialização, ele tem dificuldades em fazer amigos, porque nenhuma criança se interessa por aquilo de que ele fala”, conta a mãe, que descobriu Helena Serra, especialista em educação especial e sobredotação, quando chegou a um beco sem saída. Marco entrou na escola já sinalizado. “Não foi fácil. Ele julgava que ia aprender, e começaram a ensinar as vogais. Ele dizia-me que tinha ido para a escola dos bebés”, lembra a mãe. O caminho pela sala de aula foi melhorando. Para um miúdo que gosta de falar sobre a Guerra Fria e que até sabe o hino da Rússia de cor, a mãe tenta à força toda que não desmotive, alimenta-lhe a curiosidade infinita.
Compra-lhe livros, material científico, vai a encontros de astrónomos. Marco vai entrar, agora, no 5.º ano. No Ensino Primário, os pais não queimaram etapas. Mas saltar um ano já começa a entrar no radar. “Agora, com muitos professores, tenho receio que algum não seja tão disponível. Estas crianças conseguem ser muito cansativas, levam uma pessoa ao limite, desafiam o professor, sei que não é fácil.” E mesmo para os pais que não têm respostas para tanta fome de saber, o trabalho é gigante. “Talvez só lhe tenha ensinado as regras sociais, aprendo muito com o Marco”, confessa Marta.
Muitos casos por identificar
Estima-se que 3 a 5% das crianças que frequentam a escola sejam sobredotadas. A maioria está por identificar. “Tanto há rapazes como raparigas. Mas os casos que me chegam são 90% rapazes e 10% raparigas. Porque há aquele estereótipo dos pais em relação aos filhos de que, quando as meninas são muito boas alunas, é normal.” Ana Serra, psicóloga, cresceu com um irmão sobredotado, foi isso que lhe espicaçou a curiosidade de quem sabe que alunos mal integrados, malcomportados ou desmotivados pode ser sinal de inteligência acima da média. “Muitas vezes, estas crianças acham inútil ir à escola.” Para ser considerada uma criança sobredotada, tem que se destacar face ao seu grupo etário, ter um nível de excelência numa ou em várias áreas. E é algo inato. Não é a criança a quem os pais ensinaram o abecedário aos quatro anos. É, por exemplo e tal como Marco, quem aprende a ler sem nunca lhe ter sido ensinado. Mas a sobredotação pinta-se de tantas cores. Tanto pode existir em múltiplas áreas, como apenas em História, Matemática ou no desporto. Não há um perfil único. “O Cristiano Ronaldo é uma pessoa sobredotada”, exemplifica Ana.
“Há crianças com grande inteligência linguística, muito bem-falantes, que escrevem e leem muito bem. Como há crianças com altas capacidades interpessoais, que são líderes natos e muito sociáveis. Há aquelas que se destacam na inteligência motora, como os atletas, e outras com grande capacidade lógico-matemática e péssimas na motricidade. Um sobredotado não é bom a tudo.” A imagem de um pequeno Einstein há muito que deixou de ter adesão à realidade. O mito é difícil de desconstruir, só que no mundo da sobredotação não há fórmulas, daí ser tão difícil identificar. Entre pais e professores, os casos vão-lhe chegando. Os psicólogos ainda se fazem valer dos testes de inteligência tradicionais, para avaliar a idade mental ou o QI. “Mas já estamos a caminhar para as inteligências múltiplas, porque uma criança sobredotada não tem de ter necessariamente um QI acima de 130. Pode ser sobredotada na música e no desenho. Temos de ir através da observação.”
Segundo a lei portuguesa, nestes casos, é possível avançar dois anos em todo o percurso escolar, um ano no 1.º Ciclo e outro nos 2.º ou 3.º Ciclos. Algo que traz riscos associados. Mesmo tendo capacidades acima da média, nem sempre há maturidade emocional para o salto. No entretanto, para pais e educadores, o desafio é serem capazes de alimentar as áreas fortes e, ao mesmo tempo, estimularem as áreas das quais a criança foge a sete pés. “Não pode haver uma grande dessincronia. Ser muito bom em astronomia e depois não ser capaz de desenvolver uma amizade. Nós somos um todo”, refere a psicóloga educacional.
Associação quer programas públicos
Foi exatamente por isso – e porque há casos de automutilação, suicídio, consumos em miúdos incompreendidos – que a Associação Portuguesa de Crianças Sobredotadas (APCS) criou o Projeto Investir na Capacidade (PIC) que, a custo e com muito trabalho, começou a entrar em algumas escolas em 2010. Os agrupamentos de Vila Nova de Gaia, através da Câmara, foram os primeiros a abrir a porta a um projeto que, desde então, já chegou a Nelas, Leiria, Lisboa, Pedrouços e Oeiras. A APCS deu formação a professores, pais, psicólogos, monitores voluntários, para identificarem estas crianças nas suas escolas e levarem a cabo o projeto. Até agora, o PIC já envolveu 1500 crianças.
São atividades fora da caixa, uma vez por semana, que dão resposta ao mundo sem-fim de curiosidade destas crianças, das áreas em que são fortes àquelas em que são mais fracas. Desde experiências em laboratório, robótica, música, teatro, pintura, esgrima. E, neste espaço, encontram crianças como elas, para perceberem que não estão sozinhas, e que até há alunos melhores e mais rápidos. “Percebem que têm que dar a vez a outros, lidam com a frustração. E trabalham competências em grupo”, diz Marcela Pinho, vice-presidente da associação. Mas a APCS bate-se para estender estes recursos a todo o ensino público. “O nosso trabalho é fazer com que não desmotivem da escola. Gostávamos que houvesse um maior comprometimento do Ministério da Educação, para garantir o acesso a todas estas crianças”, explica a também professora de Filosofia, que reconhece que falta formação de base nesta área e que a maioria das escolas não está preparada.
Ainda no último ano letivo, Marcela, especializada em educação especial, encontrou uma aluna sobredotada numa turma do 12.º ano. E, aqui, a sensibilidade dos docentes também entra. “Foi um desafio enorme. Tinha que abordar o tema para a generalidade da turma, fazer diferenciação pedagógica para os que têm mais dificuldades e depois para ela, que já sabia o programa de trás para a frente.” Teve de ir além do manual, levou-lhe livros de grandes filósofos que a aluna leu de fio a pavio, artigos de jornais, tudo para não tornar os 90 minutos enfadonhos. A diferenciação pedagógica está prevista na lei, mas nem sempre entra em jogo.
A política educativa e modelos de ação inovadores vão estar em debate, de terça a quinta-feira, na 17.ª Conferência do Conselho Europeu para a Alta Capacidade e Sobredotação, que, este ano, é organizada pela APCS. Uma candidatura portuguesa feliz que a pandemia empurrou para o modo online, mas que, mesmo assim, terá mais de 300 especialistas, incluindo o autor da teoria das inteligências múltiplas, Howard Gardner.
O miúdo que quer ser jogador de futebol
Os pais de Gaspar Maganinho sabem bem o que é remar contra um ensino que, tantas vezes, deixa crianças sobredotadas à margem. Gaspar tem 12 anos, já está com um pé no 7.º ano, sonha ser jogador de futebol. “Competitivo é o primeiro nome dele. Precipita-se, quer ser o mais rápido, faz tudo a correr”, atira a mãe, Cláudia Queirós. Depois de uma professora primária sensível, a ir além do programa para manter o miúdo de Sanguedo, Santa Maria da Feira, com a cabeça na sala, no 5.º ano os pais bateram num muro que nunca haveria de cair. “Os professores nunca quiseram perceber, o diretor da escola ignorou os relatórios de três psicólogos, o Gaspar chegou a ser proibido de intervir nas aulas, porque sabia as respostas”, relata a mãe.
Para uma criança que gosta de mostrar o que sabe, com um raciocínio três anos à frente da idade, que quer ser protagonista de uma história a que perdeu o leme, o desencanto foi tal que o desgaste dos pais numa luta inglória os levou a tomar a dura decisão: mudar de escola para um colégio privado no 6.º ano. Um esforço financeiro e emocional pesado, que compensou. “Da mesma forma que há necessidades educativas especiais no sentido da incapacidade, também há crianças com estas necessidades mas no sentido da alta capacidade. E a maior parte dos professores não procura responder a isto, porque dá muito trabalho”, desabafa a mãe.
Para desfiar este novelo temos de voltar atrás na história do miúdo que salta à vista nas artes, no raciocínio, nas ciências e no desporto. Que joga futebol, na Escola de Futebol Benfica de Gaia, e faz natação. “Ele estava na escola primária em Gaia e fizeram um questionário a todas as turmas. Identificaram aí as capacidades dele”, revela o pai, Hugo Maganinho. Começou a frequentar um PIC aos sábados. De peixe fora de água, que sempre se sentiu diferente, encontrou o seu mundo. Os pais já suspeitavam, Gaspar era muito autónomo para a idade. Gosta de desenhar e de ver National Geographic. “Se ele tem um amigo com quem se identifica verdadeiramente? Não”, responde a mãe. E Gaspar desmotiva quando tudo lhe parece fácil. Dá um jeito nos óculos e interrompe os pais para tomar as rédeas ao discurso: “Não me desmotivo, sei algumas coisas mas não sei tudo. Vou às aulas para aprender mais ainda.”
Na pauta, tudo 5 e um 4 a Matemática. Não por não saber, faz contas de cabeça num despacho, antes porque responde só com o resultado e esquece-se de explicar o raciocínio. Na correria dos dias, passa a vida em competições com a irmã Guiomar, de oito anos, também ela sobredotada. Ainda assim, traz a humildade de quem tem pais que o puxam à terra. “Eu sou melhor numas coisas e ela noutras.”
A paixão eterna de um professor
Se há docentes ainda pouco sensíveis e preparados neste campo, outros há que abraçam os alunos com a entrega que nem a campainha para a saída trava. Arsénio Barros já leva 21 anos a dar aulas. É professor de Educação Física. “Tenho encontrado alunos com capacidades acima da média e a maior dificuldade é conseguir estimulá-los, são alunos que precisam de mais. Que precisam de ser muito acompanhados pelos pais, professores, pares.” A experiência que teve, no arranque da carreira, a trabalhar na área da educação especial durante três anos deu-lhe ferramentas que guardou para a vida. “Os alunos ensinam-nos muito, ser professor é muito mais do que dar aulas. Faz parte de mim.”
Quando a inteligência sobressai, se as crianças não forem estimuladas, Arsénio, que sempre esteve ligado ao desporto adaptado, já adivinha. Das duas uma, ou desmotivam ou passam a perturbar a aula a todo o minuto. Tem dois filhos, sabe bem que não há manuais de instruções, mas vai tentando. “Tive o caso de um aluno com grande capacidade, rápido a responder, mas que não gostava de Educação Física, com fracas capacidades motoras. Tive de mudar a minha abordagem e não é fácil. Tentei valorizá-lo de outra forma, com apresentações sobre a modalidade, questões de arbitragem. O segredo é não os minimizar, mas também não lhes tirar responsabilidade.”
Talvez por ser tão apaixonado, o PIC que funciona em Pedrouços, na Maia, lhe tenha caído no colo, qual presente. “É uma gota de água num oceano de alunos com estas capacidades. Mas acaba por colmatar um bocadinho esta diferença que eles sentem e tirá-los da zona de conforto. Aqueles que são muito bons a Matemática brilham em atividades de enigmas, mas já não são tão bons na hora de dar uma cambalhota.” Este ano, Arsénio foi colocado noutra escola, em Valongo, mas promete não largar o PIC de Pedrouços. “Não sou capaz. Não há ano que não me sinta surpreendido e é isso que me entusiasma.”
Os vintes na pauta
O que entusiasma Afonso é pôr os olhos na pauta. Tudo vinte, exceto um 19 a Educação Física. “Mas ninguém conseguiu 20”, diz ele na urgência de se justificar. Está em Nelas, Viseu, anda às voltas no quarto, de um lado para o outro, de livro na mão, para mostrar o segredo. Estuda e estuda e estuda. Até à exaustão. Numa resiliência fora do normal. Vai entrar no 11.º ano, tem 16 anos. “Não tenho necessidade de estudar em casa, mas fico mais confortável sabendo que estudei muito”, admite Afonso. A partir de setembro, larga os jogos no computador e tudo o resto, por iniciativa própria.
“O Afonso sempre demonstrou um interesse e uma atenção extra nas aulas”, recorda o pai. Na primária, a professora via-se obrigada a dar-lhe exercícios extra para o entreter enquanto os outros alunos acabavam os primeiros. Afonso era rápido. Sérgio Rocha tinha noção, via o quão diferente ele era do irmão mais velho, mas só quando o filho fez testes de inteligência teve a certeza. O adolescente sabe que os outros alunos o acham melhor. Pesquisa matérias avançadas de Matemática ainda antes de lá chegar. Afonso tem pressa. Quando se interessa por alguma coisa, é na Internet que encontra respostas ao mar sem-fim de perguntas. E aquela que paira agora é o que fará com a sua capacidade acima da média no futuro. Medicina, Direito, Engenharia Aeroespacial, Engenharia Informática, ainda está baralhado, gosta de tanta coisa.
É perfeccionista, picuinhas. “Os trabalhos faz a 110%. Às vezes grava peças de teatro e é capaz de filmar dezenas de vezes até ficar perfeito. Ou desenhar o mesmo vezes sem conta”, salienta o pai, que só tem pena que o filho, de tão focado, esteja a perder o melhor da adolescência. “É tão obsessivo com o estudo que, durante o tempo de escola, não joga, não sai com amigos, só estuda.” Uma coisa é certa, “atinge o inatingível, vai sempre além”.